A inconstitucionalidade formal da contribuição previdenciária devida pelo contratante de cooperativas de trabalho: diferença entre trabalho e serviço
Rodrigo Bernardes Ribeiro*
No tocante aos aspectos materiais das contribuições previdenciárias instituídas pela lei 8.212/91 (clique aqui), esses restringem-se às hipóteses explicitadas na alínea "a" do inciso I do dispositivo supra citado. Em outras palavras, esses tributos somente podem incidir sobre o salário e demais rendimentos de trabalho.
Em que pese, entretanto, essa disciplina constitucional, a Carta Magna não define e conceitua o alcance dessas expressões, mas relega tal tarefa à lei complementar prevista por seu art. 146.
O CTN (clique aqui) recepcionado pela nova ordem constitucional com o status do diploma acima mencionado, por sua vez, dispõe, em seu art. 110, que a lei instituidora de tributos não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, de modo que a abrangência do art. 195, I, "a", da CF é dada pelos arts. 457 e 458 da CLT (clique aqui).
Em suma, a CLT prevê que salário e demais remunerações são valores entregues ao trabalhador - pessoa física - como contraprestação pelo trabalho prestado, de modo que, de acordo com essa definição, as contribuições previdenciárias jamais podem incidir sobre quantias repassadas a pessoas jurídicas ou atinentes a fatos que não se enquadrem como trabalho propriamente dito, como, por exemplo, mera prestação de serviços.
Embora sejam vulgarmente utilizadas como sinônimos serviço - stricto sensu - e trabalho são figuras jurídicas diversas. Apesar de ambos comporem o gênero "obrigação de fazer", o trabalho é qualificado juridicamente pelo elemento da pessoalidade, como bem assevera Mauro Schiavi, apoiado nas doutrinas de Manuel Alonso Olea e Amauri Mascaro Nascimento, aos discorrer sobre a competência material da Justiça do Trabalho após a EC 45/04 (clique aqui):
"Manuel Alonso Olea, citado por Amauri Mascaro Nascimento, destaca que a prestação do trabalho é estritamente personalíssima, sendo em duplo sentido. Primeiramente, porque pelo seu trabalho compromete o trabalhador sua própria pessoa, enquanto destina parte das energias físicas e mentais que dele emanam e que são constitutivas de sua personalidade à execução do contrato, isto é, ao cumprimento da obrigação que assumiu contratualmente. Em segundo lugar, sendo cada pessoa um indivíduo distinto dos demais, cada trabalhador difere de outro qualquer, diferindo também as prestações de cada um deles, enquanto expressão de cada personalidade em singular. Em vista disso, o contrato de trabalho não conserva sua identidade se ocorrer qualquer alteração na pessoa do trabalhador. A substituição deste implica um novo e diferente contrato com o substituto.
Entendemos que o requisito da pessoalidade também deve ser preponderante para que ocorra a relação de trabalho, embora possa haver uma substituição ocasional, com a concordância do tomador, sob pena de configurar, como acontece na relação de emprego, uma nova relação de trabalho entre o substituto do trabalhador e o tomador dos serviços. De outro lado, também o trabalho prestado por vários trabalhadores ao mesmo tempo pode configurar a prestação de serviços por intermédio de uma sociedade de fato ou de uma empresa, o que descaracteriza a relação de trabalho." (in "Manual de direito processual do trabalho". São Paulo: LTr, 2008, pp. 147-148).
Mostra-se, portanto, evidente que não há qualquer relação de trabalho no âmbito cooperativista, mormente nas erroneamente denominadas cooperativas de trabalho, seja entre ela e seus cooperados, seja entre eles e os tomadores de serviço.
A cooperativa é um tipo societário próprio regido por regras específicas e sujeita à uma disciplina ou regime de funcionamento totalmente peculiar, constituindo-se numa espécie única, regida por lei e princípios próprios (lei 5.764/1971 - clique aqui), como bem pondera Renato Lopes Becho:
"Entendemos que não é mais possível classificar-se as pessoas jurídicas apenas como sociedades ou associações civis, fundações e sociedades ou associações comerciais. Há que se reconhecer a existência de uma terceira espécie ao lado das civis e comerciais, que é a cooperativa, pensamos que, no Brasil, se possa usar sociedades cooperativas, acompanhando o legislados do novo CC ou, simples e diretamente, cooperativas. Mas há que se reconhecer a impossibilidade jurídica de se classificá-las dentro dos modelos do Direito Comercial, bem como de suas características especiais, que as particularizam dos modelos tradicionais do Direito Civil.
