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Breves considerações sobre a proposta de reforma do CPC

Com o surgimento do Estado e seu gradativo fortalecimento, aos litigantes restou, como forma de solução privada de seus conflitos a autocomposição.

17/5/2010


Breves considerações sobre a proposta de reforma do CPC

Luciano Correia Bueno Brandão*

Com o surgimento do Estado e seu gradativo fortalecimento, aos litigantes restou, como forma de solução privada de seus conflitos a autocomposição (em que cada parte faz concessões recíprocas sobre seu interesse ou parte dele) ou a arbitragem (em que as partes elegem pessoa de sua confiança para dar fim ao conflito).

Quanto ao uso da força e sua aplicação coercitiva, esta foi monopolizada pelo Estado que tomou para si o encargo de imposição autoritária da solução para os conflitos de interesses tornando-se o único e legítimo titular do exercício da jurisdição, de modo que a autotutela restou ultrapassada salvo em casos expressamente previstos em lei.

Contudo, com essa monopolização da atividade jurisdicional pelo Estado, ainda que relativa, o aumento vertiginoso dos conflitos e de sua complexidade saturou a estrutura estatal para solução de litígios que, devido a organizações judiciárias deficientes e a uma legislação processual inadequada, mostrou-se incapaz de atender a contento à crescente demanda por uma tutela jurisdicional eficaz.

Este é um problema que mostrou-se crônico e perverso, na medida em que a morosidade do trâmite processual terminava por comprometer a distribuição de Justiça que, numa última análise, é seu objetivo final. Nesse sentido, Cappeletti e Garth1 deixaram escrito sobre os perniciosos efeitos do tempo nos processos judiciais:

"Em muitos países, as partes que buscam uma solução judicial precisam esperar dois a três anos, ou mais, por uma decisão exequível. Os efeitos dessa delonga, especialmente se considerados os índices de inflação, podem ser devastadores. Ela aumenta os custos para as partes e pressiona os economicamente fracos a abandonar suas causas, ou aceitar acordos por valores muito inferiores àqueles a que teriam direito. A Convenção Europeia para Proteção dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais reconhece explicitamente, no artigo 6º, parágrafo 1º que a Justiça que não cumpre suas funções dentro de 'um prazo razoável' é, para muitas pessoas, uma Justiça inacessível."

O atual CPC (clique aqui), alma do sistema que operacionaliza a atuação em juízo, está em vigor desde 1974. Desde então, a sociedade mudou, seus valores, paradigmas, as relações sociais, sua percepção de direito e da própria Justiça. Logo percebeu-se, então, a necessidade de adequação da legislação a estes tempos modernos.

Por mais de duas décadas, projetos foram apresentados no Congresso Nacional. Durante muito tempo, predominou a premissa de que a reforma de todo o Código Processual a um só tempo seria inviável, ou não traria os efeitos desejáveis, optando-se, como definiu Dinamarco, a "uma tática de guerrilha e não de uma guerra total", efetuando-se devidas modificações por partes.

Entre as diversas modificações introduzidas parceladamente no Direito Processual Civil Brasileiro, ao longo dos anos, podemos mencionar desde a lei 8.455/92 (sobre a prova pericial - clique aqui), passando pelas leis 9.139, de 30/11/95 (do agravo - clique aqui) e 9.245, de 26/12/95 (sobre o procedimento sumaríssimo, hoje sumário - clique aqui). Ainda, alteração avançada e audaciosa, se deu com o advento das leis 8.952/94 (clique aqui) e 10.444/02 (clique aqui), que deram nova redação ao artigo 273, do Código sistematizando o instituto da antecipação de tutela.

Já no ano de 2004, o advento da EC 45 (clique aqui) consistiu num marco do processo de reforma do Judiciário, trazendo imensas repercussões também no âmbito processual.

Nesse sentido, a inclusão do inciso LXXVIII no artigo 5º da CF/88 (clique aqui) consagrou expressamente a noção de duração razoável do processo; o artigo 93, inciso XIII, CF, passou a prever uma maior racionalização entre o número de juízes e de jurisdicionados de acordo com a demanda; a determinação de distribuição imediata dos processos (art. 93, inciso XV, CF); a instituição da Repercussão Geral como requisito de admissibilidade de Recursos Extraordinários, entre tantas outras.

