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Paulo de Souza: a dignidade do profissional

O tempo devora as coisas, mas a memória conserva os bons. Parece recente meu primeiro encontro com Paulo de Souza, em seu escritório no centro de São Paulo. Eram os anos 80 e meu pai insistia para eu assumir a gestão de imóveis herdados por minha mãe na Barra Funda.

12/1/2010


Paulo de Souza: a dignidade do profissional

Antônio Sérgio Altieri de Moraes Pitombo*

O tempo devora as coisas, mas a memória conserva os bons. Parece recente meu primeiro encontro com Paulo de Souza, em seu escritório no centro de São Paulo. Eram os anos 80 e meu pai insistia para eu assumir a gestão de imóveis herdados por minha mãe na Barra Funda.

Confesso que, aos dezesseis anos, aquilo me parecia maçante diante da desordem dos papéis, da ausência de registros imobiliários e da decadência dos imóveis – dois velhos cortiços com todo tipo de problema.

Quem conheceu a rigidez de meu pai sabe que, dessa missão de regularizar os títulos de propriedade e de reformar aquelas casas, eu não escaparia como não escapei. Para me ajudar na tarefa dos registros surgiu o nome do despachante imobiliário Paulo de Souza, companheiro de xadrez da sua infância.

Marcada a reunião, lá fui eu sozinho para o escritório do despachante, na Rua Benjamin Constant, próximo ao Largo de São Francisco, esperançoso de que ele aliviasse meu encargo mediante rápida leitura. Ao chegar, qual não foi a surpresa ao observar que aquele bem humorado homem era quase cego. Lia com o auxílio de muitas lupas e escrevia seus bilhetes em letras grandes na máquina de escrever, usando apenas as maiúsculas.

O inusitado tornou maior meu interesse pelo trabalho com a documentação e seu esforço contínuo de ler fez-me buscar penitências, graças ao contraste com minha preguiça inicial de examinar todos aqueles papéis.

Em mais de 25 anos de amizade, nunca mais deixei de contratar os serviços de Paulo de Souza, o conselheiro em discussões no registro imobiliário e na Prefeitura Municipal, no fechamento de contratos de venda e compra de imóveis, bem como em ações judiciais.

Afinal, nenhuma dificuldade visual lhe retirava o cuidado no exame dos documentos, na leitura das transcrições ou mesmo na conferência da metragem dos imóveis. Sempre achava um ponto para aperfeiçoar no texto, ou fazia uma observação de caráter prático quanto ao registro do imóvel. Era experiência e atenção.

Na semana passada, recebi em viagem a notícia de sua morte. Resolvi homenagear o profissional que escolhe um ofício, ao qual se dedica com disciplina, para ser reconhecido entre os melhores.

A priori, ninguém imagina o deficiente visual capaz de trabalhar como despachante imobiliário, ou paralegal. Ler documentos antigos, com letras à mão e miúdas, não lhe parece atividade compatível. Todavia, a superação pelo esforço pessoal mostra a dimensão do homem.

Paulo de Souza e Jorge Luiz Borges podem rir juntos, cada um a seu modo. Ambos souberam mostrar como os olhos fazem falta para quem não quer ver e, não, para quem aprendeu a enxergar a vida como desafio ao próprio fadário:

"Ninguém rebaixe a lágrima ou rejeite
Esta declaração da maestria
de Deus, que com magnífica ironia
deu-me a um só tempo os livros e a noite"

(Borges, J.L., Poema dos dons)

Paulo de Souza esteja em paz, porque o exemplo que deu se conserva como o poema, no coração de quem o guarda, mesmo sem poder lhe rever entre os documentos e a noite.

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*Advogado do escritório Moraes Pitombo Advogados

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