ACTA: ajuda ou ameaça?
Márcio Mello Chaves*
As reuniões, que vem sendo conduzidas "de portas fechadas" para o arrepio dos defensores do discurso livre2, em muito se diferem nos novos estágios da livre discussão legislativa a que temos contato atualmente, à exemplo do marco civil da internet no Brasil3.
O Acordo, que conta hoje com onze participantes,4 versa sobre o aumento da rigidez no cumprimento das normas de proteção à propriedade intelectual por meio da cooperação internacional entre os países participantes, como forma de combate à pirataria, o que abre caminho para discussões que envolvam implicações desde produtos falsificados até medicamentos genéricos e troca de arquivos pela internet.
Seu alcance, porém, pode causar efeitos nas economias de todo o mundo em virtude dos reflexos oriundos da aceitação por países como os EUA5 ou ainda a Comunidade Europeia. Grandes economias como o Brasil, a Rússia, a Índia e a China – BRIC – não têm conhecimento oficial dos textos discutidos, mas serão alvo certeiro de sessões econômicas para sua assinatura ou sofrerão, ainda que indiretamente, seus efeitos.
Histórico
Criado por iniciativa dos EUA e Japão em 2006, as discussões tiverem em 2007 a adesão da Suíça e da União Europeia, seguido de 9 outros Estados em 2008, ano em que ocorreu o vazamento da primeira minuta na internet.
Em 2009 e 2010 novas minutas foram divulgadas extra-oficialmente na internet, que culminou na disponibilidade integral e oficial da minuta do acordo 20 de abril, causando grande alvoroço no cenário da propriedade intelectual internacional.
O caráter secreto, no entanto, foi bastante combatido no meio jornalístico, político e acadêmico, principalmente após o reconhecimento pelo Parlamento Europeu da necessidade de dar publicidade às discussões e resultou no vazamento quase instantâneo da última minuta consolidada oriunda da reunião realizada em julho de 2010.
Características do Acordo: do Segredo ao Forum Shifting
O ACTA é um acordo multilateral e tem como principal característica, além da mencionado e combatido segredo nas negociações, a total ausência de potências do BRIC e dos organismos internacionais de comércio e de propriedade intelectual tais como a OMC e a OMPI.
As mencionadas ausências, no entanto, podem ser tão facilmente compreendidas quanto ao caráter secreto do acordo: permitir sua aprovação em um ambiente diverso sem maiores empecilhos oriundos das discussões de seus termos, também conhecido como forum shifting ou mudança de foro.
A OMPI, fundada em 1967 e administradora de 25 tratados internacionais, conta com voto único por Estado membro e, desde 2007, com a Agenda para o Desenvolvimento6, o que certamente dificultaria as intenções dos Estados participantes das negociações do ACTA em durante as discussões dos termos do acordo.
A utilização do forum shifting nos tratados internacionais não é novidade no universo da propriedade intelectual. Assim o foi o atual Tratado para os Aspectos Relacionados à Propriedade Intelectual – TRIPS7, que também foi realizado sem a participação da OMPI. O tratado teve grande aceitação8 entre as nações desenvolvidas e em desenvolvimento exatamente por ter sua adesão como condicionante para participação da OMC.
Assim, da mesma forma como que ocorreu quando da negociação do TRIPS, o forum shifting para evitar os votos contrários dos membros oriundos de países em desenvolvimento, está sendo aplicado na negociação do acordo.
Conteúdo do Acordo
Conforme dito anteriormente, as implicações da assinatura do ACTA por grandes potências tais quais os EUA e a UE, podem afetar diretamente os países em desenvolvimento, dentre eles o Brasil.
Por se tratar, em sua essência, de um aumento da rigidez na proteção da propriedade intelectual na escala comercial, seu foco estaria, em tese, afastado dos direitos fundamentais e liberdades civis que afetam o cidadão comum9.
O acordo, no atual estágio de negociação conta com 34 páginas de definições e dispositivos e contém 6 capítulos, dentre os quais o capítulo de maior discussão sem dúvida é o II – Bases Legais para a Proteção da Propriedade Intelectual.
Dividido em 4 sub-capítulos, (i) Procedimentos Cíveis, (ii) Medidas Protetoras em Fronteiras, (iii) Procedimentos Criminais e (iv) Proteção dos Direitos de Propriedade Intelectual no Meio Eletrônico, estes merecem destaque por permitirem interpretações com alcance além daquele inicialmente pretendido.
