Preclusão e decisão interlocutória. Anteprojeto do Novo CPC. Análise da proposta da Comissão
Fredie Didier Jr.*
Não nos parece boa a proposta.
Preclusão é técnica processual que favorece a duração razoável do processo e a segurança jurídica. A preclusão também serve para efetivar o princípio da boa-fé, pois protege a confiança na estabilidade da relação processual. É, pois, técnica que está em total conformidade com a intenção de aprimoramento da legislação processual e com o princípio do devido processo legal, que estrutura o modelo de processo civil brasileiro.
A principal justificativa para a elaboração de um novo CPC é a necessidade de simplificar o processo, facilitando o julgando de mérito, que deve ser prestigiado. Pode-se dizer que um dos fundamentos do novo CPC é o princípio da primazia da decisão de mérito.
Se a decisão interlocutória é impugnável, caso o sujeito não recorra, há preclusão, que impede o reexame do que já foi decidido. Se a decisão interlocutória não é recorrível, a preclusão só ocorrerá se, no recurso contra a sentença, a parte não pedir a revisão da decisão proferida no decorrer do procedimento. Se a parte incluir a decisão interlocutória no objeto da apelação, o tribunal poderá revê-la. Se o tribunal acolher a apelação e, com isso, revir a decisão interlocutória proferida há tempos (às vezes, anos atrás), o processo será anulado, a questão voltará à primeira instância e tudo terá de ser refeito. Situações estabilizadas seriam desfeitas. Qualquer processo onde houvesse sido proferida uma decisão interlocutória (todos, me parece) ficaria em perene situação de instabilidade.
Em vez de processo, retrocesso.
Em vez de decisão de mérito, reinício de fases procedimentais já superadas.
Segurança jurídica e duração razoável, "estados de coisas" que precisam ser atingidos por força dos mencionados princípios constitucionais, simplesmente desprezados.
Se a interlocutória é recorrível, haverá preclusão do direito ao recurso se a parte não a impugnar no primeiro momento que lhe couber falar nos autos. Aquela questão, já decidida, não poderia mais ser revista. O órgão jurisdicional passaria a ocupar-se das demais questões objeto da sua cognição, sejam elas questões de mérito ou de admissibilidade, questões de fato ou de direito. Haveria, assim, redução da extensão da cognição, já que em relação a algumas questões teria havido decisão já estabilizada.
Nada justifica, realmente, que o órgão jurisdicional possa decidir uma questão ao longo do procedimento e essa decisão de nada valha. Decisão sem possibilidade de preclusão é situação que claramente ofende a segurança jurídica. Avilta, inclusive, o papel do juiz de primeira instância.
Imaginem as seguintes decisões interlocutórias:
a) não autoriza a formulação de uma pergunta à testemunha;
b) não admite a denunciação da lide;
c) não autoriza a realização de um determinado meio de prova;
d) decide sobre o valor da causa;
e) decide sobre a incompetência relativa;
f) decide sobre o pedido de revogação da justiça gratuita concedida à parte adversária;
g) não admite a reconvenção;
h) indefere a petição inicial da oposição;
i) não aceita um comportamento processual do assistente;
j) considera intempestiva a juntada aos autos do parecer do assistente técnico;
k) determina a exclusão de documentos dos autos;
l) rejeita o pedido de invalidade do processo em razão da não intervenção do Ministério Público ou da não designação do curador especial etc.
Em todos os casos, a prevalecer a proposta da Comissão, essas decisões somente poderiam ser revistas muito tempo depois de terem sido proferidas, exatamente no momento do julgamento da apelação. Acolhida a apelação nesta parte, todos os atos do procedimento posteriores à decisão anulada também seriam anulados. E os atos anulados teriam de, em regra, ser novamente praticados.
É preciso manter o sistema atual: decisão interlocutória que não cause risco à parte deve ser impugnada por agravo retido; a recorribilidade da decisão faz com que, necessariamente, se ela não for recorrida, surja a preclusão, que impede o reexame da questão e evita o retrocesso. Parecem muito claras as vantagens deste sistema.
É possível, porém, que se levante o seguinte argumento: nos Juizados Especiais o sistema é esse e funciona bem.
O argumento não convence.
O procedimento dos Juizados Especiais é estruturado para que o juiz conheça da causa já na audiência de instrução e julgamento, momento em que, inclusive, a decisão final já deve ser proferida. As decisões proferidas em audiência praticamente coincidem temporalmente com a sentença. Antes da audiência, decisão interlocutória seria basicamente a de antecipação da tutela, recorrível nos Juizados Especiais Federais e alvo de mandado de segurança nos Juizados Estaduais. Além disso, nos Juizados não se admite intervenção de terceiro, o que obviamente restringe a possibilidade de decisões interlocutórias "inesperadas". Em um sistema como esse, não há qualquer problema em o recurso contra a sentença abranger também as decisões interlocutórias, pois essas praticamente são coevas àquela.
Como se percebe com alguma facilidade, o procedimento comum ordinário tem fases bem divididas e permite, como não poderia deixar de ser, o surgimento de vários incidentes. Há uma infinidade de situações que podem dar ensejo a decisões interlocutórias, proferidas quase sempre em momento muito anterior ao da sentença. Trata-se de uma regra da experiência identificada há tempos.
Há outras duas nuances do problema.
De acordo com o primeiro relatório divulgado pela Comissão de Juristas para o novo CPC, um dos vetores da reforma é a flexibilização do sistema de estabilidade da demanda, permitindo acréscimos e alterações do processo, em seus aspectos objetivo e subjetivo, com mais facilidade do que o sistema atual. Mitiga-se a preclusão neste ponto. A proposta merece elogios no particular. Está em consonância com os principais ordenamentos jurídicos estrangeiros e com a melhor doutrina. Note, porém, a diferença: uma coisa é enfraquecer a preclusão para permitir decisões mais justas e favorecer a economia processual, tornando o procedimento mais flexível, como é o caso. Trata-se de tornar o caminho mais adaptável às peculiaridades do caso concreto. Nada tem a ver com relativizar a preclusão das decisões: a decisão não é caminho, é chegada, ainda que seja interlocutória (em relação àquela questão, chegou-se a uma solução). Se a solução de uma questão ficar em permanente situação de instabilidade, uma das funções do processo se frustra: tornar certo aquilo que é controvertido.
Finalmente, a possível preclusão da decisão interlocutória não impede o reexame da questão em razão de fato superveniente. Nenhuma preclusão é indiferente a fatos supervenientes. É preciso perceber que a preclusão tem uma dimensão retrospectiva, o seu objeto é uma decisão proferida com base em certas circunstâncias, e uma dimensão prospectiva, impedir que essa solução seja revista. Fato superveniente à decisão não está abrangido pela preclusão, exatamente porque não existia à época em que a decisão foi proferida.
Espero que essas considerações sejam recebidas como uma provocação à reflexão.
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*Professor-adjunto da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia. Sócio do escritório Didier, Sodré e Rosa Advocacia e Consultoria
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