Flanelinhas
Almir Pazzianotto Pinto*
Tome-se como exemplo a Lei nº 6.242, de 1975, que dispõe sobre o exercício da profissão de “guardador e lavador autônomo de veículos automotores”, designação que confere ao nosso conhecido, e controvertido, “flanelinha”.
Para quem ignora o labirinto das profissões regulamentadas, a atividade do “flanelinha” está disciplinada por lei de seis artigos e regulamentada por decreto constituído de outros oito, e correspondentes parágrafos, incisos e alíneas.
De acordo com o art. 1º da lei, para exercer a atividade de “flanelinha”, ou melhor, de “guardador e lavador autônomo de veículos automotores”, em qualquer parte do território nacional, exige-se que o cidadão se encontre registrado na Delegacia Regional do Trabalho. Para obtenção do registro são exigidos prova de identidade, atestado de bons antecedentes fornecido pela autoridade competente, certidão negativa dos cartórios criminais de seu domicílio, prova de estar em dia com as obrigações eleitorais, prova de quitação com o serviço militar, quando a ele obrigado. Tratando-se de trabalhador menor, diz o parágrafo único, a efetivação do registro fica condicionada ao disposto no parágrafo 2º do artigo 405 da Consolidação das Leis do Trabalho, isto é, da autorização do Juiz da Infância ou da Juventude.
Compete a autoridade municipal, segundo o disposto no art. 4º, designar os logradouros públicos em que será permitida a lavagem de veículos automotores pelos profissionais registrados.
Embora o art. 5º ordenasse que o decreto regulamentador fosse baixado dentro do prazo de 90 dias, veio ele a ser publicado quase dois anos depois. O conspícuo diploma legal contém preciosidades como estas: “O guardador de veículos automotores atuará em áreas externas públicas, destinadas a estacionamentos, competindo-lhe orientar ou efetuar o encostamento e desencostamento de veículos nas vagas existentes, predeterminadas ou marcadas”; “O encostamento ou desencostamento efetuado pelo guardador de veículos automotores poderá ser feito por tração manual ou mecânica ou automovimentação do veículo”; “Para encostamento ou desencostamento com automovimentação do veículo é necessário que o guardador de veículos automotores possua habilitação de motorista, amador ou profissional, e autorização do proprietário do veículo”. “Durante o período de estacionamento o veículo, seus acessórios, peças e objetos comprovadamente deixados no seu interior, ficarão sob a vigilância do guardador de veículos automotores”. “O lavador de veículos automotores atuará em áreas externas públicas, destinadas a estacionamento, onde for autorizada a lavagem de veículos, competindo-lhe a limpeza externa e interna do veículo, por meio de água e outros produtos autorizados pelo proprietário do veículo”.
Todo esse besteirol, com foros de lei, prossegue e qualquer pessoa que se interessar em conhecê-lo na íntegra deve procurar o site www.planalto.gov.br, que encontrará essa e outras profissões regulamentadas.
Há leis que “não pegam”, apesar das boas intenções e qualidade, e há leis que entram no inventário das letras mortas por haverem sido redigidas em frontal desacordo com a realidade.
A legislação trabalhista brasileira contém numerosos exemplos dessa natureza, o que basta para demonstrar a necessidade de submetê-la a processo de atualização, suprimindo-se leis e dispositivos utópicos e inúteis.
O permanente conflito entre motoristas, flanelinhas e autoridades municipais, estaria resolvidos se a Lei mencionada tivesse alguma serventia. Não é o que acontece. Qualquer pessoa ousada tome posse de determinada rua ou praça, independente das exigências da norma federal, que são raros que têm conhecimento de que existem.
Alterar a lei, para torná-la mais rigorosa, será infrutífero, pois o “flanelinha” integrou-se à paisagem urbana nas grandes cidades, como os catadores de papel, moradores de rua, e centenas de menores que perambulam pelas esquinas, exibindo-se com malabares e explorados por adultos.
Oportuno seria submeter-se as leis que disciplinam dezenas de profissões a rigoroso pente-fino, para que sobrevivam apenas as socialmente úteis e economicamente necessárias.
(Publicado no "DCI Indústria Comércio Serviços", edição de 22 de abril de 2005)
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* Ex-Ministro do Trabalho e ex-presidente do Tribunal Superior do Trabalho, aposentado