[…]
Na mesma linha, Rui Namorado [in "Introdução ao direito cooperativo." Coimbra: Almedina, 2000, p. 319] aponta para a saída mais sólida para um terceiro gênero ('tertium genus'), ombreando com as sociedades civis e as sociedades comerciais. […]." (in "Elementos de direito cooperativo". São Paulo: Dialética, 2002, pp. 50-51).
Poder-se-ia dizer que a cooperativa é um misto de sociedade simples de pessoas e sociedade anônima (uma "sociedade de pessoas anônimas e aberta"), sem contudo enquadrar-se como uma delas, tudo a resultar numa espécie única.
Dentre as suas peculiaridades está a figura dos cooperados, que são ao mesmo tempo sócios e mandantes da cooperativa, que se apõe no mercado em seus nomes em busca de melhores oportunidades de exercício da profissão.
Ela atua assim como mandatária de seus sócios, obrigando-os todos conjuntamente perante terceiros, em sistemática similar à dos consórcios, semelhança essa que pode ser vislumbrada pelo cotejamento do art. 3º da lei 5.764/71 (clique aqui), infringido pela decisão recorrida, com o art. 2º da recente lei 11.795/08 (clique aqui).
Dessa atuação não resulta qualquer pessoalidade, porquanto a relação jurídica instaurada dá-se entre o tomador de serviço e a massa de cooperados, observado nesse tocante que pelo princípio da livre adesão voluntária (art. 4º, I, da lei 5.764/71) esse número é ilimitado.
Vê-se, assim, que há grave impropriedade técnico-jurídica ao equiparar-se os serviços prestados pelos cooperados, por intermédio da cooperativa, a trabalho, bem como identificar a contraprestação entregue à cooperativa como remuneração de trabalho.
Note-se que essa compreensão é compartilhada pela jurisprudência que dispõe ser a Justiça Estadual a competente para decidir ações de cobrança de contraprestações de serviços contratados de cooperativas, reconhecendo, assim, a ausência de relação de trabalho e tão-somente existência de uma relação civil de mera prestação de serviços:
"CONFLITO DE COMPETÊNCIA. JUSTIÇA ESTADUAL E JUSTIÇA TRA-BALHISTA. AÇÃO ORDINÁRIA BUSCANDO O PAGAMENTO DE VALORES REFERENTES A CONTRIBUIÇÃO SINDICAL E A MENSALIDADES DE PLANO DE SAÚDE. PEDIDO COM MATÉRIAS DE NATUREZAS DISTINTAS.
1. Trata-se de conflito em que se discute a competência para julgamento de ação ordinária cujo objeto é o pagamento de quantias relativas a contribui-ção sindical e a mensalidades de plano de saúde.
2. A Emenda Constitucional 45/2004, ao dar nova redação ao art. 114 da Carta Magna, aumentou de maneira expressiva a competência da Justiça Laboral. Com efeito, passou a estabelecer, no inciso III do citado dispositivo, que compete à Justiça do Trabalho processar e julgar "as ações sobre representação sindical, entre sindicatos, entre sindicatos e trabalhadores, e entre sindicatos e empregadores". Assim, depreende-se que a competência para processar e julgar as ações de cobrança de contribuições sindicais passou para a Justiça Trabalhista.
3. Por outro lado, compete à justiça comum apreciar a questão relativa à cobrança das mensalidades de plano de saúde, haja vista que o contrato firmado entre o sindicato autor e a Unimed - Federação Estadual das Coo-perativas Médicas - tem natureza civil, e não trabalhista, não se enquadran-do em nenhuma das hipóteses previstas no art. 114 da Constituição Fede-ral, com as alterações realizadas pela EC 45/2004 (CC 55.803/SP, 2ª Seção, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, DJ de 30.10.2006; CC 61.524/SP, 2ª Seção, Rel. Min. Ari Pargendler, DJ de 8.6.2006).
