Tem justiça para os pobres?
Antonio Pessoa Cardoso*
Nossa tradição mostra uma legião de excluídos na distribuição de renda, no sistema de saúde pública, no acesso à educação à Justiça e em todos os serviços prestados pelo Estado. Diante deste quadro, o pobre não encontra saúde, educação, nem justiça. As questões dos despossuídos, quando levadas aos tribunais não são resolvidas, porque a solução é encontrada na polícia, nas igrejas e nos postos de saúde.
Não há polêmica sobre a pobreza e a marginalização de um segmento da sociedade brasileira, que é amparado pelos sistemas prestacionais do Estado, resultando daí a certeza de que essas pessoas não possuem dignidade e respeito, assegurados pelo conceito de cidadania. Essa massa da população, que se denomina de hipossuficientes, não têm acesso aos direitos fundamentais.
A saúde é direito de todos, mas o pobre morre nas filas dos hospitais, porque não recebe o tratamento assegurado pelas leis, inclusive pela Constituição (clique aqui). Se a pessoa é rica contrata os melhores médicos, utiliza hospitais com modernos equipamentos e pode evitar cirurgias e maiores sofrimentos. Para o cidadão pobre resta buscar os serviços do SUS, tendo de enfrentar as filas das madrugadas, esperar pelo médico que não chega e aguardar o leito que não lhe ampara.
A situação é semelhante na educação e em outras áreas, mas a precariedade dos serviços judiciários demonstra as dificuldades da vida dos pobres. Passa por humilhações talvez mais duras do que a sofrida para conseguir o médico; para obter o serviço público que se apregoa gratuito tem etapas a serem ultrapassadas e que nunca chegam ao fim.
Boa parcela das pessoas incluídas legalmente no rol de necessitados não exercem seus direitos, porque desconhecem ou porque lhes negam os meios para exercitá-los.
Qualquer problema do dia a dia do cidadão, por mais simples que seja, é obrigado a submeter-se ao Judiciário; se compra um eletrodoméstico e o produto apresenta defeito a empresa vendedora não se aflige com o drama criado e manda buscar seus direitos; se a dificuldade se situar no campo da saúde, que é direito de todos e dever do Estado, o internamento, por exemplo, só acontecerá depois da manifestação do juiz que atrasa para acontecer. Só se procede assim, porque não há cumprimento das obrigações legais e o próprio Estado desrespeita os direitos consignados nas leis.
Afinal, o processo judicial é complicado, dentre outros motivos porque os operadores do direito sentem-se bem com a importância que assumem no sistema; e esta importância redunda em dificuldades para acesso dos despossuídos. Ademais, o Estado por si só toma o lugar dos pequenos, quando se coloca como maior produtor de demandas, porquanto em torno de 80% das causas que correm no Judiciário tem o Estado como parte.
Torna-se necessário acabar com essa cultura de que tudo deve ser resolvido através de ação judicial. Para posicionamento mais consentâneo com a realidade há de ser observado o custo-benefício e chegar-se-á à conclusão de que muitos litígios podem ser solucionados por meio de órgãos parajudiciais. As causas altamente técnicas não podem nem devem continuar com os juízes, porque são demandas que só serão julgadas depois da manifestação de um técnico; portanto fica o julgador dependendo de parecer de outro profissional; melhor que sejam entregues a conselhos arbitrais. As formas alternativas, a exemplo da justiça de paz, a mediação, a conciliação constituem meios para desafogar a justiça comum e os próprios Juizados Especiais que deveriam receber somente as reclamações do dia a dia do cidadão, voltando assim à suas origens.
A burocracia passa pelos legisladores que dificultam o entendimento das leis pelos carentes. A criação dos Juizados Especiais, por exemplo, na sua origem fez-se através de lei composta por 59 artigos, transformada atualmente em 97 dispositivos; aí se solucionava demandas de até 20 salários mínimos e não se necessitava de advogado para apresentação da queixa. A lei foi mudada, o teto aumentado e passou-se a exigir a presença de um profissional para acompanhar a parte. A exigência de advogado em simples demandas nas quais o reclamante precisa narrar somente o fato que deu origem ao desentendimento é descabida e contribui para complicar a vida dos pobres, pois as despesas poderão ser superiores ao que reclama o jurisdicionado.
