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O mandado de segurança e a constituição – dois tópicos

A singeleza do perfil das leis reguladoras da ação de mandado de segurança, muito embora trouxesse alguma perplexidade doutrinária, o certo é que sempre esteve a serviço da distribuição de uma justiça tão rápida quanto possível.

24/2/2010


O mandado de segurança e a constituição – dois tópicos

Sérgio Roxo da Fonseca*

1 - A singeleza do perfil das leis reguladoras da ação de mandado de segurança, muito embora trouxesse alguma perplexidade doutrinária, o certo é que sempre esteve a serviço da distribuição de uma justiça tão rápida quanto possível.

O mandado de segurança converteu-se assim no principal instrumento da defesa dos interesses dos cidadãos frente ao Estado e seus delegados, tomando mesmo uma posição, nessa área, muito mais importante do que o "habeas corpus".

A nova Lei do Mandado de Segurança1 (clique aqui) afasta-se da antiga pia batismal, instalando formalidades tendentes a tornar o seu processo menos expedito e muito mais inçado de complexidades.

Já são registradas importantes críticas quanto à sua constitucionalidade, duas das quais referidas aos seus arts. 15 e 18.

Com palavras sábias, o Desembargador Jorge Luiz de Almeida, na minha presença, ao examinar o "caput" do mencionado dispositivo reconheceu que a nova lei autorizou um controle administrativo sobre o exercício da função jurisdicional, o que, violaria o princípio da tripartição de poderes.

O não menos autorizado Vicente Greco Filho, em seu "O Novo Mandado de Segurança"2, examinando a redação do art., 18, destaca que a sua confusa redação leva o intérprete a crer que a lei busca contornar a disciplina constitucional dos recursos extraordinário, especial e ordinário.

2 - Induvidosamente, o art. 15 da Lei do Mandado de Segurança atribui ao presidente dos Tribunais o poder de suspender a execução de liminares concedidas, invocando a proteção à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas.

Extrai-se da redação que a lei não mune a autoridade para suspender liminares, exercendo controle de legalidade, mas, sim, invocando a proteção do interesse público.

Não se pretende dizer que é descabida a atuação do Judiciário propendente à satisfação do interesse público. Neste sentido a Lei de Introdução ao Código Civil (clique aqui), a nossa Lei Geral, já preceituava, desde o século passado, alguma coisa neste sentido, até mesmo ao projetar uma solução a conflitos no domínio privado. Por sobradas razões tal exigência deveria imperar em área de direito público. São estas as palavras do preceptivo: "na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum"3.

O dispositivo, com certeza, referia-se ao exercício da função jurisdicional, a se levar em conta as suas múltiplas e importantíssimas funções.

A questão esbarra na nova visão do princípio da tripartição de poderes, levando-se em conta mais a função do órgão do que a sua aritmética orografia ou apenas à finalidade perseguida pelas decisões4. A função faz o órgão e não o contrário. Realmente, a natureza jurídica das decisões definirá a sua função constitucional e não a sua simples identificação por meio da sua fonte geradora.

Vale a pena observar o que a respeito escreveu Agustín Gordillo5. O aplaudido administrativista estudou o princípio da tripartição de poderes, levando em conta a diversidade da natureza jurídica dos atos editados e não apenas a distinção formal dos seus órgãos geradores.

Cabe, pois, ao Legislativo exercer a função legiferante, judicial e administrativa, quando cria direito novo, ou quando julga determinadas autoridades da República e quando gerencia seus serviços.

O Judiciário exerce tanto função jurisdicional, ao resolver conflitos de interesses, como também função legiferante, ao colmatar as lacunas do ordenamento jurídico6 e finalmente função administrativista, seja no âmbito da denominada jurisdição voluntária, seja ao gerenciar os seus próprios serviços.

Cabe residualmente ao Executivo exercer função administrativa, como também legiferante ao criar direito novo, sob a forma de medidas provisórias.

Não são portanto funções atípicas as exercidas pelo Legislativo, fora do âmbito da revelação do direito novo; nem as do Judiciário além do domínio da solução de conflitos de interesses; nem do Executivo para lá do exercício da funçã0o administrativa. Muito embora longe do modelo originário, tais funções, antigamente batizadas como atípicas, são típicas porque reveladas pelo regime constitucional de 1988.

Ao seu voltar os olhos para o exercício da função jurisdicional, são encontradas as dificuldades apontadas.

A questão que imediatamente surge é a seguinte: o ato administrativo editado por um juiz tem forma e fundo de sentença ou de ato administrativo? O ato administrativo editado por um juiz está sob o regime jurídico administrativo ou judicial?

Daí defluiu outra indagação: o juiz no exercício da sua função administrativa tem o poder de decidir com a garantia da coisa julgada? Ou não? Enfim, chega-se a um terceiro degrau: pode algum órgão do Judiciário, no exercício da função administrativa, controlar o exercício da função jurisdicional?

O mencionado art. 15 outorga competência administrativa aos presidentes de tribunais para suspender liminares, deferidas no exercício de função jurisdicional. Da sua leitura percebe-se que não se trata de controle de legalidade, mas, sim, de controle administrativo:

Art. 15. Quando, a requerimento de pessoa jurídica de direito público interessada ou do Ministério Público e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas, o presidente do tribunal ao qual couber o conhecimento do respectivo recurso poderá suspender, em decisão fundamentada, a execução da liminar e da sentença, dessa decisão caberá agravo, sem efeito suspensivo, no prazo de 5 (cinco) dias, que será levado a julgamento na sessão seguinte à sua interposição.

