Migalhas de Peso

A importância geopolítica que resulta em ser ministro da Suprema Corte USA

Sem conhecer o espírito do povo americano, imiscuindo-se na história do país, há um aparente ideário místico de que, naquelas fronteiras, nasceu a liberdade individual e foram geradas as ideologias liberais do moderno estado democrático.

22/3/2005


A importância geopolítica que resulta em ser ministro da Suprema Corte USA

Jayme Vita Roso*

Sem conhecer o espírito do povo americano, imiscuindo-se na história do país, há um aparente ideário místico de que, naquelas fronteiras, nasceu a liberdade individual e foram geradas as ideologias liberais do moderno estado democrático. Mas que história interpretar? A dos “American State Papers”? A do “The Federalist”, de Alexander Hamilton, James Madison e John Jay? Ou “Of The Liberty Of Tough and Discussion” ou “Of Individuality, As One Of The Elements Of Well-Being” ou “Of Limits To The Authorithy Of Society Over The Individual”? Ou, finalmente, “Applications” de John Stuart Mill (1806-1873)?

Todos os autores mencionados, além dos que votaram a constituição, perfilaram idéias liberais, mas radicalizadas, dentre elas o voto feminino, no caso de Stuart Mill1.

A Declaração da Independência (Thomas Jefferson), juntamente com os “Articles of Confederation” (George Washington) e a Constituição dos Estados Unidos da América (17/9/1787) são o tripé do país, enquanto libertário da Inglaterra, organizados confederativamente e são a espinha dorsal da nação.

A Constituição é minimalista, como deveriam ser a dos demais países, promulgada por George Washington, tendo Willian Jocknn, como Secretário, com seu seis artigos e vinte e duas Emendas.

Interessam-nos o Artigo Terceiro, e na Section 2 (sobre o sistema judicial e sobre os magistrados na Section 1) e o Artigo Décimo Primeiro das Emendas, para os propósitos desta colaboração.

Da mencionada Section 2, destacamos: “The judicial power shall extend to all cases, in law and equity, arising under this Constitution, the laws of the United States, and treaties made, or which shall be made, under their authority; to all cases affecting ambassadors, other public ministers, and consuls; to all cases of admiralty and maritime jurisdiction; to controversies to which the United States shall be a party; to controversies between two or more States; between a State and citizens of another State; between citizens of different States; between citizens of the same State claiming lands under grants of different States, and between a State, or the citizens thereof, and foreign States, citizens, or subjects.”, e a íntegra do Artigo 11, das Emendas: “The judicial power of the United States shall not be construed to extend to any suit in law or equity, commenced or prosecuted against one of the United States by citizens of another State, or by citizens or subjects of any foreign State”.

Esse longo intróito deflui da acerbada crítica que a advogada Patti Waldmeir manifestou, com palavras acres, contra o procedimento da Corte Suprema em uma questão que se alinha à Section 2, acima transcrita2.

A questão versada no artigo da Senhora Patti é sobremodo interessante, tendo em conta as peculiaridades inovadoras, resultantes da globalização e suas conseqüências para os Tribunais.

Destaquem-se:

“On Monday, Unocal, another energy company, announced that it had settled one of the most important lawsuits of the globalist era: a case that demanded that US courts punish the company for allegedly colluding in human rights abuses commited as part of the construction of gas pipeline in Burma.

Unocal continues to insist it did nothing wrong. But it was the first time that a multinational company had settled an action brought under the Alien Tort statute, the controversial 1789 law that allows foreigners to sue in US courts for alleged human rights abuses abroad. And Unocal’s capitulation will no doubt embolden human rights advocates worldwide to export more such suits to American courtrooms.”

Esse case é seqüência de um outro que determina que a Justiça americana, por decisão da Corte de Haia, faça cumprir um Tratado Internacional, que os Estados Unidos assinaram, que assegura aos Governos estrangeiros serem informados quando seus cidadãos são presos (refere-se a um cidadão mexicano preso, no Texas, por estupro e morte de duas jovens americanas).

Durante seis longos anos, esse assunto ficou nos escaninhos, aguardando decisão. E, ironicamente, a Senhora Patti, referindo-se a um dos juízes, assim disse: “Several justices make it a regular habit to speak on that topic: Justice Antonin Scalia, the most judicially isolationist of the justices, takes every opportunity to castigate his more internationalist colleagues. He gets apoplectic when his fellow jurists try to import foreign legal concepts into all-American jurisprudence. He argues that the only foreign rulings that should matter when interpreting the US constitution are the ones that were around in the 18th century when the document was written”.

