Câmeras corporais e controle da atividade dos órgãos de segurança: contribuições à sua regulamentação pelo governo federal
Editorial do mês de março/2024.
quinta-feira, 7 de março de 2024
Atualizado às 07:56
A Secretaria Nacional de Segurança Pública formulou consulta pública referente ao esboço da "Portaria da Diretriz Nacional sobre Câmeras Corporais em Segurança Pública". Dada sua importância para a redução da letalidade policial e o debate sobre o controle da ação policial, o IBCCRIM elaborou contribuições e as submeteu.[i]
Ainda que o contexto social e político dos anos anteriores, em razão da ascensão da extrema direita, tenha solapado a participação social e desestruturado os mecanismos de controle da violência institucional das polícias e nos cárceres, a introdução das câmeras corporais, inicialmente na Polícia Militar de São Paulo, evidenciou a potencialidade de uma política de controle do uso da força por meio da videovigilância. Houve redução expressiva não apenas de mortes em decorrência da ação policial, mas também de crimes cometidos contra os policiais em serviço. Os resultados impulsionaram a adoção das câmeras por outras polícias e o desenho de uma política para sua adoção no Ministério da Justiça e Segurança Pública no atual governo.
O IBCCRIM apoia e saúda as políticas de controle do uso da força pelas polícias, assim como expressa alívio com o retorno das consultas à sociedade civil no âmbito federal.
No que tange ao conteúdo, a minuta está organizada em 8 capítulos, com 26 artigos. O documento busca estabelecer as diretrizes nacionais que os estados devem observar ao optarem pela implementação de câmeras corporais, visando ao financiamento federal. Sem a intenção de esgotar o tema, o instituto buscou contribuir com sugestões em aspectos que carecem de discussão mais aprofundada e eventual revisão do texto antes de sua publicação.[ii]
Nas "Disposições Preliminares", observa-se que o documento carece de força normativa para impor o uso do equipamento pelas forças de segurança estadual, em virtude da autonomia federativa. Entretanto a redação do §1º do artigo 1º, ao declarar que "A observância do disposto nesta Portaria é obrigatória para todos os órgãos de segurança pública que optarem pela implementação de câmeras corporais", transmite a impressão equivocada de que os órgãos de segurança detêm a prerrogativa de decisão sobre a utilização do equipamento, quando, na realidade, tal competência pertence aos chefes dos Poderes Executivos.
O caput do artigo 1º afirma que a Portaria se destina a todos os órgãos de segurança pública, incluindo a Força Nacional e a Força Penal Nacional no parágrafo segundo. Contudo há uma omissão com relação às guardas municipais, suscitando uma questão complexa acerca do enquadramento dessas instituições como forças de segurança. A eventual inclusão das guardas na Portaria representaria um reconhecimento significativo de sua natureza como órgãos de segurança - ainda que com atribuição restrita à proteção de bens, serviços e instalações municipais -, enquanto sua exclusão significaria fechar os olhos às práticas policialescas dessas instituições, sem a devida fiscalização conferida pelas câmeras corporais.
No capítulo III, é iniciado o tema "Da Utilização". Em seus artigos e incisos são delineadas as hipóteses de utilização do equipamento. O texto deixa claro que se trata de rol exemplificativo, ao utilizar acertadamente a expressão "pelo menos, nas seguintes circunstâncias". Contudo o que chama a atenção são os §§ 1º e 2º do artigo 8º.
De acordo com § 1º, "a utilização de câmeras corporais deve ser regulamentada por cada órgão de segurança pública de acordo com as peculiaridades do seu regime jurídico". Esse parágrafo parece indicar que cabe ao próprio órgão de segurança pública a regulamentação do uso, ou seja, cabe à polícia dizer como a polícia vai usar a câmera. Por uma interpretação literal da minuta, não caberia ao Poder Executivo, Poder Legislativo, Judiciário, Ministério Público, Defensoria, participação popular etc. estabelecer a regulamentação das câmeras, mas sim às próprias forças de segurança, em tentativa de alijamento das demais instituições e da sociedade civil das políticas de segurança pública.
Parece também ser necessário definir o que se entende por "peculiaridades do seu regime jurídico". Isso significaria que as polícias preventivas e repressivas teriam formas diferentes de utilização das câmeras? Quem definirá isso são elas mesmas?
O § 2º traz a previsão de necessidade de regulação específica para a seguinte hipótese: "O uso de câmeras corporais nas atividades de inteligência, em investigações que possam ter sua eficiência prejudicada pelo seu uso e em situações que violem a intimidade do profissional deve ser objeto de regulamentação específica".
O dispositivo parece indicar que, durante as atividades de inteligência, em investigações que possam ser prejudicadas pelo uso das câmeras e em situações que violem a intimidade do profissional, deverá haver uma regulamentação específica que norteie a não utilização das câmeras.
Abrem-se três importantes brechas para o afastamento da obrigatoriedade do equipamento e não se estabelece quem deverá emitir essa regulamentação. Em uma leitura primeira, é passada a impressão de ser a própria instituição, o que não se coaduna com a necessidade de reforço de controle externo dos órgãos de segurança.
Outro ponto importante: qual o conceito de "atividade de inteligência e de investigação" está se tomando no dispositivo? Ali está prevista somente a atividade das polícias judiciárias, que são, em regra, as únicas habilitadas constitucionalmente a promoverem investigações, ou o termo é amplo e abrange todo e qualquer tipo de atividade de inteligência e atos investigativos?
