Campanha do desarmamento – solução ou impunidade?
Adugar Quirino do Nascimento Souza Júnior*
Em que pese a boa intenção, percebe-se que não vem sendo discutida a possibilidade da impunidade que pode ser criada com a campanha do desarmamento, cujas consequências são observadas diariamente em inúmeras ações penais.
Com efeito, parte considerável da jurisprudência tem se posicionado no sentido de que a posse de arma de fogo ou munição no período da campanha de desarmamento não é passível de punição, tendo em vista a ABOLITIO CRIMINIS TEMPORÁRIA criada, implicitamente, pela norma legal que disciplina a referida campanha.
Com isso, ainda que o indivíduo tenha maus antecedentes e esteja intencionado a usar a arma de fogo para a prática de crimes, poderá ser beneficiado pela abolitio criminis temporária que é criada, implicitamente, pela norma legal que regulamenta a campanha do desarmamento, pois se o indivíduo poderá entregar a arma a autoridade legal para inclusive ser ressarcido ou indenizado, não haveria razão para o referido portador da arma ser processado criminalmente, ainda que não tenha autorização para manter a arma de fogo sob a sua posse, ou seja, sua conduta seria atípica se surpreendido na posse de armamento durante a campanha do desarmamento.
É nesse sentido o posicionamento abaixo colacionado, da lavra do Egrégio Superior Tribunal de Justiça, Habeas Copus nº 169751/DF, Relator o eminente Ministro Gilson Dipp, 5ª turma, julgado em 17/3/2011, publicado em 4/4/2011, senão vejamos:
CRIMINAL. HABEAS CORPUS. PORTE DE ARMA DE FOGO. CRIME DE PERIGO ABSTRATO. POSSE DE ARMA DE FOGO DE USO RESTRITO. ESTATUTO DO DESARMAMENTO. VACATIO LEGIS INDIRETA E ABOLITIO CRIMINIS TEMPORÁRIA. ATIPICIDADE DA CONDUTA. ORDEM DENEGADA, NOS TERMOS DA IMPETRAÇÃO. HABEAS CORPUS CONCEDIDO DE OFÍCIO.
I - Consoante entendimento da Quinta Turma desta Corte, o porte ilegal de arma de fogo é crime de perigo abstrato, de modo que, para caracterização da tipicidade da conduta elencada no art. 16 da lei 10.826/03, basta, tão somente, o porte de arma de uso proibido ou restrito sem a devida autorização da autoridade competente e em desacordo com determinação legal ou regulamentar, sendo despiciendo o fato de a arma se encontrar desmuniciada. Precedentes.
II - A descrição dos fatos contidos na denúncia e na sentença demonstra que a conduta praticada pelo paciente configura o delito de posse de arma de fogo de uso restrito, previsto no art. 16 da lei 10.826/03. Não obstante tenha o Tribunal a quo registrado que se tratava de porte de arma de fogo, verifica-se a arma foi apreendida no interior da residência do paciente, configurando, portanto, posse de arma de fogo.
III - A lei 10.826/03, nos arts. 30 e 32, determinou que os possuidores e proprietários de armas de fogo não registradas deveriam, sob pena de responsabilidade penal, no prazo de 180 (cento e oitenta) dias após a publicação da lei, solicitar o seu registro apresentando nota fiscal de compra ou a comprovação da origem lícita da posse ou entregá-las à Polícia Federal.
IV - Durante esse prazo estipulado pelo legislador, identificado como vacatio legis indireta pela doutrina, a simples conduta de possuir arma de fogo, de uso permitido (art. 12) ou de uso restrito (art. 16), não seria crime.
V- É prescindível qualquer análise acerca da arma possuir ou não numeração raspada ou de ser de uso restrito das Forças Armadas (insuscetíveis de legalização), pois o Estatuto previa não só a possibilidade de regularização da arma, mas também, a sua simples entrega à Polícia Federal, mediante indenização, em alguns casos.
VI- Incidência da abolitio criminis temporária, tanto no tocante ao art. 12, quanto ao art. 16, ambos da lei 10.826/03, que, pela simples posse, ficaram desprovidos de eficácia durante o período estipulado nos arts. 30 e 32 da referida norma legal. Destaca-se que o interstício se iniciou em 23/12/2003 e teve seu termo final prorrogado até 23/10/2005 (cf. Medida Provisória 253/2005 convertida na lei 11.191/05), no tocante à posse irregular de arma de fogo ou munição de uso permitido e restrito ou proibido.
VII - Esse termo final foi estendido até 31 de dezembro de 2008, alcançando, todavia, somente os possuidores de arma de fogo e munição de uso permitido (nos exatos termos do art. 1º da Medida Provisória 417, de 31 de janeiro de 2008, convertida na lei 11.706, de 19 de junho de 2008, que conferiu nova redação aos arts. 30 e 32 da lei 10.826/03). Por meio da lei 11.922/09, referido prazo foi prorrogado para o dia 31/12/2009.
VIII - Conforme o entendimento desta Corte, deve ser considerada atípica a conduta praticada pelo paciente em 12/3/2004, de possuir, no interior de sua residência, arma de fogo de uso restrito.
IX - Ordem denegada, nos moldes como impetrada. Habeas Corpus concedido de ofício a fim de absolver o paciente, nos termos do art. 386, III do Código de Processo Penal, por atipicidade da conduta.
Logo, antes de se pensar na criação de campanhas de desarmamento para retirar de circulação armas de fogo e munição, seria interessante a reflexão acerca das consequências dessa medida, sob pena do indivíduo honesto entregar sua arma de fogo para receber de R$ 100,00 a R$ 300,00 e o marginal ou o criminoso habitual continuar na posse de seus armamentos, impunemente, pois o último estará amparado pela lei que criou a campanha do desarmamento, em razão da atipicidade da conduta - ABOLITIO CRIMINIS TEMPORÁRIA.
Em suma e para concluir, penso que é preciso debater a consequência sobredita com a sociedade, a fim de que se mantenha informada e possa opinar se a impunidade gerada é compensada pelos benefícios da campanha do desarmamento.
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*Juiz de Direito no Estado de São Paulo e Docente Formador da Escola Paulista da Magistratura – EPM
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