Abuso de direito e a cláusula contratual de não renúncia a direitos
Fernando Dizero Senise*
O abuso de direito consiste no exercício de determinado direito, excedendo-se manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social. É ato ilícito caracterizado pelo exercício anormal, irregular de um direito.
É importante lembrar que a teoria geral dos atos ilícitos, no contexto do Código de 2002 (clique aqui), contempla dois tipos de atos ilícitos: os subjetivos (art. 186, CC) e os objetivos (art. 187, CC).
Os subjetivos estão baseados na antiga noção de culpa em sentido amplo (dolo ou culpa em sentido estrito). Já os objetivos baseiam-se em um novel critério, o teleológico, visando à proteção da confiança nas relações negociais, como decorrência do novo paradigma ético trazido pela codificação civil, sob o prisma da Constituição Federal (clique aqui).
São os atos ilícitos objetivos, denominados pelo Código Civil genericamente de abuso de direito (art. 187), que nos interessam para fins de cotejo com a mencionada cláusula de não renúncia a direitos e, para os fins específicos deste artigo, a espécie de abuso denominada adoção de comportamentos contraditórios.
Nas palavras de Luciano de Camargo Penteado1, o comportamento contraditório é caracterizado quando uma pessoa, durante determinado período de tempo, em geral longo, mas não medido em dias ou anos, comporta-se de certa maneira, gerando a expectativa justificada para outras pessoas que dependem deste seu comportamento, de que ela prosseguirá atuando naquela direção. Contudo, há uma frustração da expectativa gerada, a partir da adoção de comportamento subsequente contraditório ao inicialmente manifestado. Assim, tido por ilícito.
Assim, a adoção de comportamentos contraditórios corresponde a uma sequência de comportamentos antagônicos entre si. Dessa espécie resulta a regra de proibição de comportamentos contraditórios que visa a tutelar o princípio da confiança, norteando a boa-fé nas relações negociais.
Essa ligeira incursão sobre a regra de proibição de comportamentos contraditórios já nos permite avançar sobre o tema proposto, que é refletir sobre a cláusula de não renúncia a direitos, visto que é muito comum que se faça inserir estas cláusulas nas disposições gerais dos instrumentos contratuais.
Geralmente, tal cláusula tem redação muito próxima à seguinte:
A abstenção do exercício, por qualquer das partes, de direitos ou faculdades que lhes assistam em razão do Contrato, ou a sua tolerância quanto ao atraso no cumprimento das obrigações nele pactuadas, não caracterizarão novação, nem tampouco afetarão tais direitos ou faculdades, que poderão ser exercidos a qualquer tempo.
E esse é apenas um exemplo das dezenas de formas que a sua redação pode tomar, sem prejuízo de outras, mais ou menos prolixas, porém, querendo significar que a omissão de qualquer das partes em exigir, logo que possível, seus direitos contratualmente estabelecidos, não teria o condão de prejudicar a faculdade da parte em exercitá-los.
Mas, será que tal previsão contratual, inicialmente perfeita, válida e eficaz, permanece com esses qualificativos no caso do exercício abusivo de um direito?
Tomemos o caso que nos é apresentado pela jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo e citado pelo Professor Flávio Tartuce2 em artigo publicado sobre o tema:
Dano moral. Responsabilidade civil. Negativação no Serasa e constrangimento pela recusa do cartão de crédito, cancelado pela ré. Caracterização. Boa-fé objetiva. "Venire contra factum proprium". Administradora que aceitava pagamento das faturas com atraso. Cobrança dos encargos da mora. Ocorrência. Repentinamente invoca cláusula contratual para considerar o contrato rescindido, a conta encerrada e o débito vencido antecipadamente. Simultaneamente providencia a inclusão do nome do titular no Serasa. Inadmissibilidade. Inversão do comportamento anteriormente adotado e exercício abusivo da posição jurídica. Recurso improvido (Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação Cível n. 174.305-4/2-00, São Paulo, 3ª Câmara de Direito Privado – A, Relator: Enéas Costa Garcia, J.16.12.05, V. U., Voto n. 309). – grifei.
No contexto do julgado supra mencionado, suponha-se que do contrato celebrado entre o titular do cartão de crédito e a administradora constasse uma cláusula de não renúncia a direitos, no formato supra mencionado ou noutro – o que é bastante provável, dada a praxe de sua adoção.
A cláusula não seria ilícita, <_st13a_personname w:st="on" productid="em princ?pio. Ao">em princípio. Ao contrário, nasceria lícita. Sua ilicitude, entretanto, seria verificada posteriormente e no caso concreto, quando da adoção de comportamentos contraditórios pela administradora do cartão de crédito - primeiro, aceitar pagamentos em atraso, com cobrança de encargo e, após, contraditoriamente, realizar o pedido de rescisão do contrato motivado pela mora, com a inclusão no nome do devedor no Serasa.
No caso citado, depreende-se da ementa que da ilicitude do ato contraditório decorrerá efeito invalidante (art. 166, II), que não alcançaria o negócio como um todo, mas apenas a cláusula de não renúncia a direitos, impossibilitando a rescisão do contrato, com as consequências que daí seriam decorrentes.
Ante ao exposto, pode-se concluir que nossa doutrina e jurisprudência pregam que, em determinadas circunstâncias, a cláusula de não renúncia a direitos poderá ser declarada inválida, a fim de impedir o exercício abusivo de direito por parte de algum dos integrantes de determinada relação jurídica contratual.
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1 PENTEADO, Luciano de Camargo. Figuras Parcelares da Boa-Fé Objetiva e Venire Contra Factum Proprium. Disponível em - clique aqui. Acesso em: 14/02/2011.
2 TARTUCE, Flávio. A Boa-Fé Objetiva e os Amendoins: Um Ensaio Sobre a Vedação do Comportamento Contraditório (Venire Contra Factum Proprium Non Potest). Disponível em - clique aqui. Acesso em: 14/02/2011.
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*Advogado do escritório Albino Advogados Associados
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