Procedimentos Cíveis
O tópico sobre procedimentos cíveis encontra maior polêmica quando aborda as ações na esfera administrativa que podem ser tomadas após a constatação da contrafação. Ordens desde a cessação da violação, a definição de perdas e danos, quando houver dificuldade na especificação do quantum indenizatório até a previsão de reembolso de honorários e custas estão previstas no capítulo.
Tais previsões objetivam a obtenção de respostas rápidas e completas pela via administrativa sem a necessidade de provocar o Poder Judiciário e encontram, em si só, argumentos contrários haja vista que implicam na delegação de competência para as autoridades alfandegárias agirem como se judiciárias fossem.
Medidas Protetoras em Fronteiras
As medidas protetoras em fronteiras, essenciais para garantir melhor efetividade na proteção dos Direitos de Propriedade Intelectual – DPI – trazem alguns pontos de destaque:
(i) a possibilidade de busca ou impedimento de transposição de fronteiras, novamente sem autorização judicial ou sem mesmo qualquer aparência de violação dos DPIs;
(ii) regulamentação de procedimentos para determinar administrativamente a ocorrência de violação de DPI;
(iii) possibilidade de solicitação pelo proprietário do DPI da suspensão da entrada de produtos suspeitos;
(iv) responsabilidade do suposto infrator pelos custos de depósito e destruição de bens contrafeitos apreendidos;
(v) possibilidade de requerer caução para liberação de bens suspeitos apreendidos; e
(vi) exclusão bens pessoais de viajantes das buscas realizadas em fronteiras.
Enquanto os itens (i) a (v) encontram severas criticas que envolvem a delegação de competência para as autoridades administrativas das demandas normalmente propostas perante o Poder Judiciário, o último item encontra fortes criticas quanto ao risco de violação de privacidade quando de sua aplicação prática.
Termos cunhados tais como o "efeito iPod" retratam o risco de buscas em aparelhos eletrônicos portáteis, tais como MP3 players e notebooks, de cópias ilegais de músicas, filmes, livros, etc, resultando em confisco ou até destruição dos aparelhos que conterem o referido apontam como provável risco ao referido direito e encontram apoio em entidades protetoras destas garantias individuais.
Ainda, pontos sensíveis como o acesso universal aos medicamentos para proteger a saúde pública como a possibilidade de obtenção de versões genéricas mais baratas de medicamentos para os países mais pobres poderão sofrer implicações e acarretar em novas apreensões de remédios legitimamente10.
Felizmente, o texto prevê a possibilidade dos países signatários excluírem do escopo do acordo quando forem encontrados em bagagem pessoal e de natureza não-comercial, mas tais exclusões não têm sido aceitas como prováveis exatamente em virtude dos termos em que se encontram nas minutas disponibilizadas até o momento.
Procedimentos Criminais
Na área dos procedimentos criminais, o acordo prevê a quantificação do quantum necessário para caracterizar o tipo penal de violação de direitos de marcas, de autor e conexos. Prevê, ainda, a possibilidade de ação ex officio pelas autoridades, ordenando buscas e apreensões de bens contrafeitos, além da possibilidade de tipificar, especificamente, a filmagem amadora em salas de cinema.
Tais previsões podem resultar em violações ao princípio do devido processo legal e ao de presunção de inocência, uma vez que permitem decisões e definições na esfera administrativa com consequências penais.
Proteção dos Direitos de Propriedade Intelectual no Meio Eletrônico
Por último, a proteção dos DPI em Meio Eletrônico chama a atenção na esfera da livre circulação do conhecimento. Direcionado aos desafios das novas tecnologias, o acordo prevê remédios contra a violação de DPI online e a circunvenção de meios de proteção tecnológica, sugerindo políticas como a do three-strikes policy como forma de limitar a responsabilidade dos provedores de internet.
No entanto, as implicações práticas dos efeitos para os consumidores da aplicação de um novo tratado, nos termos em que o ACTA vem sendo discutido, repercutem negativamente pela internet e, como dito, encontram amparo em instituições de porte que combatem com vigor sua negociação e seus termos propostos.
Conclusão
Ultrapassado o frisson inicial originado pela ausência de publicidade envolvendo as reuniões e das possíveis consequências perante consumidores, percebemos que apesar de o acordo aparentar em um primeiro momento uma melhora na aplicação dos direitos de propriedade intelectual, seus termos ainda são no mínimo dúbios quanto à interpretação e possíveis consequências.
