Era uma vez a empresa individual de responsabilidade limitada
Wilges Bruscato*
A lei 12.441 (clique aqui), de 11 de julho de 2011, acresce o inciso VI ao artigo 44 do Código Civil para dar origem a uma nova modalidade de pessoa jurídica de direito privado: a empresa individual de responsabilidade limitada.
A matéria era aguardada há muito tempo entre nós. Já em 1943, Trajano de Miranda Valverde levantava a questão em artigo publicado na Revista Forense, tratando do que denominou de estabelecimento autônomo, o que deu ensejo à apresentação de um projeto de lei sobre o assunto, em 1947, pelo deputado Fausto de Freitas e Castro. Em 1950, foi marcante a realização do Congresso Jurídico Nacional Comemorativo do Cinquentenário da Faculdade de Direito de Porto Alegre, no qual houve amplo debate sobre o tema, em especial, em torno do trabalho do prof. Antônio Martins Filho. Em 1956, Sylvio Marcondes Machado publica o seu Limitação da Responsabilidade do Comerciante Individual. Em 1977, Romano Cristiano traz A Empresa Individual e a Personalidade Jurídica. Em 1995, vem a Sociedade Unipessoal, de Calixto Salomão Filho e em 1996, Sociedades Unipessoais e Empresas Individuais, de Edson Isfer, entre outros. No entanto, infelizmente, a lei não se utilizou de boa técnica, em nosso sentir.
O parecer da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, cuja relatoria coube ao senador Francisco Dornelles, considerou a redação adequada. Contudo, há diversas impropriedades indesejáveis, que poderiam facilmente ter sido corrigidas. Tudo se deve, ao que parece, à falta de clareza da proposição, cuja análise técnica posterior não supriu. A justificativa do deputado Marcos Pontes para a proposição do projeto se inicia com a seguinte manifestação: "(...) tem o objetivo de instituir legalmente a 'Sociedade Unipessoal', também conhecida e tratada na doutrina como 'Empresa individual de Responsabilidade Limitada' (...)." Ora, qualquer estudioso da matéria sabe que há grande diferença entre a técnica da sociedade unipessoal e a da personalização da empresa. O resultado final que se espera – a preservação do patrimônio pessoal do agente econômico – pode ser atingido por ambas as formas; nenhuma das duas, no entanto, a mais acertada. Mas, não se toma uma pela outra. E se a proposição já trazia tamanho equívoco, que não foi levantado ao longo da tramitação pelos parlamentares encarregados de sua análise, o resultado final não poderia ser diverso.
Com a lei aprovada, o resultado da preservação dos bens do empresário se dá em virtude da separação patrimonial, obtida pela personalização da empresa: se a empresa é uma pessoa, distinta da pessoa de seu titular, por óbvio, a responsabilidade não se comunica. Na verdade, a responsabilidade da empresa individual é ilimitada: todo o seu patrimônio poderá ser consumido para honrar as obrigações por ela assumidas. Não se chega aos bens do empresário porque o empresário não assumiu obrigações. E se não assumiu obrigações, não pode ser chamado a cumpri-las, pois, em nosso sistema, a responsabilidade é pessoal, exceto nos casos previstos em lei, como, p.e., nos constantes do artigo 932 do CC (clique aqui).
Essa falta de clareza a respeito das técnicas jurídicas fez com que o texto final contivesse impropriedades como capital social, firma ou denominação social, outra modalidade societária, patrimônio social ou a previsão da utilização suplementar da legislação aplicável às sociedades limitadas.
A nova lei não criou um novo tipo de sociedade – sociedade unipessoal. Não há sociedade. Se assim fosse, seria desnecessária a inserção do inciso VI ao artigo 44, já mencionado, em virtude de já existir a previsão das sociedades como pessoa jurídica de direito privado no inciso II do mesmo artigo.
A favor do deputado Marcos Pontes, além de louvar-lhe a iniciativa, no entanto, é preciso que se registre que existe generalizada confusão, mesmo nos meios jurídicos mais autorizados, sobre os termos empresa, sociedade, empresário, firma, estabelecimento...
O sujeito de direito sempre foi, entre nós, o empresário ou a sociedade empresária, conforme a exploração da atividade se desse de modo individual ou coletivo, respectivamente. A empresa, ou seja, a atividade empresarial, por sua vez, sempre foi objeto de direito. Daí havermos proposto com todas as minúcias, já há alguns anos (Empresário Individual de Responsabilidade Limitada, Quartier Latin, 2005), a possibilidade franca da limitação da responsabilidade do empresário individual, através da constituição de um patrimônio especial, nos moldes do patrimônio de afetação, sem necessidade de elaborações fantasiosas, como personalizar a atividade.
Além da modificação no artigo 44 do diploma civil, a lei cria um novo Título no Livro II do código: o Título I-A (Da Empresa Individual de Responsabilidade Limitada), inserindo o artigo 980-A, com seis parágrafos, a disciplinar a nova figura.
Assim, ela poderá ser constituída por uma única pessoa – a qual a lei omite adjetivação, se natural, se jurídica ou ambas. Dessa forma, por uma interpretação gramatical, poderia haver o entendimento de que as pessoas jurídicas também poderiam constituir a EIRELI. No entanto, a mera interpretação gramatical não se recomenda. A mens legis, à saciedade, se dirige ao empresário individual, como historicamente se defende. Além do mais, completa a desnecessidade de adoção de EIRELI pela sociedade empresária, já que esta é a única exceção legal de constituição originária de sociedade unipessoal no Brasil, nos termos do artigo 251 da lei 6.404/76 (clique aqui).
