Deus não nos deixa órfãos
Esta missão não priva o enviado divino da fragilidade própria a todo ser humano. Mesmo para quem se dedica a prestar atenção às pessoas especialmente iluminadas, às vezes, a vida é tão dura e a história caminha por entreveros tão inexplicáveis, que se pode ter a sensação de que Deus está ausente, o Espírito Santo cochila e nós ficamos na orfandade. Na Bíblia, salmos e lamentos do povo se resumem no grito: “Por que te escondes no tempo da angústia? (Salmo 10, 1)”. “Por que ocultas o teu rosto e te esqueces de nós? (Cf. Sl 44, 24; 88, 14). A parábola do justo Jó discute exatamente esta sensação de que Deus nos deixa órfãos. Na América, a experiência do seqüestro e escravidão de populações inteiras da África assim como a perseguição e extermínio de povos indígenas foram motivos justos de protesto contra a impressão de que Deus não cumpre suas promessas e não salva os seus filhos quando estes o invocam. Diante da dor nenhuma explicação consola, assim como frente à injustiça e a venalidade, inerentes ao poder auto-referente, só a indignação ética consegue recordar aonde ainda se esconde o amor. Por isso, quando o Espírito Santo elege seus ungidos e nos presenteiam com mensageiros da sua ternura, só podemos nos alegrar e festejar.
Nestes dias, somos convidados a participar de uma entronização que é símbolo deste fato de que Deus não nos deixa órfãos. Nesta 2ª feira, 2 de maio, uma das mais famosas mães de santo do Candomblé brasileiro está completando 80 anos e recebe o título de Doutor Honoris-Causa da Universidade Federal da Bahia. Maria Stella de Azevedo Santos, Mãe Stella de Oxossi, cujo nome sagrado na sua tradição é Ode Kayode, responde como Ialorixá do Illê Axé Opô Afonjá, aldeia religiosa de tradição Ioruba em Salvador- BA. O Opô Afonjá sedia uma das mais tradicionais e importantes comunidades da religião dos Orixás no Brasil. Por quase 30 anos, Mãe Stella dirige a comunidade e tem sido mestra espiritual de gerações inteiras de pessoas das mais diversas tradições espirituais.
Quem conhece Mãe Stella sabe como é uma pessoa discreta e profunda. Sua formação humana foi no campo da enfermagem. Até aposentar-se, trabalhou na Secretaria de Saúde Pública do Estado da Bahia. E por toda a vida, foi aprendendo a unir uma profunda educação espiritual a esta profissão tão simbólica que é cuidar da saúde e atender as pessoas que a procuram, carregando na alma ou no corpo, as marcas da fragilidade humana. Sua comunidade pode lhe agradecer a sabedoria de preservar a tradição religiosa e, ao mesmo tempo, ser capaz de adequá-la às necessidades do tempo em que vivemos. Quando ela completou 60 anos de iniciação no Candomblé, o mestre Agenor Miranda escreveu: “Stella sabe que tudo muda. Por isso, a religião tem de mudar. Precisa modernizar-se para não envelhecer”2.
Para a sociedade mais ampla, Mãe Stella empreendeu importantes iniciativas culturais e sociais, como a fundação da Escola Anna dos Santos que atende a população do bairro e é das raras escolas brasileiras que forma os alunos a partir dos valores culturais da tradição afro-descendente. Também organizou um museu da tradição nagô no próprio terreno da comunidade. Hoje, todo o conjunto do Axé foi reconhecido pelo Ministério da Cultura como patrimônio cultural do Brasil.
Infelizmente, as Igrejas cristãs, convictas de serem possuidoras da verdade única, não perceberam isso. Muitas vezes, de forma absolutamente injusta e antievangélica, ministros de Deus condenaram e perseguiram estas manifestações espirituais. É preciso que, ao pedido de perdão de líderes como o papa João Paulo II, acrescentem-se e atualizem-se a necessária valorização destas tradições religiosas autônomas e a alegria porque o Espírito Divino se revela na vitalidade espiritual de profetizas como Mãe Stella de Oxossi. Parabéns, Ode Kayodé!
____________
1CF. AGENOR MIRANDA, Mãe Stella, 60 anos de iniciação, obra coletiva organizada por CLÉO MARTINS e RAUL LODY, Ed Pallas, São Paulo, 1999, p. 11.
____________
* Monge beneditino e autor de 27 livros
____________