A revisão tarifária periódica das concessionárias de distribuição de energia e seu marco legal
Amílcar Falcão*
Marcelo Correia*
Cuida-se de conhecer do problema para então se encaminharem as propostas que o interesse público envolvido reclama, sem olvidarmos que o aumento dos preços administrados, por si, a ninguém aproveita, enquanto indutor que é de processo inflacionário prejudicial a quaisquer agentes econômicos.
Para compreensão do problema posto, faz-se premente breve digressão sobre as normas que autorizaram dito processo, cuja finalidade, segundo os motivos que o determinaram, foi conservar o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão.
As normas infralegais que prezam pelo equilíbrio econômico-financeiro dos contratos celebrados com o Poder Público têm sua matriz no art. 37, XXI, da Constituição Federal, de cujo teor se extrai que os particulares que firmarem ajustes com o Estado terão assegurada, nas cláusulas integrantes dos respectivos instrumentos contratuais, a manutenção das condições efetivas da proposta vencedora do processo licitatório.
Essa garantia de imutabilidade das condições econômico-financeiras do contrato é a contra-face das prerrogativas que são conferidas à Administração Pública, pelas normas de direito público derrogadoras do regime privado, para alterar unilateralmente as denominadas cláusulas regulamentares, ou de serviço, que são orientadas conforme melhor atendam ao interesse público titularizado pelo Poder Concedente.
Desta forma, dá-se ao particular o necessário resguardo das condições que o atraíram a contratar com o Poder Público, sem deste retirar os necessários poderes para ditar os rumos das obras ou serviços contratados.
Também sob este equilíbrio entre a mutabilidade das cláusulas de serviço e imutabilidade das cláusulas econômico-financeiras regem-se as concessões de serviço público, obviamente, revestido de peculiaridades próprias desse instituto.
Com efeito, os contratos administrativos disciplinados pela Lei n. 8.666/93 têm suas cláusulas econômico-financeiras atreladas à flutuação dos insumos necessários para o adimplemento das obrigações, sendo, dita retribuição, integralmente arcada pelo próprio Poder Público contratante.
Nas concessões de serviços públicos, a seu turno, o elemento-chave das condições econômico-financeiras é a tarifa, sendo, pois, naquele instituto, o desembolso do usuário que remunera o particular contratado, sem prejuízo de possíveis receitas alternativas eventualmente existentes – recordando que o eventual percebimento destas entrará na equação retributiva do concessionário, atendendo à modicidade tarifária.
O equilíbrio econômico-financeiro das concessões envolve, portanto, dados mais complexos, uma vez que dele participam não apenas Poder Concedente e Concessionária, mas os próprios beneficiários dos serviços públicos delegados.
Assim, há que se ter especial zelo na fixação das tarifas dos serviços público delegados pois, então, estar-se-á ditando não somente o preço pelo qual o particular aceita oferecer os serviços em questão sob os preceitos regulamentares dados, garantindo a continuidade do serviço público e sua expansão, como também as condições de acessibilidade dos serviços a seus potenciais beneficiários. Atrelam-se, pois, no regime tarifário, meios (retribuição da concessionária para dar efeito às obrigações assumidas, inclusive de continuidade e expansão dos serviços) e fins (utilização dos serviços pelos usuários), o que sobre ele deve lançar especial cuidado, sobretudo quando se estabelecem os marcos legais da prestação.
O marco regulatório dos serviços públicos de distribuição de energia elétrica prevê 3 mecanismos que têm por função conservar o equilíbrio econômico-financeiro do contrato: o reajuste, a revisão tarifária extraordinária e a revisão tarifária periódica. A esta última procedeu a ANEEL neste ano.
Para que compreendamos melhor a revisão periódica, é preciso saber que a receita da concessionária dos serviços públicos de distribuição é dividida em duas parcelas, “A” e “B”. A primeira representa os “custos não-gerenciáveis”, como a energia elétrica adquirida para atendimento aos clientes, os custos de transmissão e os encargos setoriais, todos alheios à capacidade administrativa da concessionária. A Parcela “B”, a seu turno, representa o valor remanescente da receita do concessionário, destinado ao suporte dos “custos gerenciáveis”, isto é, aqueles concernentes à atividade de distribuição, de gestão comercial da clientela, submetidos às práticas gerenciais adotadas pela concessionária, somados à remuneração do capital e à quota de reintegração.
Cada uma dessas parcelas tem procedimento específico de reajuste, ambas com periodicidade anual: enquanto a Parcela “A” fica atrelada às condições vigentes de cada um dos itens que a compõem, à Parcela “B” se aplica o IGP-M dos 12 meses anteriores à data do reajuste. Esta sistemática pretende estimular a melhor administração dos custos gerenciáveis (Parcela B) pela concessionária, tendo em vista que sua remuneração dependerá da gestão eficiente dos mesmos, mormente porque somente terá acrescido À parcela de retribuição a perda de valor da moeda.
