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O julgamento do caso da antecipação de parto de feto anencefálico pelo Supremo Tribunal Federal

Em meados de 2004 ingressou no Supremo Tribunal Federal uma das ações mais polêmicas em âmbito nacional no tocante aos direitos fundamentais. Trata-se da ADPF nº 54, proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde – CNTS.

27/4/2005


O julgamento do caso da antecipação de parto de feto anencefálico pelo Supremo Tribunal Federal

Alessandra Ferreira Martins*

Em meados de 2004 ingressou no Supremo Tribunal Federal uma das ações mais polêmicas em âmbito nacional no tocante aos direitos fundamentais. Trata-se da ADPF nº 54, proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde – CNTS. A sensível questão colocada em debate diz respeito, sucintamente, à constitucionalidade da incidência dos dispositivos do Código Penal que tipificam o aborto na hipótese de antecipação de parto de feto comprovadamente anencefálico.

 

Em julho do ano passado o Ministro Relator Marco Aurélio enfrentou o pedido liminar deferindo a cautela para o fim de sobrestar os processos e as decisões não transitadas em julgado, bem como para reconhecer o direito constitucional da gestante de submeter-se à operação terapêutica quando, a partir de laudo médico, seja atestada a anencefalia no feto.

 

O Procurador-Geral da República solicitou que fosse submetida questão de ordem à Corte, a fim de se analisar o cabimento de argüição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) para o tratamento do tema. Por ocasião do julgamento da questão de ordem, em que o Ministro Relator Marco Aurélio votou pela adequação da via, o Tribunal, por provocação do Ministro Eros Grau, deliberou sobre a concessão da liminar, decidindo por maioria referendar tão-somente o sobrestamento dos processos e decisões afins não transitadas em julgado. O provisório reconhecimento do direito da gestante à intervenção médica terapêutica foi então revogado.

 

Nesta quarta-feira, dia 27 de abril, espera-se a apreciação definitiva da matéria. O primeiro ponto a ser decidido é justamente a adequação da medida processual proposta.

 

A concretização ou frustração das expectativas criadas em torno do desfecho jurídico de tão delicada questão depende do enfrentamento do mérito pela Corte Constitucional. No entanto, se a propositura de ADPF for considerada imprópria, o pronunciamento vinculante da Corte dependerá de renovada tentativa através de veículo processual diverso. Parece não haver motivo para tanto, senão vejamos.

 

Depreende-se do disposto na Lei nº 9.882/99 a existência de três requisitos para a argüição de descumprimento de preceito fundamental: (i) ameaça ou violação a preceito fundamental, (ii) causada por ato do Poder Público, (iii) quando não houver outro meio eficaz de tutela. Existe controvérsia em torno da qualificação da relevância do fundamento da controvérsia constitucional sobre lei federal, inclusive anterior à Constituição, como um quarto requisito (tal disposição encontra-se no inciso I do parágrafo único do art. 1º da supra mencionada lei). Para o caso em apreço não é relevante discutir quantos são os pressupostos de cabimento da ADPF, eis que, ainda que sejam admitidos os quatro citados, restam todos preenchidos. Assim, parece não haver óbice para que o órgão de cúpula no controle de constitucionalidade pátrio aprecie o mérito.

 

O primeiro requisito é vencido sem qualquer dificuldade, eis que os direitos envolvidos no caso da antecipação de parto de feto anencefálico enquadram-se perfeitamente num conceito mínimo de preceitos fundamentais. Não se pode ignorar que o constituinte, e também o legislador ao regulamentar o § 1º do art. 102 da Constituição da República, limitou-se a enunciar a locução “preceito fundamental”. Desta feita, os contornos do conceito têm sede privilegiada na dimensão democrática da jurisdição constitucional. É preciso dizer que para o caso em comento não se requer grandes esforços do hermeneuta a fim de se constatar que estão envolvidos direitos fundamentais dos mais caros, radicados na essência da Constituição: dignidade da pessoa humana, proteção à saúde, liberdade e autonomia privada. Todos estão obviamente compreendidos na idéia de preceito fundamental.

 

A configuração do segundo requisito requer uma investigação sobre a natureza dos atos potencialmente ofensivos a tais preceitos. Neste ponto emerge uma inovação: o alcance da ADPF vai além das demais ações de controle concentrado de constitucionalidade. Basta ser emanado de autoridade pública. Desde que o ato atacado (i) cause potencial ofensa a preceitos fundamentais e (ii) esteja sujeito ao crivo do Poder Judiciário, ou seja, não substancie uma das exceções ao controle de constitucionalidade firmadas na jurisprudência do STF, poderá ser objeto de ADPF tendo natureza administrativa, legislativa ou jurisdicional. Atos legislativos anteriores à promulgação da Constituição vigente, tais como os dispositivos do Código Penal de 1940 postos em discussão na ADPF nº 54, são atos do Poder Público na acepção do segundo requisito.

 

Embora não contemplada no texto da Carta Magna, a subsidiariedade foi inserida pelo legislador entre os pressupostos de cabimento da argüição de descumprimento de preceito fundamental. Uma vez admitida, a subsidiariedade deve ser compreendida de acordo com a função da ADPF. Assim, tendo em vista a criação desta ação constitucional para tutelar preceitos fundamentais, seria inconstitucional transformá-la em instituto meramente decorativo. Impende compreendê-la no seio do sistema concentrado de fiscalização de constitucionalidade em que foi inserida. Seu afastamento é plausível tão-somente se através das demais ações desta seara, cujos efeitos vinculam todos os cidadãos e órgãos públicos, for possível chegar a um resultado mais satisfatório do que aqueles alcançáveis através de ADPF. Tendo em vista a atual orientação da Excelsa Corte de não se admitir o controle de constitucionalidade de dispositivos anteriores à atual Constituição através de ação direta de inconstitucionalidade, nenhum óbice se apresenta, até este ponto, para justificar o afastamento da ADPF.

 

Sem pretender adentrar a alardeada relação entre o inciso I do parágrafo único do art. 1º da Lei 9.882/99 e as chamadas “argüições incidentais”, basta-nos aludir que tal dispositivo pode ser compreendido como uma tentativa de exemplificar os casos de cabimento de ADPF mais sujeitos à resistência doutrinária e jurisprudencial. O que importa nesta previsão legal é a explicitação de que as controvérsias envolvendo preceitos fundamentais com certa proeminência axiológica simplesmente não devem deixar de ser analisadas pelo órgão de cúpula do judiciário pátrio, em virtude da comoção social que geram. É o caso da antecipação do parto de fetos anencefálicos.

 

Na ADPF nº 54 não se observa a discussão, certamente mais polêmica, sobre a legalização do aborto, ou seja, sobre se a interrupção da gravidez em todo e qualquer caso, independentemente do motivo, deve ser descriminalizada. Da mesma forma, não se está questionando a constitucionalidade do aborto quando indispensável para salvar a vida da mãe ou de interrupção de gravidez resultante de estupro.

 

Não se pretende discutir aqui o acerto ou não do entendimento segundo o qual a interrupção da gestação de feto anencefálico é aborto; entretanto, não é dado ignorar que inexiste em nosso ordenamento regra específica tratando do assunto, seja para permitir ou proibir tal conduta. A insegurança jurídica gerada por tal circunstância enseja o pronunciamento da Corte Constitucional sobre o tema, e a adequação da via processual escolhida para o pleito certamente não substancia qualquer obstáculo. Admitida a regularidade formal da ação proposta, espera-se do STF o enfrentamento da difícil questão que lhe foi apresentada.
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* Advogada do escritório Clèmerson Merlin Clève - Advogados Associados









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