Thiago Dalsenter
Breves considerações acerca do princípio da preservação da empresa como limitação ao poder de tributar e seus reflexos na legislação tributária
Essa guinada da visão societária acerca das empresas se caracteriza pelo rompimento com o enfoque contratual individualista – marcado pela prevalência da vontade dos sócios e controladores –, realçando-se, desse modo, a ideia de função social da organização empresarial.
Embora implicitamente demarcado na Constituição Federal de 1988 (clique aqui) – que inaugurou, nos termos do seu art. 170, caput1, uma ordem econômica fundada na livre iniciativa e na valorização do trabalho humano2 (o que demonstra, nitidamente, a importância da manutenção da empresa) –, o princípio da preservação da empresa ganhou contornos materiais e procedimentais para prosperar, com a sua previsão expressa no art. 47 da lei 11.101/05:
Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.
Basicamente, o dispositivo em questão estabelece o principal objetivo da recuperação judicial da empresa, qual seja: manter a unidade produtora. Evidentemente, disso decorre o estímulo ao exercício das funções empresariais, com vistas à promoção de sua função social, de maneira que o princípio da preservação da empresa assume, assim, uma feição pública de relevante interesse social. Nesse sentido, oportunas são as palavras de Fábio Ulhoa Coelho:
"(…) no princípio da preservação da empresa, construído pelo moderno Direito Comercial, o valor básico prestigiado é o da conservação da atividade (e não do empresário, do estabelecimento ou de uma sociedade), em virtude da imensa gama de interesses que transcendem os dos donos do negócio e gravitam em torno da continuidade deste; (...)"3
Ainda, de uma forma mais específica, além da promoção do princípio da preservação da empresa, o art. 47 da lei 11.101/05 "dissocia claramente o interesse do sócio, do interesse social e, finalmente, adota mecanismos e formas de organização tendentes a facilitar a convivência dos segmentos internos que nela se contrapõem: o dos trabalhadores, o dos credores e o dos sócios – majoritários e minoritários"4.
Deste modo, no seu contexto institucional, em que se prestigia a sua função social, a empresa (unidade econômica básica da livre iniciativa, considerada um dos pilares da economia) representa uma fonte geradora de empregos e riquezas, além de ocupar importante posição perante o Fisco no que diz respeito ao recolhimento de tributos.
O interesse pela conservação da atividade empresarial, portanto, é de todos aqueles que se beneficiam da sua capacidade econômica: credores; empregados, em razão dos seus postos de trabalho; consumidores, no que se refere a bens e serviços; Fisco, em virtude da arrecadação de tributos; dentre outros.
Gozando de status constitucional, tal como assinalado anteriormente, especificamente em relação ao Direito Tributário, o princípio da preservação da empresa pode ser visualizado no princípio da capacidade econômica de pagar impostos (observada a sua graduação), insculpido no art. 145, § 1º, da Carta da República:
§ 1º Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.
Em que pese ser de aplicação limitada em matéria tributária, pode-se afirmar que o princípio da preservação da empresa, no sentido de capacidade econômica, se traduz em verdadeiro limite constitucional ao poder de tributar, de essencial valor para a empresa-contribuinte.
Ao enunciar a necessidade de continuidade da atividade empresarial, com vistas à consecução da sua função social, o princípio da preservação da empresa, visualizado no campo tributário a partir do princípio da capacidade econômica de pagar impostos, confere segurança às empresas diante da tributação – na medida em que assegura o respeito às atividades econômicas do contribuinte pela graduação dos impostos –, servindo, desse modo, de limite intransponível ao exercício da competência tributária.
Cabe anotar, ainda, que o princípio da preservação da empresa não pode ter a sua aplicação restrita tão somente à superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, tal como poderia se concluir da leitura isolada do art. 47 da lei 11.101/05.
Em virtude da função social da propriedade e do princípio da capacidade econômica do contribuinte de pagar impostos, exige-se, também, a sua aplicação durante o desempenho normal das atividades econômicas da empresa, de modo a conferir efetividade ao referido princípio.