Essa sistemática de reajustes anuais ocorreu nos primeiros 4 (quatro) anos de concessão, ao fim dos quais se deveria proceder à primeira revisão tarifária periódica, como o prevêem as subcláusulas sétima dos contratos de concessão, verbis:
“Subcláusula Sétima - A ANEEL, de acordo com o cronograma apresentado nesta Subcláusula, procederá às revisões dos valores das tarifas de comercialização de energia elétrica, alterando-os para mais ou para menos, considerando as alterações na estrutura de custos e de mercado da CONCESSIONÁRIA, os níveis de tarifas observados em empresas similares no contexto nacional e internacional, os estímulos à eficiência e à modicidade das tarifas. Estas revisões obedecerão ao seguinte cronograma: a primeira revisão será procedida em 29 de abril de 2005, conforme previsto na Subcláusula Terceira; a partir desta primeira revisão, as subseqüentes serão realizadas a cada 4 (quatro) anos.”
Essa revisão periódica encontra respaldo tanto na Lei Geral das Concessões (Lei n.° 8.987/1995, art. 9°, § 2°, e art. 29, V), como na legislação específica do setor (Lei n.° 9.427/96, art. 15), consubstanciando-se, essencialmente, na definição de um novo valor para a Parcela “B” da tarifa, isto é, a parcela concernente aos custos gerenciáveis, preservada a neutralidade da Parcela “A”. Assim, não se faz, como nos reajustes, simples variação da tarifa em acordo com um indexador contratual, mas uma efetiva reestruturação tarifária que servirá de base para um período quadrienal subseqüente.
A instituição da revisão tarifária periódica e seu modus operandi inspira-se na regulação por incentivos, em que o ente regulador, no caso, a ANEEL, estima periodicamente a estrutura tarifária da Parcela B dos concessionários, integrada por todos os seus custos gerenciáveis (estimados de acordo com uma Empresa de Referência que simula os custos da operadora) e pelo retorno razoável para assegurar a sustentabilidade do negócio e sua expansão, fazendo incidir sobre ela o denominado “fator X” (calculado de acordo com metas de produtividade para o quadriênio seguinte), que deduz ganhos de produtividade, de forma a compartilhar seus benefícios com o consumidor.
A regulação por incentivos tem por fundamento a estruturação das tarifas de uma forma tal que estimule o concessionário a incrementar a eficiência na administração de seus custos gerenciáveis, assegurando-se, com a aplicação do “fator X”, o compartilhamento dos ganhos de produtividade com o consumidor.
É importante destacar, ainda, que, em alguns casos, a gestão dos custos gerenciáveis (Parcela B) pode afetar os custos não-gerenciáveis (Parcela A), que devem ser necessariamente neutros. É o caso, por exemplo, das tão faladas “perdas”, que passam a exigir do concessionário um consumo maior de energia (custo não-gerenciável), aumentando o valor da Parcela A. Para fazer frente a tal problema, a ANEEL estima um patamar máximo admitido de perdas, após o que a concessionária responde pelos excessos.
Pode-se concluir, ao cabo destas considerações, que eventuais contestações contra o processo de revisão das tarifas para o período tarifário iniciado em 29/4/2005 não se podem balizar pela simples comparação com a variação dos índices de inflação, como vieram a entender recentes decisões da 7ª Vara da Justiça Federal do Ceará e da 19ª Vara Cível do Tribunal de Justiça de Pernambuco, no que se confundiriam as revisões periódicas com os reajustes anuais.
Com efeito, o que se tem nesta oportunidade é uma reestruturação tarifária prevista desde a celebração dos contratos de concessão, subsidiada pela composição dos custos das concessionárias para todo um quadriênio, à luz de suas obrigações legais, regulamentares e contratuais, sem prejuízo dos necessários incentivos para redução de custos e o conseqüente compartilhamento dos benefícios com os usuários, com a aplicação do “Fator X”.
Assim, as alternativas a serem estudadas para minimização dos custos econômicos e sociais do aumento das tarifas devem observar o modelo regulatório introduzido no país, cuja pretensão é o equilíbrio entre a sustentabilidade do setor e sua acessibilidade aos usuários, sem que, no entanto, caiamos na perigosa sina do populismo regulatório.
É necessário, portanto, que o debate em torno das revisões tarifárias ora promovidas e daquelas que ainda virão não se transforme em palco permanente para a apologia da inadimplência, como se as denominadas revisões não estivessem previstas desde as privatizações, sobretudo quando sabemos que a credibilidade do país no exterior e sua atratividade para os investidores também são aferidos pelo nível de maturidade de seus agentes no cumprimento dos contratos.
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*Advogados do escritório Lima & Falcão Advogados, com sede em Recife, integrado a Demarest e Almeida Advogados
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