Os Juizados Especiais foram criados para solucionar rapidamente e sem burocracia as pequenas causas, os pequenos conflitos do dia a dia, mas as alterações com a edição da lei 9.099/95 (clique aqui), substituta da lei 7.244/84 (clique aqui), e com as interpretações oferecidas ao sistema, provocaram o desvirtuamento total da justiça dos pobres. Hoje os Juizados atende à classe média e presta-se mais para cobranças de dívidas e para uma série de outras medidas, desviando de seu caminho natural que seria resolver as causas dos despossuídos.
Nos Juizados Especiais Federais e nos Juizados Especiais Estaduais já tramitam milhões de reclamações, numa demonstração inequívoca do mau funcionamento do Estado social.
Os números de ações nos tribunais são alarmantes exatamente porque não se dá direito a quem tem, nem se faz justiça aos que dela precisam; colocam nos ombros dos juízes a solução de qualquer infração à lei, obrigam a se servir do Judiciário para a obtenção de qualquer direito, por mais translúcido que seja; enquanto nos Estados Unidos a Corte Suprema decide 100 causas por ano, no Brasil o STF resolve 100 mil questões. E na grande maioria o Estado figura no processo como parte.
Um primeiro empecilho para igualdade de todos no que se refere ao acesso à Justiça situa-se na obrigatoriedade de contratar advogado, vez que as Defensorias Públicas não possuem estruturas aptas ao atendimento dos necessitados. O governo não oferece meios para o funcionamento deste importante órgão, pois disponibiliza, no orçamento, apenas 0,40%, enquanto ao Ministério Público são destinados 2,02%. Veja que esta instituição defende fundamentalmente o Estado, enquanto a outra, a Defensoria, atua para assegurar o direito do povo; prestigiada uma em detrimento da outra. Esses números mostram que se gasta em média R$ 71,67 por habitante com o Judiciário, direcionando apenas R$ 3.91 para a Defensoria Pública. Tudo isto provoca um salário aviltante para os membros da Defensoria Pública e, portanto, os serviços não condizem com a necessidade do povo, porque se tem poucos profissionais e mesmo assim sem condições de trabalho.
O que não se compreende é o motivo pelo qual não se criou a Defensoria Pública nos Municípios; afinal das unidades municipais é que se chega aos Estados e à União, portanto, mais importante a Defensoria Pública ao nível municipal do que federal e mesmo estadual. Se criadas as Defensorias Públicas nos Municípios tem-se a certeza de que os habitantes dos Estados e da União terão Defensores Públicos, mas o inverso não é verdadeiro, pois a criação das Defensorias Públicas na União e nos Estados não importam em tê-los nos Municípios.
Enfim a Justiça é para todos, mas o direito de defesa com uso da legislação vigente é para poucos.
A negação da cidadania para o carente apresenta-se também por meio dos obstáculos que se antepõem para obter documentos indispensáveis e fundamentais. Afinal, o cidadão tem de desembolsar valor para tirar o CPF, para tirar a carteira de identidade, além de encargos sobre o único imóvel que possui; até para usar os serviços públicos tem de pagar. Se tiver necessidade fisiológica, nos terminais rodoviários, passará por dificuldades, pois lhe cobram para isto; diferentemente do que ocorre nos terminais aéreos, onde gratuitamente o passageiro não pagar para se servir das toaletes.
Se o carente necessitar de algum serviço cartorário, o transtorno é sempre grande. O reconhecimento de firma, por exemplo, é sacrifício para o povo em geral, imagine quantos dissabores passa o cidadão que, às vezes, nem tem residência fixa e, portanto, não dispõe de um papel para atestar a garantia de que mora aqui ou ali. Ademais, perderá tempo precioso, por causa das exigências burocráticas, das senhas e das filas somente para reconhecer sua firma; isto lhe causa prejuízo, pois poderá perder um dia de serviço, além do pagamento do ato notarial que se situa em média em 1% do que ganha.
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*Desembargador do TJ/BA