Cinzas, Cinzas
Edson Vidigal*
O sol daqui a pouco se derramar mais alguma luz dará uma nitidez plena a isso tudo que a vista alcança, mas na essência não alterará muito em nada.
O amanhecer assim como se o sol embora acordado ainda relutasse em sair da cama insubstituível como ele só para os seus afazeres emparelha a nascente com o poente.
Há galos cantando intermitentemente por quase todos os cantos do quintal entre o mangueiral e há também jumentos do outro lado do açude que relincham de hora em hora.
As folhas nos galhos das árvores estão como paralelepípedos. Pesados e parados. Não há vento a movê-las em dança alguma.
Alguns passarinhos bicando uma goiaba ali ou uma carambola acolá dão vida ao cenário até aqui meio de natureza sonífera.
São os gansos que, em decolagens e voos que terminam no açude, irrompem o silêncio. Dá para ouvir o cantar distante e insistente de um pássaro conhecido como fogo-apagou.
Mensageiro de paz, esse fogo-apagou.
Ainda que as queimadas se estendam por áreas inimagináveis quase alcançando as cercanias da cidade como denuncia o satélite do Google não se deve perder de ouvidos a sua mensagem carregada de otimismo – fogo-apagou!
À frente após três degraus a porta verde se mantém fechada. Dois pavimentos estampando outras cores e lá dentro só livros, muitos livros, milhares de livros.
Tenho maior respeito e carinho pelos meus livros. Não os quererei inservíveis nas exposições das calçadas ou anônimos nas esperas dos sebos. Quero que tenham destinação útil a mesma que eles tiveram e ainda têm quanto a mim.
Ainda vou ter tempo para cuidar melhor disso.
Uma pesquisa entre países denuncia que as crianças que frequentam escolas, as do Brasil são as que menos lêem livros. As suas famílias não têm poder aquisitivo e a cada dia mais decai entre os jovens o hábito da leitura.
Um país se faz com homens e com livros assim falou Monteiro Lobato. Queres escrever? Te dana a ler. A leitura é o trapézio da imaginação. Se não sabes pensar, não saberás criar. Toda criação resulta de um disciplinado bem pensar.
A gente vê hoje muita gente bem formada tropeçando em caroços de milho da ortografia. Mentes quando muito prontas a responderem apenas ao mínimo que impõem os exercícios da sobrevivência.
As portas verdes que levam aos livros vão continuar fechadas por mais umas horas até que se diluam esses prenúncios de chuvas que acinzentam a manhã.
Nada por aqui agora é absoluto nem mesmo o silêncio. Há verde em quase tudo. E parestesia nas folhas, nas gramas, nas portas e janelas. Não escorre o vento.
Compensa o sorriso pacificador da mulher amada, o beijo alentado da mulher amada, a certeza de mais um dia em paz com a mulher amada.
O sol ainda dorme. Afinal ninguém é de ferro. É quarta-feira de cinzas.
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*Ex-Presidente do STJ e Professor de Direito na UFMA
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