Sem desmerecer a pertinência e importância de tais alterações, o grande número de mudanças desfigurou o CPC, tornando-o uma verdadeira "colcha de retalhos", como definiu o Presidente do Senado, José Sarney.

Com efeito, tornou-se evidente a necessidade de, efetivamente, enfrentar a normatização do processo civil como um todo, adaptando-o integralmente aos novos tempos, permitindo uma maior racionalização da estrutura do Judiciário, contemplando a mudança de paradigmas e princípios.

A partir de tal constatação, foi constituída em novembro de 2009, comissão de juristas encabeçada pelo Ministro Luiz Fux, do STJ, a fim de que desenvolvessem anteprojeto do novo CPC.

O anteprojeto, desde o início, foi elaborado com um foco específico: celeridade e eficiência da prestação jurisdicional. O objetivo é declaradamente o de simplificar o processo, torná-lo mais ágil e menos formal.

Pretende-se, com a reforma dos dispositivos processuais, garantir que a média de tramitação de um processo até decisão em definitivo seja de dois anos.

Para viabilizar tal feito, o anteprojeto apresenta inovações partindo da instituição de um procedimento único para o processo de sentença, passível de ser adaptado pelo juiz de acordo com o caso concreto.

O anteprojeto reorganiza o Código dotando-o de uma parte geral e de um livro relativo ao processo de conhecimento, outro referente ao processo de execução, um terceiro acerca dos procedimentos especais (não incluídos no processo de conhecimento), o quarto inerente aos recursos e o último e quinto livro, sobre as disposições gerais e transitórias.

Entre as novidades pode-se citar, por exemplo, a permissão de "coletivização" das demandas idênticas (como por exemplo aquelas referentes aos expurgos dos planos econômicos). Pela proposta, uma das ações seria selecionada como leading case e seria apreciada gerando efeitos para todas as demais que, até o julgamento daquela, permaneceriam paradas.

Outras sugestões para o novo Código incluem: (i) a diminuição o número de peças processuais (os incidentes de exceção de incompetência, impedimento, suspeição, impugnação ao valor da causa, por exemplo, seriam extintos, sendo que tais temas deveriam constar única e exclusivamente da contestação), (ii) a alteração da contagem dos prazos processuais, que passariam a fluir apenas nos dias úteis; (iii) diminuir o número de recursos mediante a extinção dos embargos infringentes e do agravo (que seria cabível em caráter excepcional de decisões de potencial dano irreparável), (iv) desestimular sua interposição (com a aplicação da chamada "sucumbência recursal", por meio da qual a parte que recorrer e perder fica obrigada ao pagamento de verba sucumbencial à parte contrária).

Uma das propostas mais polêmicas diz respeito ao fim do duplo-efeito nas apelações. Vale dizer que o recurso interposto contra a sentença não seria mais dotado de efeito suspensivo, de tal sorte que seria viável a execução imediata do julgado, independentemente da pendência de eventual recurso.

Embora a iniciativa de reforma do CPC em si seja vista com bons olhos, não foram poucas as críticas que já se fazem ouvir quanto a diversas das propostas apresentadas.

Segundo os críticos, no ímpeto de garantir celeridade e efetividade ao processo, corre-se o risco de relativizar a importância do pleno exercício do contraditório, da ampla defesa, do devido processo legal, comprometendo a segurança jurídica e, em última análise, a própria noção de Justiça.

O desafio da Comissão de juristas encarregada de redigir a proposta do novo CPC, portanto, é dantesco.

É impossível determinar, neste ponto, o impacto – para o bem ou para o mal – que as inovações previstas trarão para os jurisdicionados.

Por outro lado, numa sociedade que ao longo das últimas décadas passou pelas agruras da ditadura, viu nascer e consolidar-se a democracia, mudou seus valores e paradigmas, é certo que o ordenamento jurídico deve ser adaptado como expressão do que almeja para si essa mesma sociedade.

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1CAPPELLETTI, Mauro e GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Sergio Antonio Fabris Editor: Porto Alegre, 1988, p. 20-21.

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*Advogado do escritório Almeida Guilherme Advogados Associados

 

 

 

 

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