A Politização do Judiciário
Já faz algum tempo que o Judiciário vê a imagem refletida no espelho da descrença. As razões devem-se tanto ao comportamento de alguns quadros quanto à própria jurisprudência produzida nos tribunais. Sob o aspecto atitudinal, particularmente na esfera de comandos de grande visibilidade, como é o caso dos presidentes do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ), constata-se uma verbalização fecunda, quando não contundente, e intensa articulação com representantes de outros Poderes, derivando daí a impressão de que os ministros desceram do altar onde se cultua o Judiciário para a liça da banalização política. Causa estranheza a desenvoltura com que dirigentes se relacionam com o mundo da política partidária. É elogiável o esforço de uns para abrir fluxos de comunicação com a sociedade. Quando, porém, a expressão da alta administração da Justiça se transforma em negociação de bastidores ou no verbo pouco contido do balcão das barganhas, a imagem do Judiciário mais estilhaçada fica.
Algumas coisas que mancham a imagem. Ao lembrar que o reajuste dos salários de parlamentares poderia ser definido por ato conjunto das Mesas Diretoras da Câmara e do Senado, o presidente do STF, ministro Nelson Jobim, contribui para a imagem negativa da Corte. Quando o presidente do STJ, Edson Vidigal, se apresenta como intermediador de acordo entre companhias aéreas e o governo, tira a toga do magistrado para vestir a beca do advogado. Só pode causar perplexidade, da mesma forma como receitou chá de “erva-cidreira” aos juízes, em face ao assassinato de um vigia de supermercado, em Sobral, no Ceará, por um juiz. Esta semana, o Estado (7/3/2005) estampou a manchete: "Mais de 100 juízes no banco dos réus no País". No mesmo dia, a Folha de São Paulo divulgou que “juízes conciliam ida a congressos com lazer”, mostrando pacotes turísticos embrulhando eventos de presidentes de Tribunais de Justiça. Juízes são acusados de vender sentenças judiciais. A indústria de liminares se expande. E o Brasil se transforma em país das emergências.
Há, ainda, um pérfido voto que sai aos montes das Cortes: o ideológico. Nas demandas trabalhistas, empresas governamentais sempre levam a melhor. Se a empresa é privada, o vitorioso quase nunca é o patrão, comprovando que as decisões não contemplam os fatos. Não se enxergue, aqui, defesa de categoria social. O que se pretende demonstrar é que o maior patrimônio de um juiz é a independência. Essa é a ferramenta para ele ultrapassar a barreira da democracia formal e galgar as fronteiras da democracia substantiva, seara onde deve julgar, conforme a consciência, indo até contra a vontade de maiorias, defendendo direitos fundamentais, não se curvando às pressões midiáticas nem à correntes de opinião. Infelizmente, estruturas periféricas ao Judiciário, entre elas, partes do Ministério Público, cultuam o espelho de Narciso, inebriando-se ante os holofotes da mídia. Como diria Rui Barbosa, “a ninguém importa mais que à magistratura fugir do medo, esquivar humilhações e não conhecer covardia”.
Não se pretende também defender a idéia de que o juiz precisa vestir o figurino da neutralidade. Juízes insípidos, inodoros e insossos tendem a ser os piores. O que a sociedade quer é voltar a encontrar no Judiciário as virtudes que tanto enobrecem a magistratura e outros serventuários da Justiça: independência, saber jurídico, honestidade, coragem e capacidade de enxergar o ideal coletivo. O filósofo Bacon já pregava: “Os juízes devem ser mais instruídos que sutis, mais reverendos que aclamados, mais circunspetos que audaciosos. Acima de todas as coisas, a integridade é a virtude que na função os caracteriza”. Por que estes valores têm sido tão fragmentados?
Sob o estigma da politização e do despreparo de milhares de quadros, caminha o Poder Judiciário. Têmis, a deusa, tem uma venda nos olhos para representar a Justiça que, cega, concede a cada um o que é seu, sem olhar para o litigante. No Brasil, é generalizada a impressão de que, vez ou outra, a deusa afasta a venda para dar uma espiada na clientela.
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*Jornalista, professor titular da USP e consultor político
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*Artigo publicado no jornal O Estado de S.Paulo
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