Dentro desse contexto, contudo, convém observar que a LC 118/05 (clique aqui), visando alinhar as disposições do Código Tributário Nacional (clique aqui) ao espírito da lei 11.101/05 (lei de falências), promoveu significativas alterações no diploma tributário, acrescentando ao seu art. 133 os §§ 1o, 2o e 3o5. Desse modo, afastou a responsabilidade tributária, em processo de falência ou de recuperação judicial, da pessoa natural ou jurídica de direito privado que adquirir fundo de comércio ou estabelecimento comercial, industrial ou profissional. Conforme leciona Misabel Abreu Machado Derzi:
"Trata-se de uma inovação, no âmbito tributário, que tanto procura efetivar o princípio da preservação da empresa, facilitando a superação da crise econômico-financeira no processo de recuperação judicial, como ainda visa a viabilizar, já no processo falimentar, o pagamento dos créditos extraconcursais daqueles que preferem ao tributário"6.
Ainda, visando disciplinar o parcelamento tributário das empresas em recuperação judicial, a LC 118/05 inseriu os §§ 3o e 4o no art. 155-A7 do Código Tributário Nacional.
Portanto, nota-se que o princípio da preservação da empresa atua em duas frentes: uma, inerente à manutenção da atividade empresarial em momentos de crise econômico-financeira, em processo falimentar ou de recuperação judicial; e outra – associada à ideia de função social da empresa e à capacidade econômica do contribuinte –, relativa ao exercício da atividade empresarial, assumindo, assim, a feição de nítido limite ao poder de tributar.
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1 Constituição Federal de 1988: "Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (...)"
2 Juntamente com a dignidade da pessoa humana, esses dois pilares que orientam a ordem econômica (associados, ainda, à função social da propriedade, à livre concorrência e à busca do pleno emprego) conferem relevância constitucional ao princípio da preservação da empresa. São, também, fundamentos da República expressos no art. 1o da Constituição Federal de 1988: "Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I – a soberania; II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V – o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição".
3 COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de direito comercial: direito de empresa. 20. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 13.
4 DERZI, Misabel Abreu Machado. O princípio da preservação das empresas e o direito à economia de impostos. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (org). Grandes questões atuais do Direito Tributário. São Paulo: Dialética, 2006, 10o volume, p. 336.
5 Código Tributário Nacional: "Art. 133. A pessoa natural ou jurídica de direito privado que adquirir de outra, por qualquer título, fundo de comércio ou estabelecimento comercial, industrial ou profissional, e continuar a respectiva exploração, sob a mesma ou outra razão social ou sob firma ou nome individual, responde pelos tributos, relativos ao fundo ou estabelecimento adquirido, devidos até à data do ato: I – integralmente, se o alienante cessar a exploração do comércio, indústria ou atividade; II – subsidiariamente com o alienante, se este prosseguir na exploração ou iniciar dentro de seis meses a contar da data da alienação, nova atividade no mesmo ou em outro ramo de comércio, indústria ou profissão. § 1o O disposto no caput deste artigo não se aplica na hipótese de alienação judicial: I – em processo de falência; II – de filial ou unidade produtiva isolada, em processo de recuperação judicial. § 2o Não se aplica o disposto no § 1o deste artigo quando o adquirente for: I – sócio da sociedade falida ou em recuperação judicial, ou sociedade controlada pelo devedor falido ou em recuperação judicial; II – parente, em linha reta ou colateral até o 4o (quarto) grau, consangüíneo ou afim, do devedor falido ou em recuperação judicial ou de qualquer de seus sócios; ou III – identificado como agente do falido ou do devedor em recuperação judicial com o objetivo de fraudar a sucessão tributária. § 3o Em processo da falência, o produto da alienação judicial de empresa, filial ou unidade produtiva isolada permanecerá em conta de depósito à disposição do juízo de falência pelo prazo de 1 (um) ano, contado da data de alienação, somente podendo ser utilizado para o pagamento de créditos extraconcursais ou de créditos que preferem ao tributário".
6 DERZI, Misabel Abreu Machado. O princípio..., p. 339-340.
7 Art. 155-A. O parcelamento será concedido na forma e condição estabelecidas em lei específica. § 1o Salvo disposição de lei em contrário, o parcelamento do crédito tributário não exclui a incidência de juros e multas. § 2o Aplicam-se, subsidiariamente, ao parcelamento as disposições desta Lei, relativas à moratória. § 3o Lei específica disporá sobre as condições de parcelamento dos créditos tributários do devedor em recuperação judicial. § 4o A inexistência da lei específica a que se refere o § 3o deste artigo importa na aplicação das leis gerais de parcelamento do ente da Federação ao devedor em recuperação judicial, não podendo, neste caso, ser o prazo de parcelamento inferior ao concedido pela lei federal específica.
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* Thiago Dalsenter é advogado e consultor do escritório Seleme, Lara & Coelho Advogados Associados, em Curitiba/PR
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