A Petrobras e a arbitragem
Carmen Tiburcio*
É da tradição do direito brasileiro a existência obrigatória, nos contratos administrativos, de cláusula que eleja o foro da sede da Administração. O Decreto n.º 15.783/22 (que regulamentou o Código de Contabilidade da União — Decreto Legislativo n.º 4.536/22) assim dispunha (art. 775, § 1º): “A estipulação dos contratos administrativos compreende cláusulas essenciais e cláusulas acessórias. São cláusulas essenciais, e como tais não podem ser omitidas em contrato algum, sob pena de nulidade: (...) e) nos contratos com pessoas naturais ou jurídicas domiciliadas no estrangeiro, a cláusula que declara competente o foro nacional brasileiro, para dirimir quaisquer questões originadas dos mesmos contratos.”
O Decreto-lei n.º 2.300/86 (antigo estatuto jurídico das licitações e contratos administrativos de obras, serviços, compras, alienações, concessões e locações no âmbito da Administração Federal) estabelecia (art. 45, p. único): “Nos contratos celebrados pela União Federal ou suas autarquias, com pessoas físicas ou jurídicas domiciliadas no estrangeiro, deverá constar, necessariamente, cláusula que declare competente o foro do Distrito Federal para dirimir qualquer questão contratual.”
A atual Lei n.º 8.666/93, sobre licitações e contratos administrativos, reproduz essa mesma regra no art. 55, § 2º: “Nos contratos celebrados pela Administração Pública com pessoas físicas ou jurídicas, inclusive aquelas domiciliadas no estrangeiro, deverá constar necessariamente cláusula que declare competente o foro da sede da Administração para dirimir qualquer questão contratual, salvo o disposto no § 6º do art. 32 desta Lei.” Portanto, esse diploma restringe a solução de qualquer litígio ao foro da sede da Administração, pelo que se pode concluir serem inválidas, em tais contratos, as cláusulas de eleição de foro estrangeiro. Note-se que o dispositivo em questão traduz um comando positivo (exigindo claramente a eleição do foro da sede da Administração), e não negativo (proibindo a eleição de foro estrangeiro), o que poderia gerar dúvidas quanto à admissibilidade de convenção arbitral internacional. Assim, chega-se a duas conclusões: nos contratos administrativos, salvo expressa autorização legal, não se admite eleição de foro estrangeiro nem cláusula compromissória.
O § 6º do art. 32 abre exceções a essa regra geral nas hipóteses de: a) licitação internacional para a aquisição de bens e serviços cujo pagamento foi feito com o produto de financiamento concedido por organismo financeiro internacional de que o Brasil faça parte, ou por agência estrangeira de cooperação; b) contratação de empresa estrangeira para a compra de equipamentos fabricados e entregues no exterior; c) aquisição de bens e serviços realizada por unidades administrativas com sede no exterior. Como exceções à regra geral, tais hipóteses são taxativas e devem interpretar-se restritivamente.
A Lei n.º 9.478/97, que criou a Agência Nacional do Petróleo (ANP) e dispôs sobre a política energética nacional, determina (art. 67): “Os contratos celebrados pela PETROBRAS, para aquisição de bens e serviços, serão precedidos de procedimento licitatório simplificado, a ser definido em decreto do Presidente da República”. Com base nesse dispositivo, o Presidente da República editou o Decreto n.º 2.745/98, específico para o procedimento licitatório simplificado da Petrobras, que parece ter sido excluída do âmbito de aplicação da Lei n.º 8.666/93, passando a reger-se por normas próprias.
Pode-se questionar se o quadro acima descrito foi alterado pela Carta da República, à luz das inovações trazidas pela Emenda Constitucional n.º 19, de 1998. O art. 173, § 1º, do Texto Maior, trata de empresa pública, sociedade de economia mista e suas subsidiárias que exploram atividade econômica; o art. 175 cuida das empresas que prestam serviços públicos, diretamente ou por meio de concessão ou permissão. O art. 173, § 1º, determina: “A Lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre: (...) III – licitação e contratação de obras, serviços, compras e alienações, observados os princípios da administração pública.” Esse dispositivo não é auto-aplicável, dependendo de lei que estabeleça o estatuto jurídico das empresas estatais que exerçam atividade econômica; mas tal lei ainda não foi promulgada, pelo menos para as demais empresas estatais. Pode-se contudo questionar se, quanto à Petrobras, já não atendem à previsão constitucional o art. 67 da Lei n.º 9.478/97 e o Decreto n.º 2.745/98, expedido com base naquele dispositivo legal.
De qualquer modo, para possibilitar a atuação das empresas estatais que desempenham atividade econômica, como empresas ágeis e aptas a concorrer com outras que exerçam objeto social análogo, urge que o legislador promulgue, o mais rapidamente possível, a referida legislação.
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Professora Adjunta de Direito Internacional Privado na UERJ - Coordenadora do PRH nº 33 da ANP - Consultora na área de contratos internacionais e arbitragem - Escritório Luís Roberto Barroso & Associados
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