Dispensar o indispensável
Lei que dispensa escolha de advogado é ato discriminatório
Marco Aurélio Vicente Vieira*
O referido projeto tramita apenso aos autos principais do Projeto de Lei 577/03, de autoria do deputado federal Alberto Fraga (PMDB-DF), que dispõe sobre a obrigação de comprovação da origem lícita de valores pagos a título de honorários advocatícios vindo, a seguir, o apenso PL 596/03, de autoria do deputado federal Luiz Antonio Fleury (PTB-SP) e, do PL 712, de autoria do Bispo Wanderval (PL-SP), ambos tratando do mesmo objeto. O projeto de lei que nos interessa vem por último, o apenso PL 866/03, de autoria do deputado federal André Luiz (PMDB-RJ).
Buscando na Internet a integralidade dos projetos de leis, de pronto fiquei surpreso com o teor do referido PL 866/03. Antes, em exercício de sumária lógica pensei, por estar apenso, tratar-se do mesmo assunto do projeto de lei principal, do qual derivam os demais projetos legislativos, logo cessando a presunção.
O PL 866/03 do deputado Federal André Luiz (PMDB-DF) impõe que os cidadãos envolvidos em crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia, previstos no inciso XLIII, do art. 5º, da Constituição Federal, somente sejam assistidos juridicamente pelo Estado, através de Defensoria Pública, ou seja, sumária e unilateralmente o Estado passa a criar obstáculo intransponível na livre escolha do cidadão de se ver assistido por advogado de sua escolha.
Duvidei, pasmo, ter interpretado o texto de forma equivocada, mas não, posto que ao materializá-lo, imprimindo-o, da leitura de seu teor restou inequívoco que o espírito do legislador caminha no sentido de realmente criar óbice a um direito assegurado de forma pétrea a qualquer cidadão, sem exceções, tramitando entre as trevas da Câmara dos Deputados Federais em Brasília este projeto de lei que visa, excepcionando, dispensar a figura do profissional liberal advogado, em tais processos.
Inevitável a conclusão de que a advocacia, com tal espúrio projeto, vê-se atentada e corre perigo, posto quererem dispensar o indispensável, ou seja, acabar com aquele que representa, dentro de nossa sociedade civil, organizada, livre e democrática, a busca da Justiça!
Importante recordar que a Constituição Federal de 1988 prevê Direitos e Garantias Fundamentais do cidadão, dentre os quais o sacrossanto direito de ser assistido por um advogado de sua escolha, e é claro, que esta escolha deva ser exercida soberanamente pelo próprio cidadão, livre de coerções ou impedimentos, sendo vedado ao Estado impor ou interferir, impingindo obrigação de renúncia.
Não cabe ao Estado tal papel, sob o risco de afastar-se da democracia para mostrar face e viés tirânico.
E esta garantia individual, assegurada pelo constituinte não à toa, veio do olhar para um passado recente de arbítrio e abusos, que com tal projeto de lei retoma o discurso autoritário por atentar contra o constitucional artigo 133, que assegura relevante e público papel ao advogado nos pilares de sustentação do Estado Democrático de Direito, declarando-o, sobretudo, indispensável à administração de Justiça.
O malsinado projeto de lei, ao impor ao acusado de crimes deste naipe, a obrigatoriedade de ver-se defendido restritamente por um defensor público, nomeado pelo Estado, subverte, inclusive, a Lei Federal 8.906, de 4 de julho de 1994, inserida no ordenamento, a qual veio regulamentar o atuar ético do advogado na sociedade, prevendo, além de sua função social e relevante serviço público, a reafirmação de sua indispensabilidade.
E assim o sendo, não pode vir ele a ser afastado, pois é o advogado inerente parte do Poder Judiciário, que nenhuma lei infraconstitucional pode seqüestrar, sob pena de ruína desta coluna vertebral que sustenta a República, colocando-se em risco a própria existência do Estado Democrático de Direito deste país.
Querer impedir, por texto legal, que um cidadão venha a exercer sua liberdade de escolha quando da contratação de um advogado de sua confiança, é antes ato arbitrário e discriminatório e, por isto, ignóbil, que vem sob o pretexto de se “combater” a criminalidade, fazendo-nos lembrar os escritos de Franz Kafka no “O Processo” e “Na Colônia Penal”.
Como sabido, o primeiro livro de Kafka narra a vida de um jovem chamado Josef K., condenado à morte sem ao menos saber o motivo e o teor da acusação; quanto ao segundo, vem contar a estória de um viajante que passa por uma colônia penal, onde os presos eram executados sumariamente, recebendo, antes, como resposta à iminente execução, ao indagarem ao executor qual a motivação das condenações, invariável resposta, de que todos ali desconheciam o teor da sentença e a pena aplicada, e menos sabiam se suas defesas haviam sido eficazes ou não, estando ali tão apenas para sucumbir, na carne, a pena assim executada.
Que fique claro. Não se pretende aqui acobertar criminosos assistidos por advogados inescrupulosos posto que, para estes, existem as sedes de reprimendas próprias, regradas por pertinente código ético e disciplinar, sem prejuízo das sanções civis e penais decorrentes das ilícitas condutas quando do exercício desvirtuado da advocacia.
Porém, convenha-se, há grande diferença de critérios entre o se combater mazelas por métodos totalitários e o se assegurar, combatendo tais propósitos, as garantias constitucionais de direito de ampla defesa, de pleno contraditório e do devido processo legal, sem arranhar a firme convicção de que o crime há de ser guerreado em nossa sociedade, sobretudo o organizado.
Não será abatendo as colunas que sustentam o templo da democracia que esmagaremos o delito, ao contrário, se tal vier a ocorrer, sucumbiremos todos.
O que se defende, nesta sede, é o direito do cidadão de ser assistido por advogado de sua livre escolha e confiança, sob pena de assim não acontecendo, arranhar-se, inclusive, o sacrossanto direito de fruir das liberdades democráticas e cidadãs, dentre as quais: a de ir e vir, a de opinião, e a de livre escolha.
Ora, se em nosso meio há uma grande preocupação em combater a criminalidade, não será com métodos que lembram a União Soviética de Stalin e a Alemanha Nazista de Hitler, rasgando direitos e garantias fundamentais do cidadão, posto que princípios fundamentais da sociedade e, por fim, vilipendiando uma inteira categoria profissional, que passará assim a ser estigmatizada, que se chegará a uma solução juridicamente segura, em prol do bem comum.
O advogado é porta voz dos direitos constitucionais, bem como o garantidor da plenitude de defesa do acusado, independentemente da natureza de seu crime, sendo ele o depositário da ordem democrática, papel este de maior relevância, posto que verdadeiro guardião, sujeito, inclusive, por tal razão, de toda a sorte de intempéries.
Uma sociedade sem advogado livre é uma sociedade amordaçada e, portanto, injusta, aprisionada, submissa, indigna.
Gostaria de agradecer em público as idéias e debates travados entre eu e meu amigo também advogado Paulo Emendabili Barros de Carvalhosa sobre o tema, que motivou-me escrever este artigo.
Por tal razão, em sentinela, continuarei acompanhando o tramite deste projeto de lei sem tirar os olhos daqueles que o encabeçam, continuando a pesquisa deste temerário projeto de lei, no mais elevado interesse de preservação da advocacia.
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*Advogado criminal e vice-presidente da Comissão de Direitos e Prerrogativas da OAB-SP
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