Sabemos que por se tratar de um acordo internacional, as negociações feitas entre os Estados Membros, quando aceitas, passam a integrar a legislação nacional com implicação interna imediata. Ainda, o uso de incentivos comerciais influencia na persuasão de outros Estados a adotá-lo, sem margem de negociação por não terem feito parte da discussão.
Questões que envolvem o acesso ao conhecimento, o direito à privacidade merecem maior discussão e devem ser aplicados com extrema cautela. Ainda, pontos sensíveis, como o acesso a medicamentos por países em desenvolvimento, levam às discussões o peso das implicações práticas na saúde pública destas nações.
Ainda não sabemos quais serão as verdadeiras consequências do ACTA além daquelas que abrangem o universo da propriedade intelectual, não apenas nos países que participam das rodadas de negociação, mas principalmente, nos integrantes do BRIC ou nos países em desenvolvimento e que, por tal condição, merecem atenção especial.
O acompanhamento de perto da evolução das discussões pelos governos dos países não participantes, pelas entidades internacionais ligadas à propriedade intelectual (OMPI), e representativas nacionais de comércio e defensoras dos direitos universais individuais é de extrema importância.
Os impactos da concretização de um acordo internacional deste porte sem tais participações poderão atingir todos os demais países do mundo nos âmbitos da saúde, da disseminação de cultura, da inovação, apesar de direcionado e amparado para atuar estritamente no âmbito da proteção dos DPI e, portanto, merecem atenção e participação de todos.
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1 Apesar de amplamente divulgado pela imprensa internacional, o caráter confidencial das negociações não é aceito como tal pela União Europeia. Os EUA defendem que é necessária a manutenção da confidencialidade nos estágios iniciais da negociação.
2 O Acordo conta com oposição formal de entidades como a FGV-Rio (Fundação Getúlio Vargas), EFF (Electronic Frontier Foundation), Consumers International, Free Software Foundation, Berkman Center for Internet & Society (Harvard), Doctors without Borders, dentre outros.
3 O processo que ainda está em desenvolvimento para a elaboração do marco civil da internet no Brasil contou com a 1ª fase aberta à todos para a colheita de sugestões e encontra-se na 2ª fase, onde discussões acerca da minuta de anteprojeto de lei estão sendo realizadas por cidadãos e entidades privadas a exemplo da Câmara e-net.
4 Oficialmente na 8ª Rodada de Negociações realizada em Lucerne, Suíça, em junho de 2010, estavam presentes: Austrália, Canadá, União Europeia (e seus 27 membros), Japão, Coreia do Sul, México, Marrocos, Nova Zelândia, Singapura, Suíça e Estados Unidos.
5 Os EUA contam com grande participação de gigantes da iniciativa privada integrando o Comitê Consultivo do Ministério do Comércio Americano tais como Google, eBay, Dell, BSA, Sony Pictures, Verizon, MPAA, Time Warner, Merck & Co, Monsanto Company, RIAA, IBM, Association of American Publishers, GM, Generic Pharmaceutical Association, Abbott Laboratories, DuPont, Johnson & Johnson, Pfizer, Oracle, Sun Microsystems, The Procter & Gamble, Intel Corporation, entre outros.
6 A Agenda para o Desenvolvimento foi criada por iniciativa do Brasil e da Argentina em 2004 e baseia suas ações nas 45 recomendações aprovadas que versam sobre capacitação, assistência tecnológica, flexibilizações, domínio público, acesso ao conhecimento, dentre outros.
7 O TRIPS foi negociado na Rodada do Uruguai em 1994 e que resultaram na criação da Organização Mundial do Comércio – OMC.
8 A OMC conta atualmente com 153 membros, os quais se obrigaram a cumprir os parâmetros mínimos de proteção à propriedade intelectual estabelecidos pelo TRIPS ao aderirem ao organismo internacional, no final da Rodada Uruguaia no Acordo Geral de Tarifas e Troca (GATT), assinado em Marrakesh em 1994.
9 O governo norte-americano declarou que seus termos serão consistentes e complementares com aqueles inseridos pelo TRIPS, respeitando inclusive a Declaração deste órgão quanto à Saúde Pública.
10 Em dezembro de 2008 um carregamento de medicamentos oriundo da Índia com destino ao Brasil foi barrado em trânsito na Holanda e foi objeto de consulta na OMC em maio deste ano.
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*Advogado do Almeida Advogados
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