Segurança pública: uma agenda de toda a sociedade brasileira
Editorial do mês de dezembro/2023.
quinta-feira, 14 de dezembro de 2023
Atualizado às 09:13
O projeto de lei (PL) 3.045/2022, que trata da "Lei Orgânica Nacional das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros Militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios", foi aprovado no Senado Federal no dia 7 de novembro de 2023, sem alterações no texto oriundo da Câmara dos Deputados (PL 4.363/2001) e sem muitas condições de discussão e debate durante sua tramitação. No momento, aguarda sanção presidencial. A julgar pelo apoio que uniu governistas e oposicionistas em ambas as Casas Legislativas e pelas manifestações favoráveis do Poder Executivo Federal, apesar das divergências internas, é possível arriscar a previsão de que não haverá muitos vetos - quem sabe ali, talvez, onde as inconstitucionalidades são mais salientes, indicando a necessidade de maior contenção do legislador, em respeito às normas e aos princípios constitucionais.
Há inúmeros defeitos e problemas no texto. Apontá-los ultrapassaria os limites de um simples editorial. Certo é que a oportunidade de construir uma nova lei sobre as forças de segurança pública que, numa palavra, avançasse em termos da desmilitarização, foi completamente desperdiçada. O sistema aprovado mantém a lógica de vinculação das polícias ao Comando do Exército, em reforço ao modelo estabelecido durante a ditadura militar pelo Decreto-Lei 667/1969 que, naquele período, e com base no Ato Institucional 5/1968, transferiu às Forças Armadas o controle e a coordenação das Polícias Militares dos Estados - aqui vale lembrar que o referido Decreto-Lei de 1969 nem sequer foi revogado, mas apenas pontualmente modificado. Assim, em linha de continuidade com o modelo que nem mesmo a Constituição de 1988 conseguiu ultrapassar, está, por exemplo, a manutenção da Inspetoria-Geral das Polícias Militares, a IGPM criada em 1967, agora IGPM/BM, Inspetoria-Geral das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros Militares, em manifesto desacordo com o que dispõe o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP) instituído pela Lei 13.675/2018. Após mais de meio século da edição do Decreto-Lei 677/1969, o Estado brasileiro perdeu a oportunidade de instituir uma lei única, ainda no marco do SUSP, capaz de regular, sob normas de caráter geral, as Polícias Civis, Militares e outras forças de segurança pública, de forma integrada e coordenada. Há, enfim, muitos outros pontos que merecem atenção, entre os quais destacam-se a possibilidade de subordinação das Ouvidorias de Polícia ao Comandante-Geral da Polícia Militar e o avanço da militarização para outras áreas do setor público, como a do meio ambiente.
O texto inicial correspondente ao projeto que tramitou na Câmara dos Deputados data de março de 2001 foi uma iniciativa do Poder Executivo Federal, sob a chefia do então Presidente Fernando Henrique Cardoso. Somente no ano de 2020 o tema retornou à pauta política, fortemente impulsionado pela onda de politização das forças de segurança, em um ano que registrou um dos maiores motins levado a efeito pela Polícia Militar no Estado do Ceará. A tônica era conferida pelo discurso de "autonomia das polícias" em relação aos governos estaduais. No período, ideias como lista tríplice para a escolha de comandante-geral da PM e "porta-giratória", em favor do retorno à atividade de policiais eleitos para mandatos político-eleitorais, chegaram a integrar por um tempo o texto da proposta sob relatoria do Deputado Capitão Augusto, do Partido Liberal de São Paulo. O governo Bolsonaro chegou ao fim sem que o projeto fosse aprovado na Câmara dos Deputados, o que acabou por acontecer nos últimos dias do ano legislativo de 2022.
O tema da organização, da competência e atuação das polícias, do controle de suas atividades e até mesmo de sua valorização como instituições de Estado é de grande relevância numa Democracia e deveria ter sido conduzido de maneira a possibilitar maior participação da sociedade e de outras organizações, além das associações representativas das Polícias Civis e Militares. Infelizmente, não foi o que aconteceu. É necessário responder por que razão não foi possível avançar no sentido da desmilitarização - embora aqui não seja o lugar para o desenvolvimento de uma análise dessa natureza -, mas também é preciso seguir em frente, diante do fato consumado. Como reconhecem especialistas da área de segurança pública, há pontos positivos na lei que está para ser aprovada. Apesar da manutenção do modelo militarizado, existem novas possibilidades e novas experiências no horizonte.
Entre as iniciativas na área de segurança pública que se deram em novembro, merece destaque também a apresentação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 57, de transformação das Guardas Municipais em Polícias Municipais. A demanda da categoria das Guardas Municipais para integrar o sistema de segurança pública com atribuições típicas de polícia não é nova e já conta com decisão favorável do Supremo Tribunal Federal, no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 995, no sentido de afastar as interpretações judiciais que retiravam das guardas as atribuições típicas de segurança pública. A nova PEC altera os artigos 40 e 144 da Constituição da República para inserir definitivamente as guardas municipais como órgãos integrantes do sistema de segurança pública, alterando, inclusive a nomenclatura da carreira para Polícias Municipais. A consequência direta da proposição, caso seja aprovada nas duas Casas Legislativas, é a possibilidade de criação de mais de cinco mil órgãos de polícias nos municípios brasileiros, com os desafios e as contradições que são típicos do manejo e da gestão da segurança pública nacional. Há posições no sentido de que as guardas já exercem o poder de polícia e tal cenário é uma realidade. Ainda não parece claro, no entanto, quais serão os mecanismos de controle externo e de controle social sobre os quais as novas polícias municipais estarão submetidas, bem como as balizas de atribuições que possam atender a um só tempo, de um lado, as especificidades de cada município, mas de outro uma atuação articulada e coordenada entre os entes da federação.
Diante da evidente mobilização em torno do tema, surge a oportunidade para estudiosos, pesquisadores, ativistas e sociedade civil organizada aprofundarem a discussão sobre os rumos das políticas públicas de segurança, entendendo que sua formulação não pode se resumir às corporações policiais.
Se estivermos diante de um desejo nacional de mais agentes de segurança pública nas ruas, aculturados aos abusos de autoridade, violência, opressão e disputas de poder, sem dúvida aprofundaremos ainda mais a distância entre o cidadão e o poder público, com graves repercussões na legitimidade própria do exercício da força pelo Estado. Por outro lado, se se apresentar um cenário no qual as Polícias Municipais projetarão o modelo idealizado do policiamento comunitário, com respeito a cidadania, dignidade e direitos humanos, a aproximação desses agentes com a população poderá indicar um novo paradigma na segurança pública. Por isso, são fundamentais as experiências exitosas, merecedoras de destaque, e a identificação de práticas que já não são mais aceitáveis, uma vez reafirmada a escolha democrática por uma sociedade mais justa e solidária.
Assim, o debate sobre as políticas de segurança pública definitivamente não pode se encapsular nas corporações policiais. É um desafio muito mais amplo, que exige de toda a sociedade brasileira o compromisso e a disposição para a pavimentação de um caminho que seja de encontro e concertação.
Como citar (ABNT Brasil):
IBCCRIM. Segurança Pública: uma agenda de toda a sociedade brasileira. Boletim IBCCRIM, 31(373). Recuperado de https://publicacoes.ibccrim.org.br/index.php/boletim_1993/article/view/855