A sucessão dos cônjuges no novo Código Civil
Luiz Felipe Brasil Santos*
2. A primeira evidência disso está em que são agora herdeiros necessários (art. 1.845). E isso, frise-se, independentemente do regime matrimonial de bens. Assim, mesmo no regime da separação de bens (convencional ou obrigatória), terá o cônjuge assegurada a legítima (art. 1.846), o que tem levado alguns a afirmar que o novo Código favorece o "golpe do baú".
3. O artigo 1.829 dispõe sobre a ordem de vocação hereditária, fazendo com que o cônjuge, que antes ocupava o terceiro lugar, depois dos descentes e dos ascendentes, passe agora a concorrer com estes.
Com descendentes (inc. I), a concorrência do cônjuge dependerá do regime de bens vigente. Assim, somente concorrerá quando o regime for algum dos seguintes : a) separação convencional de bens; b) comunhão parcial, quando existentes bens particulares; c) participação final nos aqüestos.
Em se tratando do regime da comunhão parcial – que continua a ser o regime legal (art. 1.640), e, portanto, o mais freqüente – a concorrência do cônjuge com os descendentes somente se estabelecerá quando houver bens particulares deixados pelo autor da herança. Na hipótese contrária (inexistência de bens particulares) o cônjuge não concorrerá com os descendentes. Os bens particulares (não comunicáveis), no regime da comunhão parcial, estão agora elencados no artigo 1.659, incisos I a VII, e 1.661.
Tal regra se ostenta de complexa aplicação e, tudo indica, dará ensejo a acirradas disputas. Um singelo exemplo ajudará a compreender as dificuldades possíveis. Imagine-se, primeiramente, a situação de um casal, com um filho, cujo único patrimônio seja constituído pelo apartamento onde reside (no valor de R$ 99.000,00) adquirido na constância do casamento. Nesse caso, falecendo o varão, e não havendo bens particulares, a mulher não concorrerá com o filho, recebendo apenas sua meação (correspondente, no caso, a R$ 49.500,00). Admitamos, agora, que, além desse apartamento, o autor da herança fosse proprietário de uma bicicleta (no valor de R$ 1.000,00), que, por ter sido adquirida em sub-rogação de um bem pré-existente ao casamento, constitui bem particular (art. 1.659, II). Nessa hipótese, existindo bem particular, o cônjuge concorrerá com o descendente, em igualdade de condições, recebendo, portanto, – além de sua meação sobre o apartamento (R$ 49.500,00) – a título de herança, a metade de todos os bens deixados pelo "de cujus", ou seja, mais R$ 25.500,00. O total dos bens que caberão ao cônjuge sobrevivente (meação + quinhão hereditário) corresponderá, neste segundo caso, a R$ 75.000,00, ficando o filho com R$ 25.000,00. Como se vê desse exemplo, a simples existência de uma bicicleta (na condição de bem particular, no valor de 1% do total dos bens), faz com que surja o direito do cônjuge de concorrer com o descendente, aumentando desproporcionalmente o valor que lhe caberá, que passa de R$ 49.500,00 (na primeira situação, em que recebe apenas a meação) para R$ 75.000,00 (na segunda situação, onde, por existir bem particular, concorre com o descendente)!
Não é demasia frisar que a circunstância de existir um singelo bem particular – mesmo de ínfimo valor – definirá a condição de herdeiro concorrente do cônjuge não apenas sobre esse bem particular, mas sobre o total da herança. Outra não é a conclusão que se extrai do texto expresso em exame, que se reforça ainda mais com o que dispõe o artigo 1.832, que assegura ao cônjuge, quando concorrer com descendentes comuns, a quarta parte da herança .
Tendo em conta que o princípio da livre estipulação continua contemplado na nova codificação (artigo 1.639) – o que permite aos cônjuges estipular, quanto aos seus bens, qualquer regime, mesmo diverso daqueles contemplados no próprio código, desde que observadas as limitações legais – é lícito concluir que sempre que for previsto, mediante pacto antenupcial, um regime que não seja qualquer daqueles expressamente excluídos pelo inciso I, do art. 1.829, o cônjuge concorrerá com os descendentes.