4. Destarte, como bem asseverou o douto representante do Ministério Pú-blico Federal, "havendo cumulação de pedidos envolvendo matérias de diferentes competências, deve a ação prosseguir perante o Juízo onde primeiro foi intentada a ação nos limites de sua competência, no presente caso, na Justiça Estadual Comum, sem prejuízo do ajuizamento de nova causa com o pedido remanescente, no juízo próprio" (fls. 107/108).
5. Conflito conhecido para declarar a competência do Juízo de Direito da 1ª Vara Cível da Comarca de Monte Alto/SP, o suscitado." (STJ. 1ª S. CC 64.607/SP. Rel. Min. DENISE ARRUDA. DJ 06 ago. 2007, p. 450)
"CONTRATO DE SOCIEDADE COOPERATIVA. COMPETÊNCIA DA JUS-TIÇA LABORAL. EC 45/2004. RELAÇÃO DE TRABALHO. ALCANCE. A competência trabalhista para as "ações oriundas da relação de trabalho", a que alude o artigo 114, I, da CF, com a redação atribuída pela EC 45/2004, compreende o vínculo jurídico por meio do qual uma pessoa física executa obra ou serviço para outra pessoa, física ou jurídica, mediante o pagamento de uma contraprestação. Sendo a cooperativa uma sociedade mediante a qual os sócios- cooperados celebram um contrato reciprocamente se obrigando a contribuir com bens ou serviços para o exercício de uma atividade econômica, de proveito comum, exsurge a não-caracterização da relação de trabalho, não recaindo sobre esta Justiça a competência material para apreciar demanda que envolva cobrança de valores devidos pela prestação de serviços dos sócios-cooperados em face da sociedade cooperativa." (TRT 10ª R.; RO 00524-2007-007-10-00-5; Primeira Turma; Rel. Juiz Ricardo Alencar Machado; Julg. 12/03/2008; DJU 28/03/2008; Pág. 1620);
Os valores repassados às cooperativas não remuneram trabalho, mas tão-somente mera e simples prestação de serviço (em sentido estrito), de modo que essa atividade não compõe os fatos geradores da contribuição prevista na alínea "a" do inciso I do art. 195 da Constituição Federal, tampouco qualquer outro discriminado nesse artigo.
Veja-se, outrossim, que esse entendimento é ampliado pela antiga MP do Bem, atual lei 11.196/05 (clique aqui), que sem seu art. 129 consigna que os profissionais agremiados em outras sociedades, empresárias ou não, não sofrem a incidência de tributos como se tratassem de pessoas físicas (autônomos), ainda que os serviços sejam prestados com pessoalidade (relação de trabalho):
"Art. 129. Para fins fiscais e previdenciários, a prestação de serviços intelectuais, inclusive os de natureza científica, artística ou cultural, em caráter personalíssimo ou não, com ou sem a designação de quaisquer obrigações a sócios ou empregados da sociedade prestadora de serviços, quando por esta realizada, se sujeita tão-somente à legislação aplicável às pessoas jurídicas, sem prejuízo da observância do disposto no art. 50 da lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil."
Não fossem suficientes os argumentos já desenvolvidos, cabe ressaltar que a base de cálculo erigida pela lei é igualmente inconstitucional, porquanto tributa o resultado da cooperativa e não efetivamente os valores repassados aos cooperados a título de produção.
Os montantes pagos às cooperativas são contabilizados como "resultado", como bem preceitua a Lei das Cooperativas e o CC, não sendo integralmente repassados aos cooperados.
Esses valores compõe fundos legais obrigatórios e fazem frente às despesas do sociedade e apenas as sobras são entregues aos cooperados, nos termos do art. 4º, VII, da lei 5.764/1971 e do art. 1.094, VII, do CC.
Logo, a incidência da contribuição previdenciária questionada sobre o valor bruto das notas fiscais ou das faturas faz-se sobre quantias que não são creditadas aos cooperados e, portanto, não poderiam, de maneira alguma, sujeitar-se à tributação prevista no art. 195, I, "a", da CF.