Para a constituição da EIRELI, a lei faz duas exigências: que o capital esteja completamente integralizado e que ele não seja inferior a cem vezes o maior salário-mínimo vigente no país, hoje, na ordem de R$ 54.500,00 (estão fora os nanoempresários!). Alguns entendem que tais exigências vieram para coibir a fraude e a má-fé, embora nenhum registro disso na proposição ou no parecer da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania. Ainda bem, porque lei que é estruturada partindo da má-fé do cidadão é lei defeituosa. Não que todos sejamos anjos de candura... mas a lei tem que partir sempre da boa-fé (que nos ouçam os legisladores tributaristas!). De outra forma, especialmente em relação ao empresário nacional, é confirmar o sentir do prof. Gladson Mamede: o empresário é visto como "um delinquente em potencial, bandido que se aproveitará de qualquer chance para praticar atos ilícitos"; ou, como diagnostica nosso estimado prof. Jacy de Souza Mendonça: "um ser desprezível, presumidamente desonesto."
Por isso mesmo, tais exigências, em boa medida, nos parecem inconstitucionais, vez que não há, a não ser por exceção, qualquer determinação nesse sentido para o empresário individual e as sociedades empresárias. Nada autoriza exigir-se a integralização completa e o mínimo de capital para a constituição da EIRELI se não se fazem tais exigências, em regra, nos demais casos.
O fato de não ser possível titularizar mais de uma EIRELI, ao contrário, nenhuma estranheza causa. Se a nova possibilidade se volta às necessidades do empresário individual, é natural que só exista um empresário individual – mais que isso é configurar a situação há muito levantada pelo prof. Waldírio Bulgarelli, da esquizofrenia jurídica. Novamente se percebe a falta de clareza do projeto, que aqui insere um elemento característico do empresário individual. Em outros países, de técnica semelhante, como em Portugal, p.e., – que tem o Estabelecimento Individual de Responsabilidade Limitada – se dá o mesmo.
Outro sinal de que o projeto embaralhou três técnicas distintas – personalização da empresa, que não constava originalmente da minuta do anteprojeto, ao que pudemos apurar junto ao prof. Paulo Leonardo, a sociedade unipessoal e o empresário individual de responsabilidade limitada – é que a lei permite que seja recebida remuneração em virtude da cessão de direitos de personalidade de pessoal natural, como sua imagem, voz, autoria, o que, por certo, se refere à pessoa do empresário, vinculados a sua profissão e não à pessoa jurídica recém-criada, por óbvio.
A permissão da lei para que o empresário opte por firma ou denominação também é salutar. Essa foi, aliás, a nossa recomendação quando tratamos do assunto. Perceba-se que a denominação só é empregada como nome de sociedades anônimas e, por faculdade, de sociedades limitadas – posto que a sociedade em comandita por ações está em desuso entre nós. E o que há de comum entre a anônima e a limitada é o regime de responsabilidade dos sócios. O que a nova figura legal, ainda que de modo indireto, também apresenta.
Duas previsões constantes do parágrafo quarto do artigo 980-A, me chamaram a atenção: a primeira a respeito da extensão da limitação da responsabilidade do titular, pois no texto estava que somente o patrimônio social da empresa responderia pelas dívidas da empresa individual de responsabilidade limitada, "não se confundindo em qualquer situação com o patrimônio da pessoa natural que a constitui". Ora, as exceções à limitação da responsabilidade – responsabilização e desconsideração da personalidade jurídica - existem para aperfeiçoar a limitação, é certo. Desse modo, ainda que se trate de regramento especial, nada autorizaria a completa e absoluta exclusão da responsabilidade do titular. Nem o direito à vida é absoluto! Assim, deveriam ser normalmente aplicadas as exceções da responsabilização e da desconsideração à EIRELI.
A segunda, igualmente inquietante, mencionava, quase desapercebidamente, que o titular deveria entregar ao órgão competente uma declaração anual de bens. Que misteriosa declaração seria essa? A ser oferecida a que órgão? Perceba-se que não se trata da declaração anual de renda. Antevi complexidades desnecessárias, burocracia e custos...
Felizmente, o referido parágrafo foi vetado em sua íntegra, sem nenhum prejuízo ao resultado pretendido. E aqui está a maior prova de que a responsabilidade da EIRELI é ilimitada e que a proteção ao patrimônio de seu titular, o empresário, se dá por via da separação patrimonial, efeito da personalização da atividade e não em razão da limitação de sua responsabilidade, ainda que de outra forma faça crer o nome adotado.
Como não se trata de sociedade unipessoal, é flagrante o inconveniente da utilização supletiva das regras da sociedade limitada à EIRELI, embora de aplicação restrita. Revela o simplismo com que foi tratado o assunto.
O último dispositivo alterado no CC é o parágrafo único do artigo 1.033, que trata da dissolução de sociedades, para acrescentar à exceção da dissolução pela superveniência da unipessoalidade, o caso do sócio remanescente requeira a transformação da sociedade em EIRELI.
Num contexto de mais de noventa e oito por cento de micro e pequenas empresas e alto índice de iniciativas irregulares, agora resta torcer para que as regras regulamentadoras que certamente virão não embaracem, desnecessariamente, a figura adotada, para que todos vivam felizes para sempre...
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*Advogada, especialista em Direito e processo do trabalho pela PUCCAMP. Mestra em Direito empresarial pela UNIMEP. Doutora em Direito comercial pela PUC/SP. Professora adjunta da PUCMINAS, autora de "Manual de Direito Empresarial Brasileiro".
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