Ricardo Henrique Araújo Pinheiro
Culpado solto ou inocente preso? Burocracia ou liberdade?
A votação não foi unânime para negar provimento ao Regimental. Para o relator do caso ministro Lewandowski os argumentos trazidos pelo recorrente não tem o condão de alterar a jurisprudência da Corte, que veda a concessão de HC contra ato de ministro ou do Colegiado do STF. Para o ministro Fux não é possível admitir HC substitutivo de recurso extraordinário, razão pela qual acompanhou o voto do Relator. A divergência foi proposta pelo ministro Marco Aurélio ao afirmar que "tenho a concepção de que, pela envergadura dessa ação voltada a preservar, na via direta ou indireta, a liberdade de ir e vir, que é o habeas corpus, o processo que o veicula deve vir ao Plenário devidamente aparelhado".
Apresentada a questão controvertida, surge a nossa indagação: quando o assunto é liberdade, e o que se está em discussão é o direito de ir e vir, será que um equívoco procedimental na instrução daquele Agravo de Instrumento tem o condão de afastar a norma constitucional prevista no artigo 5º, LXVIII de que conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder.
Ao nosso juízo, o advérbio "sempre", previsto na citada norma constitucional, não permite que o julgador se exima de analisar uma situação que poderá infringir o direito de liberdade do cidadão. Caso contrário, estaríamos diante de uma exceção à regra constitucional – o que é vedado pelo próprio caput do artigo 5ª da CF/88 (clique aqui) -, pois todos são iguais perante a lei.
Não conhecer do único recurso cabível para fazer subir à Corte Constitucional o Extraordinário, sob a alegação de insuficiência na instrução, coloca o direito de liberdade no plano do patrimônio civil. Para nós, a súmula 288 do STF (clique aqui), aplicada ao caso ora comentado, deve ser empregada quando a discussão não se estender ao direito de ir e vir, pois é dever do julgador (não eximindo a obrigação da parte) verificar a regularidade processual antes de decidir sobre questões que poderão causar danos irreparáveis. O ditado popular de que é melhor um culpado solto do que um inocente preso deve ser visto pelo julgador de uma Corte Constitucional com algo da maior importância. Entrementes, o legislador Constitucional inseriu no Título dos direitos e garantias individuais a possibilidade de se conceder habeas corpus àquele que esteja sofrendo ou se ache na iminência de sofrer qualquer infringência na sua capacidade de locomoção.
Ora, se até a prescrição é tratada como questão de ordem pública, qual seria a razão para não conhecer de um Agravo de Instrumento que serviria para que o Extraordinário chegasse à Corte Constitucional. Será que o direito de liberdade não supera a questão da ordem pública? Será que a Corte responsável pela liberdade deve tratar direito de liberdade como direito patrimonial? Não seria mais justo e célere que o STF abrandasse a aplicação da Súmula 288 para converter o julgamento em diligência, de modo a possibilitar que o recorrente instruísse corretamente – sob pena de extinção – o citado Agravo de Instrumento? Se o próprio STF admite que a súmula 691 (clique aqui) seja abrandada em situações excepcionais, como admitir que a falha na instrução de um Agravo de Instrumento possa se sobrepor ao direito de liberdade de um cidadão?
Parece-nos que a burocracia excessiva tomou lugar do justo devido processo constitucional. Não estamos querendo adentrar no mérito da culpabilidade do recorrente, mas o fato é que uma eventual falha na instrução de recurso em matéria criminal não pode ser visto de maneira sistemática, sob pena de burocratizarmos o direito de liberdade. O ministro Marco Aurélio, sempre muito criterioso quando o assunto é liberdade, há muito não vem admitindo que eventuais falhas na instrução de um processo criminal possam causar algum tipo de ilegalidade. No julgamento do HC 85.009 (clique aqui) Sua Excelência foi categórico ao afirmar que "a envergadura ímpar do habeas corpus é conducente a torná-lo como adequado toda vez que, independentemente do colegiado julgador, a decisão proferida implique ilegalidade a repercutir no direito fundamental de ir e vir do cidadão, como ocorre quando órgão fracionado do Supremo proclama, sem considerar dado constante dos autos, o não-conhecimento de agravo interposto para lograr a subida de extraordinário".
Ora, se a própria jurisprudência do STF tem possibilitado a interposição de habeas corpus substitutivo de revisão criminal, qual seria a razão lógica para não conhecer de um AI no qual se poderia atestar uma eventual nulidade processual. Para nós, não há razões constitucionais para que a Súmula 288 não seja abrandada em casos excepcionais, e cuja matéria esteja vinculada à seara criminal.
Conforme afirmamos anteriormente, não é nossa intenção adentrar no mérito da culpabilidade do recorrente. No entanto, o que não se pode admitir é que falhas processuais (inclusive as causadas pelo próprio advogado do recorrente) possa se sobrepor ao direito de liberdade, pois estamos falando de última possibilidade recursal para a subida de um Extraordinário.
Não é de hoje que a campanha pela redução da possibilidade para a impetração do habeas corpus vem ganhando seguidores. A PEC dos Recursos é o exemplo prático dessa redução de possibilidades. Em linhas gerais, entendemos que não foi justa a decisão que rejeitou aquele Agravo de Instrumento, pois os critérios burocráticos sobre o não conhecimento de um recurso, por deficiência na instrução, poderão levar um inocente ao rol dos culpados.
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*Ricardo Henrique Araújo Pinheiro é sócio do escritório Araújo Pinheiro Advocacia Criminal
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