Leiam-se, nesse sentido, as ponderações da Procuradoria Geral da República, que exarou parecer acerca da inconstitucionalidade da indigitada contribuição na ADIn 2.594:
"O segundo aspecto trata da inaptidão da base de cálculo fixada no art. 22, IV, da lei 8.212/91 – valor bruto da nota fiscal ou da fatura – em se har-monizar com a sua 'recíproca' disposta no art. 195, I, 'a', da Constituição da República.
O termo 'folha de salário e demais rendimentos o trabalho pagos ou credita-dos', fixado na norma constitucional, não guarda estreita relação com a base de cálculo escolhida pela lei 8.212/91, a qual se pauta 'no valor bruto da nota fiscal ou da fatura de prestação de serviços'.
Essa última é mais ampla, englobando os valores debitados como custos gerais da prestação de serviço pela cooperativa. Assim, se a cooperativa além dos serviços cobrar do seu contratante qualquer material aplicado na prestação que realiza, esse plus não terá qualquer relação com os rendi-mentos a serem pagos aos cooperados.
Há custos operacionais que, necessariamente, estarão considerados na quantia fixada para a prestação do serviço. O valor, lembre-se 'bruto', da nota fiscal ou fatura engloba valores que vão além do simples pagamento do trabalho prestado pelos cooperados. O montante expresso na nota fiscal ou fatura agrega outras despesas ou prestações, como, por exemplo, tributos devidos pela entidade, salários de seus próprios empregados, custos com material, entre outras tantas.
A contribuição engendrada tem base de cálculo completamente diversa da fixada no art. 195, I, 'a', da Constituição Federal, circunscrita essa aos valo-res pagos como remuneração de trabalho. Na verdade, a base de cálculo fixada pela lei 8.212/91 agrega à hipótese estabelecida na Constituição da República, indo além, considerando todos os acréscimos existentes no valor bruto da nota fiscal ou faturas emitidas.
[…]
No caso em análise, o valor bruto da nota fiscal ou fatura emitida pela coo-perativa, como dito, não se amolda ao conceito de rendimento do trabalho produzido pelo cooperado, agregando, além desse, todas as demais despesas decorrentes da prestação do serviço. Dessa forma, a base de cálculo escolhida pela lei 8.212/91, na redação que lhe conferiu a lei 9.876/99, é diversa das eleitas pelo art. 195, inciso I, II e III, da Constituição Federal, e assim, atrai a aplicação de procedimento legislativo específico tratado no art. 195, § 4º e art. 154, I, da Lei Maior."
Frise-se, outrossim, que os argumentos aqui desenvolvidos, além de apoia-rem-se na interpretação sistemática e doutrinária da matéria, encontram eco na ju-risprudência do Excelso Supremo Tribunal Federal, que embora ainda não tenha decidido a ADIN supra mencionada, já reconheceu a plausabilidade das alegações de inconstitucionalidade:
"AÇÃO CAUTELAR. CONCESSÃO DE EFEITO SUSPENSIVO A RECURSO EXTRAORDINÁRIO. LIMINAR DEFERIDA AD REFERENDUM: ART. 21, INC. V, DO REGIMENTO INTERNO DESTE TRIBUNAL. PRECEDENTES. 1. Ação cautelar para afastar a exigibilidade da retenção da contribuição previdenciária prevista no art. 22, inc. IV, da lei 8.212/91, incidente sobre o valor bruto da nota fiscal ou fatura emitida em decorrência dos serviços prestados por intermédio de cooperativa de trabalho. 2. O efeito sus-pensivo concedido ao recurso extraordinário da Autora, interposto nos autos da Apelação em Ação Declaratória n. 2002.61.00.005267-8, do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, limita-se até o julgamento do Recurso Extraordinário n. 546.323. 3. Decisão referendada." (1ª T. AC-MC 1805. Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA. DJe 29 maio 2008).
É de clareza solar que a lei 9.876/1999 (art. 1º) criou tributo novo, não pre-visto pelo Poder Constituinte, cuja instituição deveria, portanto, dar-se por meio de lei complementar, em obediência ao § 6º do art. 195 da Carta Magna.
Eis que a contribuição previdenciária prevista no inciso IV do art. 22 da lei 8.212/91 é formalmente inconstitucional.
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*Sócio do escritório Fernando Corrêa da Silva e Advogados Associados
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