O Tribunal Penal Internacional e os Estados Unidos
Em homenagem ao
Professor Sérgio Marcos de Moraes Pitombo
Olivia Raposo da Silva Telles*
Neste momento em que a efetividade da ONU tem sido alvo de intensos questionamentos, aqueles que sonham com a construção de uma autêntica ordem pública internacional, fundada no respeito aos direitos humanos, têm um excepcional motivo para se manterem confiantes: a entrada em vigor do Estatuto de Roma, que criou o Tribunal Penal Internacional.
O Tribunal, que tem competência para julgar os autores dos mais graves crimes de transcendência internacional – genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crime de agressão - está em vias de instalação. Hoje tomam posse os
Ante a delinqüência internacional dos Estados Unidos, a pergunta inevitável é: poderão as autoridades e os militares americanos vir a ser responsabilizados penalmente pelo Tribunal pelos crimes contra a humanidade e de guerra que forem cometidos durante o ataque ao Iraque?
Os Estados Unidos tudo têm feito para impedir esse desfecho. Durante as negociações do Estatuto de Roma, procuraram tolher a efetividade do Tribunal em todas as frentes: desde as disposições sobre o alcance da jurisdição, passando pela competência material, até as normas penais e processuais, todos os aspectos foram alvo de sua campanha pela impunidade. Durante o governo Clinton, em 31/12/2000, os Estados Unidos chegaram a assinar o Estatuto de Roma; mas, em 6/5/2002, declararam formalmente não apenas sua intenção de não se tornarem partes no Estatuto, mas também a inexistência de quaisquer deveres decorrentes da assinatura.
Por esse motivo, é preciso começar a preparar, desde já, a ação política conducente à reforma dos pontos do Estatuto que resultaram da resistência oposta pelos Estados Unidos, por meio de emendas que poderão ser feitas a partir de 2009.
Mas não se pode deixar de reconhecer que a ação organizada das delegações dos países favoráveis à criação de um tribunal com poderes amplos, durante a Conferência de Roma, somada ao intenso engajamento das numerosas ONGs, levaram à incorporação ao Estatuto de notáveis avanços.
Em primeiro lugar, há que assinalar que a jurisdição do Tribunal é obrigatória para todos os Estados-Partes, e isso sem que sejam admitidas reservas.
Há que assinalar igualmente a fixação, como elemento de conexão entre os Estados-Partes e os indivíduos acusados da prática dos referidos crimes, não só do critério da nacionalidade, mas também do território em que o crime foi cometido, que permite que o nacional de um Estado que não é parte no Estatuto possa vir a ser julgado pelo Tribunal, se o crime tiver sido praticado no bojo de uma operação militar no exterior.
Assim também quanto às disposições do Estatuto que reconhecem a especificidade da violência contra mulheres e crianças, notadamente das atrocidades de natureza sexual, das quais se deplora o brusco recrudescimento na época atual.
O mesmo vale para o poder conferido ao Promotor para iniciar as investigações com base numa noticia criminis recebida seja lá de quem for, e não apenas necessariamente dos Estados-Partes ou do Conselho de Segurança.
Cumpre lembrar ainda o direito reconhecido às vítimas de participar de todas as fases do processo, bem como de ter sua segurança, bem-estar, dignidade e vida privada protegidos pelo Tribunal.
Some-se a tudo isto o fato de que 89 países já se tornaram parte no Estatuto, entre eles grandes potências, como Alemanha, Canadá, França, Itália e Reino Unido. Todas essas conquistas fundamentam a esperança na consolidação de um tribunal sereno, independente e efetivo no cumprimento de sua missão de pôr fim à impunidade dos autores desses crimes abomináveis.
Mas há também os pontos do Estatuto em que prevaleceu a resistência oposta pelos Estados Unidos, e que deverão ser objeto de reforma. Entre eles figura, em primeiro lugar, a ausência da tipificação do crime de agressão, que foi apenas mencionado no artigo 5º entre os crimes sob a jurisdição do Tribunal. Quando essa questão for reaberta, será preciso defender a autonomia do Tribunal em relação ao poder do Conselho de Segurança de constatar ou não a ocorrência de situações de ruptura da paz contrárias à Carta da ONU.
Figura também a disposição transitória que faculta aos Estados-Partes recusar a jurisdição do Tribunal sobre os crimes de guerra por um prazo de sete anos. O Estatuto prevê expressamente que essa disposição deverá ser objeto de reconsideração a partir de 2009. Mas atenção – ela corre o risco de ser renovada.
O mesmo se pode dizer da utilização de armas de destruição em massa – a inclusão entre os crimes de guerra ficou expressamente dependendo de emenda.
Outro ponto importante, sobretudo com vistas à repressão dos crimes contra a humanidade cometidos em tempo de paz por governos ditatoriais, é a retomada da proposta que fixava entre os elementos de conexão os critérios da nacionalidade das vítimas e do país ao qual a extradição do acusado foi pedida.