É, exatamente, esse espírito conservacionista que põe em questão, até em grave perigo, a segurança do mundo globalizado, quando membros da Suprema Corte recusam obediência e aplicação do Direito Internacional, nos Estados Unidos, somente aceitável se o país assinou um tratado que cubra o caso específico.

Retroajo ao nosso esquecido Eduardo Prado, que teve a primeira edição confiscada pela Governo Brasileiro, em 1895, que abordou “a tese do interesse próprio”, esclarecendo Prado: “Anos depois, tudo isso ficou explicado por ocasião do célebre processo do Panamá, e soube-se porque as influências americanas, os homens do Governo de Washington deixaram de lado Monroe e sua doutrina. No processo do Panamá verificou-se que milhões de francos foram misteriosamente gastos para acalmar escrúpulos e para suavizar a doutrina Monroe”, concluindo: “Aquele país tem empregado toda a sua influência para atrasar e embaraçar por todas as formas a grandiosa empresa, prometedora de benefícios para a humanidade, e isto para não prejudicar as companhias dos caminhos de ferro transcontinentais”3.

Saindo das premissas do iluminismo light contemporâneo, com a coragem das mulheres dignas, a Senhora Patti, depois de mostrar a face cruel da Suprema Corte, dá-nos alento, ao dizer: “But this is not Iraq, and the Supreme Court is not the Bush administration: this is no time to go it alone. America’s highest court must listen to what other courts have to say even if it does not like what it hears.” Este trecho está ainda no mesmo artigo.

P.S.: A tarefa de escrever artigos atuais, que interessem aos leitores de Migalhas, exigentes pelo próprio motivo despertado em virtude da qualidade, sobriedade e interesse das vinculações exigiu este post scriptum.

Esclareço-lhes.

Os artigos são escritos com duas ou três semanas de antecipação às entregas, porque devem ser, como são, revisados, com o habitual esmero. Além disso, a escolha personalíssima dos temas é primada pelo meu espírito crítico, apurado ainda mais, porque, pelo público-alvo, nutro respeito, que, nada mais é do que a extensão do dirigido aos companheiros da redação.

Bem, estava acabado e revisado o artigo supra, quando me chega às mãos, com vinte dias da data em que circulou no Reino Unido, a edição do London Review of Books4, com um artigo que está colocado em primeiro lugar, dentre os demais dezoito, nela inseridos. Seu autor é o Professor Sterling de Direito e Ciência Política em Yale, Bruce Ackerman. O fato de ser “professor sterling” tem um significado especialíssimo: só podem ostentar o adjetivo, quem merecer ser considerado excelente e, em Yale, é um galardão que poucos têm ou recebem, por méritos indiscutíveis.

Mas o Professor Ackerman, tirantes esses brasões, por ser dual no exercício do magistério, atuando nas áreas jurídicas e de ciência política, é reconhecidíssimo, fora dos meandros neo-conservadores, por ser um agudo crítico da sociedade norte-americana de nosso dias, com dois preciosos livros: “The stakeholder society” (Londres: Yale University Press, 1999. ISBN 0300082606. 320 p. US$ 40.00.) e “Social justice in the liberal state” (Londres: Yale University Press, 1981. ISBN 0300027575. 464 p. US$ 24.00. www.amazon.com).

Com esse perfil intelectual, não surpreende que se insurja com elegância, sem deixar de ser contundente, com as atitudes políticas do governo de George W. Bush. É o artigo trazido à colação de relevo para se tentar interpretar os meandros políticos que, informando a sociedade americana, ressoam na Suprema Corte, quando ela, ao interpretar a Constituição, passa, na verdade, a nortear o país em todos os quadrantes. Impressiona, o estudioso, a valia de ter uma Suprema Corte com essas funções político-sociais, mas, ao revés, isso é arrepiante, ao se perceber que as próximas nomeações serão pautadas por personalidades ultraconservadoras, que poderão fazer a maioria e, consequentemente, mudar o tom das decisões construídas por juizes liberais nos anos 60 e 70.

A transcendência do artigo de Ackerman, como sua aguda percepção antecipatória de possíveis alterações profundas das direções jurisdicionais, com o inegável brilho de seus argumentos, deu-lhe a redação da London Review of Books a inusual oportunidade de estender-se, além do que se comete à maioria de seus excepcionais articulistas.