Sobre os "Procedimentos" previstos no capítulo IV, é necessário chamar a atenção sobre o artigo 10, especialmente quanto ao seu § 2º, que prevê: "os órgãos de segurança pública poderão, justificada e excepcionalmente, regular hipóteses de vedação do uso de câmeras corporais e classificação de acesso, especialmente quando importe constrangimento ou situações vexatórias dos envolvidos".
Assim como no artigo 8º, a Portaria confia novamente às forças de segurança a tarefa de regular hipóteses de vedação do uso de câmeras e de classificar (leia-se limitar) seu acesso, no caso de as imagens poderem causar constrangimentos ou situações vexatórias aos envolvidos.
Além da necessidade de discutir se a tarefa de definir as hipóteses de não utilização do equipamento e da limitação de acesso deva caber às polícias, também se faz necessário discutir o que seriam situações que causem constrangimento ou situações vexatórias aos envolvidos, bem como a existência de outros meios, como a aposição de segredo de justiça, que não sacrifiquem por completo o monitoramento da atividade. Por fim, quanto a esse parágrafo, o termo "especialmente" necessita de revisão, pois significaria que aquelas hipóteses previstas são exemplificativas, podendo haver outras.
Passando ao tema do "Acesso aos Registros Audiovisuais", previsto no capítulo VII, o artigo 21 já se inicia demonstrando que a Portaria pretende também confiar às instituições policiais o tema da regulamentação do acesso às imagens gravadas:
[...] as instituições de segurança pública deverão regulamentar o acesso imediato aos registros audiovisuais das câmeras corporais de acordo com os seguintes parâmetros.
I - mediante requisição do juiz, do Ministério Público, do delegado de polícia, do defensor público, e de responsáveis por investigações e processos administrativos;
II - mediante requerimento do advogado da vítima, do acusado e do investigado.
Apesar de apresentar parâmetros - que nada mais são que obrigações judiciais das forças policiais -, o artigo 21 é uma carta branca para elas organizarem como desejem o acesso ao objeto mais importante da Portaria, que é a própria gravação.
Os parâmetros são tão insuficientes que sequer preveem a possibilidade de acesso pela vítima sem a representação por advogado. No processo penal, não é necessária, via de regra, a nomeação de advogado à vítima. Contudo a Portaria cria essa obrigatoriedade, gerando ônus à pessoa ofendida.
O § 2º traz exceção à maior conquista prevista no caput, que é o "acesso imediato" às gravações. De acordo com o mencionado dispositivo: "na hipótese de ausência da regulamentação de que trata o caput, o órgão de segurança pública deverá conceder o acesso em prazo não superior a vinte dias, prorrogáveis, de forma justificada, por mais dez dias".
Ou seja, caso a própria instituição não consiga se organizar para fornecer imagens imediatamente, ela poderá contar com prazo de até 30 dias para fazê-lo. Além de desincentivar o estabelecimento de protocolos e procedimentos para acesso imediato, a Portaria estabelece prazo desarrazoado, pois o acesso a elemento informativo central seria efetivado apenas após o escoamento do prazo legal de conclusão de inquérito policial.
É possível perceber que a Portaria mantém uma tradição institucional brasileira de plena e contrafática confiança nas forças de segurança e de baixa participação de outros órgãos e da população civil em temas dessa natureza.
A construção da Portaria, conforme é possível perceber pelas entidades que compuseram o grupo de estudos que a redigiu, foi realizada pelas e para as polícias. A ausência de participação de outros órgãos estatais, da comunidade universitária e da sociedade civil na construção evidencia a falta de abertura dos órgãos de segurança ao tema, reforçando a ideia de que "os especialistas" são somente os policiais e a eles cabe a função de regulamentar a utilização das câmeras corporais do começo ao fim.
Assim, as contribuições apresentadas pelo IBCCRIM ao texto da Portaria referem-se à previsão de que todas as decisões sobre uso de câmeras e acesso às imagens sejam da titularidade dos Poderes Executivos aos quais cada polícia está vinculada. Foi proposto ainda que o Ouvidor da polícia ou dos serviços públicos também possa requisitar acesso às imagens. Com isso, esperamos contribuir para o fortalecimento da prestação de contas das organizações policiais e com a efetivação de políticas de controle do uso da força, com vistas à redução dos índices de letalidade policial e violência institucional que, em regra, abatem-se prioritariamente sobre a parcela mais vulnerável da população - preta, pobre e periférica - e legitima-se a partir da suposta "fé pública" administrativa dos agentes de segurança, que os juízes insistem em transportar ao processo penal, em sacrifício do mandamento constitucional da presunção de inocência.
Como citar (ABNT Brasil):
IBCCRIM. Câmeras corporais e controle da atividade dos órgãos de segurança: contribuições à sua regulamentação pelo governo federal. Boletim IBCCRIM, [S. l.], v. 32, n. 375, [s.d.]. Disponível em: https://publicacoes.ibccrim.org.br/index.php/boletim_1993/article/view/1005. Acesso em: 26 fev. 2024.
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[i] Confira em: https://ibccrim.org.br/media/posts/arquivos/arquivo-26-01-2024-17-48-18-611722.pdf.
[ii] A portaria e o resultado da consulta pública podem ser conferidos na página: https://www.gov.br/participamaisbrasil/consulta-publica-sobre-a-portaria-da-diretriz-nacional-sobre-cameras-corporais-em-seguranca-publica.