Apesar da campanha americana, em 1º de julho de 2002, reunidas as 60 ratificações, quatro anos depois da assinatura, o Estatuto entrou finalmente em vigor. Hoje, 89 países já se tornaram parte, entre eles grandes potências, como Alemanha, Canadá, França, Itália e Reino Unido.
Em razão do risco representado pela fixação do critério do território, os Estados Unidos fizeram aprovar, pelo Conselho de Segurança da ONU, em 12/07/2002, a Resolução 1422, valendo-se do poder que confere ao Conselho o art. 16 do Estatuto de Roma. Segundo a Resolução, o Tribunal está impedido de investigar e de julgar os oficiais de Estados não-partes no Estatuto engajados em ações militares autorizadas pela ONU, por um prazo de 12 meses, renováveis indefinidamente.
Mas se o ataque ao Iraque se fizer sem autorização da ONU, e se forem cometidos crimes de guerra e contra a humanidade, as autoridades e militares americanos suspeitos desses crimes poderão vir a ser processados perante o Tribunal, se não o forem devidamente perante a justiça interna dos Estados Unidos e se o Iraque aceitar a jurisdição do Tribunal para esse caso específico.
Vale lembrar que durante a Operação Liberdade Duradoura, que os Estados Unidos empreenderam recentemente no Afeganistão para a derrubada do regime do Talibã (antes porém da entrada em vigor do Estatuto), foram cometidos crimes de guerra, com relação ao tratamento dos prisioneiros transferidos para a base americana de Guantânamo (Cuba).
A hipótese da aceitação pelo Iraque da jurisdição do Tribunal é, a bem da verdade, remota, porque num primeiro momento o país será governado pelos Estados Unidos. Mas os próprios Estados Unidos reconhecem que não poderão governar o Iraque indefinidamente e as previsões existentes sobre o futuro do país são as mais díspares: fala-se desde em reconstrução nos moldes democráticos até o sangrento esfacelamento em guerra civil entre as diferentes etnias.
De todo modo, os crimes sob a jurisdição do Tribunal não prescrevem.
É claro que se uma aceitação assim ocorresse, os Estados Unidos, para livrar seus nacionais da jurisdição do Tribunal, recorreriam uma vez mais ao Conselho de Segurança, para tentar obter outra resolução suspendendo a ação do Tribunal no caso concreto. Mas para isso seria preciso a aprovação de todos os membros permanentes e a resolução só teria efeito por 12 meses, renováveis. E isso diante da opinião pública mundial.
É por essa razão que além dos obstáculos relativos à jurisdição, os Estados Unidos têm tentado também impedir a realização dos julgamentos. Desde 2/8/2002 vigora no país o American Servicemembers’ Protection Act, uma lei que proíbe toda e qualquer cooperação com o Tribunal, principalmente a entrega de nacionais.
Para completar, os Estados Unidos têm firmado tratados bilaterais com diversos Estados-Partes no Estatuto de Roma – valendo-se abusivamente da disposição do Estatuto que estabelece a prevalência das obrigações internacionais que costumam ser assumidas quando um país recebe forças de paz estrangeiras em seu território - sob ameaça de retirar toda a ajuda militar dada a esses países, em que eles se comprometem a não entregar os cidadãos americanos ao Tribunal.
Acontece que de acordo com o Regulamento de Procedimento e Prova, anexo ao Estatuto de Roma, a decisão sobre se a entrega de um indivíduo ao Tribunal está de fato impedida pela existência de um tratado desse tipo cabe não ao Estado requerido mas ao Tribunal e só a ele. Além disso, se essa lei americana e esses tratados forem invocados para livrar oficiais e autoridades americanas de comparecer perante o Tribunal, estes serão considerados, aos olhos de grande parte da opinião pública mundial, como foragidos da justiça.
Na mobilização das forças favoráveis à criação de um tribunal justo, independente e efetivo, teve grande importância a ampla divulgação de informações pela internet. Fica aqui, a título de conclusão, a indicação de alguns sites úteis para quem quiser acompanhar de perto o processo de instalação e o início das atividades do Tribunal, bem como as demarches americanas para escapar da jurisdição do Tribunal e as discussões preparatórias para 2009:
Rome Statute of the ICC: https://www.un.org/law/icc
Coalition for the ICC: https://www.iccnow.org
Anistia Internacional: https://www.amnestyusa.org/icc
Comitê Internacional da Cruz Vermelha: https://www.icrc.org/eng
Human Rights Watch: https://www.hrw.org/campaigns/icc
DHnet: https://www.dhnet.org.br/direitos/sip/tpi
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* Advogada, escritório Silva Telles Advogados, doutora pela Université de Paris I (Panthéon-Sorbonne).
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