Quando li o trabalho de Ackerman, desde logo, achei que deveria levar o meu ao cesto de papéis, até, com paciência, relendo-o, concluir que seria de bom alvitre utilizá-lo como adendo preferencial, tomando suas conclusões como motor de arranque das idéias que ousara levantar. Alguma coisa, improvisadamente, dera de valioso, sobretudo porque me escorara em uma advogada inglesa séria e competente, caso contrário não teria espaço para discutir suas opiniões no Financial Times. E, às palavras ásperas contra o magistrado Scalia, Ackerman adorna com uma dialética devastadora, aliada à prática magisterial.

Chamou-me a atenção, com mais intensidade, a bem medida argumentação de Ackerman numa questão crucial para o povo americano, mas que terá resposta no Senado: embora a percentagem que Bush II tenha sido de apenas 3% sobre Kerry, o articulista, comparando-a com os 18% de Reagan sobre Mondale, insinua que Bush é mais convincente do que foi o ator-político. E Ackerman, sem receio, diz que “Bush has already established himself as one the great gamblers in presidential history. He may well spurn the counsels of prudent statesmanship, and try to succeed where his father and his hero – not the same man – failed. This is the point where a stealth candidate becomes alluring5.

Interpreto.

Bush II tirará um candidato do anonimato ou candidato secreto, para levá-lo à Suprema Corte, sempre ultraconservadora, mas com a oportunidade de convencer os Democratas, que não o recusarão, porque o perfil dele é amoldável àqueles, ou é digerível. Um homo qualunque do sonho americano, capaz de bem representá-lo, na Suprema Corte, verbará os Democratas. E, após ele, outro, uma vez a sucessão de, pelo menos, dois estarão em disputa, com outra vaga, nos próximos dois anos.

Ancorado na guerra antiterrorismo, que galvanizou a sociedade, com apoio maciço à política de Bush II, ele encontrará, na Suprema Corte, a escora para dar-lhe apoio à questão religiosa (com o imperativo do fundamentalismo protestante) e a agenda da pauta anti-regulatória, que quer impor a qualquer custo. Mas, para conseguir esse desiderato, Bush II, hábil political player, como definido por Ackerman, entre um conhecido conservador, ou um neo-conservador que fale como tal, provavelmente, escolherá um hígido conservador sacado de uma lista que lhe indicará o mais apropriado para cumprir a missão que a igreja lhe tenha confiado, pois assim Bush II foi coroado, ao tomar posse, pelo reverendo Billy Grahan.

E, com este trecho, Ackerman arremata:

All this will become clear at the Senate hearings, so long as the president is denied the stealth option, and comes forward with Bork II. At best, Republican apologists will seek minimise the breadth of the neo-con revolution by making a short-term strategic point. Rehnquist is likely to provide the fisrt vacancy, and his replacement by Bork II won’t change many five to four decisions in the short run. This point may encourage Democratic fence-sitters to confirm Bork II and delay a Senate filibuster until Bush tries to replace a more moderate justice with another neo-con. This should be a fatal mistake. As soon as Bork II ascends to the Supreme Court, neo-cons will be crowing about their famous victory. Just as Reagan’s success in appointing Scalia encouraged the nomination of the more extreme Bork, the ascent of Bork II will encourage the nomination of a more extreme Bork II. In any event, it is wrong to succumb to a short-term perspective. The fate of the court depends on the success of progressives in convincing the country that the neo-com Constitution is wrong in principle. Once Senate Democrats concede that Bork II’s vision is acceptable, it will be very difficult for them to regain the initiative in future debates. The time for principled opposition is now6.
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Notas bibliográficas


1 HUTCHINS, Robert Maynard.
Great books of the western world. Chicago: The University of Chicago, vol 43, 1952. p. 264.

2 WALDMEIR, Patti. American courts must not be a law unto themselves. Financial Times. Londres, p. 10, 20.dez.2004.

3 PRADO, Eduardo. A ilusão americana. Paris, Armand Colin et Cie. Editeurs, 1895. P. 80-81.

4 London Review of Books. Vol. 27, nº 4, 17.02.2005, 44 p.

5 ACKERMAN, Bruce. The Art of stealth. Londres, London Review of Books. vol. 27, nº 4, 17.02.2005. p. 3.

6 Ibidem, p. 9.
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* Advogado do escritório Jayme Vita Roso Advogados e Consultores Jurídicos

















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