No passado, foi criada uma instância administrativa, como condição do exercício do direito de ação, exigindo-se dos acidentados do trabalho ou de seus familiares a sua exaustão como chave necessária de abertura ao acesso ao Judiciário. Trata-se do Decreto 71.037, de 1972. Vários foram os recursos suscitando a inconstitucionalidade do dispositivo, com fundamento na violação da garantia da inafastabilidade da jurisdição, protegida, certamente pelo reconhecimento da soberania da jurisdição; A função jurisdicional deve estar imunizada de qualquer espécie de travamento administrativo. A segunda turma do Supremo Tribunal Federal pronunciou a inconstitucionalidade da exigência, conforme se extrai da leitura do Recurso Extraordinário 79650, de São Paulo, relatado pelo Ministro Thompson Flores, julgado em 9.12.74.

Em sentido bem parecido encontra-se a redação do art. 22, da Lei Federal 9.868, de 19 de novembro de 1999 (clique aqui), responsável por introduzir a tão festejada modulação constitucional. É perceptível que a hipótese versada não é de controle de legalidade, mas, sim, de oportunidade, vale dizer, controle administrativo, ainda quando exercido por órgão do Judiciário:

Art. 27 – Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringirem os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.

Daí resulta que mesmo quando se tratar de lei ou de ato normativo inconstitucional, o Supremo Tribunal Federal tem o poder de reconhecer administrativamente a sua constitucionalidade "pro tempore", tanto quanto ao passado ou quanto ao futuro, dependendo do que a maioria de seus membros entenda ser "razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social". Não se trata, pois, de controle de legalidade, ou de seu supremo conceito: o controle de constitucionalidade. Mas sim de controle administrativo imposto à função jurisdicional.

O recente decreto federal, instituidor do III Plano de Direitos Humanos, espelha esse expediente, propondo a criação de uma audiência extrajudicial "como medida preliminar à avaliação da concessão de medidas liminares" a serem concedidas em demandas voltadas à solução de conflitos rurais ou urbanos:

"Propor projeto de lei para institucionalizar a utilização da mediação como ato inicial das demandas de conflitos agrários e urbanos, priorizando a realização de audiência coletiva com os envolvidos, com a presença do Ministério Público, do poder público local, órgãos públicos especializados e Polícia Militar, como medida preliminar à avaliação da concessão de medidas liminares, sem prejuízo de outros meios institucionais para solução de conflitos".

Bem verdade que tal controle, a ser instituído, deverá ser exercido na esfera do Executivo, porém, a se admitir como correta a divisão das funções, segundo a natureza de seus atos, tanto na primeira hipótese, como nesta última, o que se busca é a submissão da jurisdição a ordens de natureza administrativa.

A soberania da função jurisdicional, em nome de um ranço histórico, cada vez mais passa para um controle administrativo, ainda quando exercido por algum órgão do Judiciário, com grave sofrimento do sistema constitucional em vigor.

Se bem compreendi a lição do eminente Desembargador Jorge Luiz de Almeida, a atribuição desses poderes pela nova lei fere, ao menos o princípio da tripartição de poderes, insculpido na redação do art. 2º da Constituição da República. O exercício da função jurisdicional não pode ser controlada por decisões administrativas, ainda quando originárias de um de seus órgãos do Judiciário, sob pena de grave insulto à sua autonomia e soberania.

3 - Por sua vez Vicente Greco Filho7 registra a sua perplexidade frente à redação dada ao art. 18 da nova lei:

"Das decisões em mandado de segurança proferidas em única instância pelos tribunais cabe recurso especial e extraordinário, nos casos legalmente previstos, e recurso ordinário, quando a ordem for denegada."

Consabidamente, os recursos especial e extraordinário têm disciplina constitucional. Como compreender a nova redação que claramente invoca a legislação infraconstitucional como instrumento de sua disciplina? Se não cabe à lei regular a matéria constitucional, o dispositivo se apresenta ou inútil ou sugestivo do aparecimento de uma nova pauta. Restritiva? Provavelmente, sim.

Será que a nova Lei do Mandado de Segurança procurou encurtar o âmbito constitucional? Ou, será que o texto apenas ampliou a disciplina dos recursos a serem remetidos aos tribunais de Brasília? Precisaria? Se não, qual o sentido de tão estranho dispositivo?

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1 Lei n. 12.016, de 7 de agosto de 2009.

2 GRECO FILHO, Vicente. O novo mandado de segurança. São Paulo: Saraiva, 2.010, p.

3 Lei de Introdução ao Código Civil (decreto-lei 4.657, de 4 de setembro de 1942), art. 5º.

4 FORSTHOFF, Ernst. Traité de droit administratif alemand. Bruxelas, Etablissements Emile Bruylant 1969, p. 39.

5 GORDILLO, A. Tratado de direito administrativo. Buenos Aires: Ediciones Macchi, 1984, tomo 1, p. VII-41.

6 Lei de Introdução ao Código Civil (decreto-lei 4.657, de 4 de setembro de 1942, art. 4º).

7 GRECO FILHO, Vicente. O novo mandado de segurança. São Paulo, Saraiva, 2010, p. 47.

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*Advogado, Procurador de Justiça aposentado do Ministério Público de São Paulo, professor da Faculdades COC




 

 

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