Outrossim, o cônjuge sempre concorrerá com os ascendentes (inc. II), qualquer que seja o regime matrimonial de bens, devendo ser observado o que dispõe o artigo 1.837, ou seja : a) concorrendo com dois ascendentes de primeiro grau, o cônjuge recebe um terço da herança; b) concorrendo com um ascendente de primeiro grau, recebe a metade da herança; c) concorrendo com um ou vários ascendentes de segundo ou maior grau, o cônjuge tem assegurada a metade da herança.
4. O direito real de habitação relativamente ao imóvel destinado à residência da família – antes assegurado exclusivamente ao cônjuge sobrevivente que fosse casado sob o regime da comunhão universal de bens e apenas enquanto mantivesse a condição de viúvo (art. 1.611, p. 2o., do Código de 1916) – passa agora a ser garantido independentemente do regime de bens, e mesmo que venha o sobrevivente a contrair novo casamento (artigo. 1.631). Em contrapartida, desaparece o direito ao usufruto (antes assegurado, pelo art. 1.611, p. 1o., do Código de 1916, a quem fosse casado por regime de bens diverso da comunhão universal), o que se explica pela circunstância de que, naqueles casos, o cônjuge concorrerá agora com os descentes ou com os ascendentes, como visto.
5. A quarta regra que confere tratamento privilegiado aos cônjuges no âmbito sucessório encontra-se no artigo 1.832 que lhes assegura uma quota mínima de uma quarta parte na herança, ao concorrer com descendentes comuns. Assim, mesmo que sejam seis os filhos comuns do casal, o cônjuge sobrevivente receberá um quarto da herança. Igual garantia não ocorre, entretanto, quando a concorrência se der com descendentes apenas do autor da herança. Sem solução na lei se apresenta a hipótese de a concorrência se estabelecer com filhos comuns e, cumulativamente, com filhos apenas do autor da herança. Nesse caso, a solução que se mostra mais consentânea com o espírito protetivo da lei, é também assegurar ao cônjuge supérstite a quarta parte da herança, partindo-se do pressuposto de que, face à igualdade constitucional assegurada aos filhos, inviável estabelecer entre eles qualquer diferença de quinhões.
6. Regra que merece crítica é a do artigo 1.830, que assegura direito sucessório ao cônjuge mesmo que o casal esteja separado de fato, desde que o seja por menos de dois anos, podendo ser até maior esse prazo, devendo, neste caso, ser comprovado que a separação ocorreu sem culpa do sobrevivente.
Como já vinha sendo decidido por expressiva jurisprudência, não se justifica a preservação do direito sucessório do cônjuge quando o casal se encontra separado de fato, independentemente do prazo da separação. Porém, pior ainda é manter o direito sucessório por prazo maior do que dois anos de separação fática, vinculando-se à inexistência de culpa do sobrevivente. Tem-se aqui notável retrocesso legislativo, na medida em que o novo Código traz o questionamento da culpa pela separação para dentro do âmbito do inventário, quando doutrina e jurisprudência mais abalizadas já vinham sustentando a conveniência de afastar o princípio da culpa até mesmo na separação judicial. Ademais, na medida em que se estabeleça controvérsia acerca de configuração ou não da culpa, ter-se-á caracterizada uma questão de alta indagação, o que obrigará que o tema seja afastado do inventário, remetendo-se o debate para as vias ordinárias (art. 984, CPC). Fácil antever as conseqüências processuais daí decorrentes...
Frise-se que é do cônjuge sobrevivente o ônus de produzir prova de que a separação fática se deu sem
7. Como se vê, o novo regramento do direito sucessório dos cônjuges, embora se reconheça a justiça do espírito protetivo que o inspira, ostenta grande complexidade, que certamente gerará um acirramento das disputas travadas no âmbito dos inventários, com a conseqüente ampliação dos prazos para encerramento desses feitos, já hoje tão dilatados.
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