Quando menos é mais
Oscar Villhena Vieira*
A escolha da questão da produtividade dos ministros, no entanto, não me parece o tema mais relevante e sequer acertado, se o objetivo é aumentar o controle social sobre o STF, até porque o problema do supremo brasileiro é que os ministros decidem muito, não pouco. Não há tribunal constitucional no mundo que tome mais decisões que o brasileiro. Em recente seminário na África do Sul, ao apresentar números do supremo, percebi um ar de ceticismo na audiência. Não demorou muito para que o juiz Jacoob, proeminente membro da Corte Constitucional sul-africana, gentilmente me interrompesse: "caro Oscar os seus números são inverossímeis; 115 mil casos ao ano, significa que, se a corte trabalhasse 240 dias por ano, estaria decidindo 479 casos por dia, o que é mais do que nossa corte julgou em toda sua existência. Isso não me parece possível". Expliquei então que mais de 90% das decisões do tribunal eram tomadas monocraticamente e segui minha apresentação. Logo o juiz Jacoob me interrompeu com sua indefectível matemática: "dividindo o total de casos por 11 juízes, isto daria mais de 10 mil casos por ano, por juiz, o que significa cerca de 1 caso a cada 12 minutos. Impossível!" A mesma estranheza poderia ser manifestada por qualquer membro da suprema corte norte-americana, alemã, canadense, portuguesa ou colombiana. Definitivamente o problema de nosso supremo e de seus ministros não é trabalhar pouco.
Como salientou o ministro Joaquim Barbosa a "Constituição de 1988 atribui ao Supremo esse número absolutamente irracional de competências" (OESP, 3 abril, A 10). Ao STF foram atribuídas funções que na maioria das democracias estão divididas em pelo menos 3 tipos de instituições: cortes constitucionais, tribunais recursais de última instância e foros judiciais especializados. Desta forma, um mesmo órgão, formado por apenas 11 pessoas, julga todas as ações voltadas a controlar a constitucionalidade de leis e atos emanados das esferas estaduais e federal; recebe milhares de recursos extraordinários e agravos de instrumentos voltados a rever decisões de tribunais inferiores; além de julgar ações que envolvam altas autoridades; isto sem falar nos famosos habeas corpus ou pedidos de extradição, que todos os dias abarrotam a pauta do supremo. O problema, portanto, é como reduzir o trabalho dos ministros, para que possam devidamente empregar a enorme autoridade que lhes foi atribuída pela Constituição na solução de controvérsias efetivamente relevantes.
O experiente ministro Cezar Peluso, que assumirá a presidência do STF ainda este mês, terá, assim, enormes desafios. O primeiro deles é baixar o número obsceno de processos que chegam ao tribunal todos os anos. Embora a emenda 45 tenha criado mecanismos voltados a reduzir o impacto deste defeito estrutural da Constituição, há muito ainda a ser feito, tanto pelo Congresso Nacional, como pelo próprio tribunal. Ao congresso cumpre, em diálogo com o supremo, transferir para outras esferas judiciais inúmeras competências. Ao supremo, por sua vez, cabe aprofundar a política de argüição de repercussão geral, transferindo às instâncias judiciais inferiores a responsabilidade de por termo a dissídios que, mantidas na fila do STF, apenas retardam a prestação de justiça aos cidadãos.
Reduzidos os processos, um segundo desafio será reformular o modo pelo qual se constrói a agenda do tribunal. Hoje é difícil compreender a lógica. Alguns processos são julgados em 24 horas e outros permanecem sem decisão por anos. Como justificar isso? Esta, sim, seria uma questão sobre a qual a Transparência Brasil poderia se debruçar, com mais proveito. Por que o pedido de intervenção federal em Rondônia, em função de graves violações de direitos humanos, jamais foi apreciado, enquanto alguns Habeas Corpus são concedidos instantaneamente? É urgente que o STF seja capaz de estabelecer uma agenda mais transparente e criteriosa dos casos que serão apreciados ao longo do semestre ou do ano judiciário. Ele não pode ser tratado como um tribunal de pequenas causas, obrigado a responder imediatamente a tudo que lá chega.
Reduzido o número de casos e estabelecida uma agenda que permita à sociedade saber antecipadamente o que constará da pauta do tribunal, seria possível qualificar o seu processo de deliberação. Em primeiro lugar deveria reduzir ao máximo, senão eliminar, a possibilidade de decisões monocráticas. Um tribunal é, por definição, colegiado. Daí deriva grande parte de sua autoridade, que o excesso de decisões monocráticas coloca em risco.
Decidir coletivamente, no entanto, não pode se resumir a contar votos. O pressuposto básico de um Tribunal que profere a última palavra sobre questões de tamanha relevância é que suas decisões sejam fruto de um robusto processo de deliberação entre os ministros, que aspire refletir uma espécie de "razão pública", na linguagem de Rawls. O que temos hoje, devido à premência do tempo, é uma leitura seqüencial de votos, que eventualmente gera discussões, mas que não resultam na adoção de uma posição da corte, como um ente coletivo.
Não podemos permitir a erosão da autoridade do Supremo. Em política, muitas vezes, menos pode significar mais.
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*Diretor jurídico da Conectas Direitos Humanos. Professor de Direito Constitucional e coordenador do Programa de Mestrado em Direito e Desenvolvimento da Direito GV
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