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Saberes negros e Ciências Criminais

Editorial do mês de novembro/2023.

terça-feira, 14 de novembro de 2023

Atualizado às 10:54

O mês de novembro traz consigo a renovação de uma reflexão que deveria ser permanente. "Mês da Consciência Negra", tem no dia 20 a sua data maior de "comemoração", nos termos da Lei 12.519/2011, que institucionalizou a relevância do dia da morte do líder negro Zumbi dos Palmares. Além de simbólico, esse marco legal evoca o acúmulo de décadas de lutas dos movimentos negros no Brasil, responsáveis, direta ou indiretamente, pela denúncia de formas de violência de que, hoje, muito se ouve falar, entre elas a letalidade policial, o encarceramento em massa e o feminicídio. Essas formas de opressão abatem preponderantemente as pessoas pretas e pardas do País, havendo inegável sobrerrepresentação da população negra (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2022) nos dados que registram a morte provocada por agentes policiais, a segregação nas prisões e a violência contra as mulheres (Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2023) - realidade nefasta que acomete especialmente as mulheres negras. Por "sobrerrepresentação" quer-se dizer que, por exemplo, o percentual de pessoas negras vitimadas pela polícia (83,1%) é maior do que sua representação na população em geral (55,9%), o que sepulta o argumento de que essa seria uma consequência exclusiva da condição socioeconômica.

As múltiplas maneiras de exterminar a população negra confirmam o curso do que se deve nominar "genocídio do povo negro" (Nascimento, A., 1978), especialmente empreendido a partir do sistema penal (Flauzina, 2017), em suas manifestações ativas - causador da morte - ou omissivas - leniência com as práticas estatais ilegais de matança. Apesar disso, o existir negro não pode ser cristalizado e reduzido à sua condição de objeto da violência e de estudos criminológicos (Calazans et al., 2016; Freitas, 2016). É preciso resgatar a humanidade, historicamente negada, para enxergar a produção de conhecimento por parte dessas mesmas pessoas sobre as quais recai o peso letal do Estado.

A construção do saber está intimamente ligada às dinâmicas do privilégio em dada sociedade. Antes de ser capaz de produzir conhecimento, é preciso ser. E se o humano não é uma característica imanente do indivíduo (Sodré, 2022), compreender a pessoa negra e outros grupos subalternizados como fonte de saber significa "afirmar a existência como um ato de qualificação epistêmica" (Bernadino-Costa, Maldonado-Torres, Grosfoguel, 2020, p. 13). Trata-se de um novo rompimento da máscara de flandres, artefato repugnante a tapar a boca e a subjetividade da escravizada Anastácia. Esse ato, revolucionário, ultrapassa as barreiras do "medo branco de ouvir", sintoma do seu desejo de repressão e negação do pertencimento (Kilomba, 2019, p. 41-43). Extirpar o véu que oculta a agência do sujeito negro possibilita Boletins como este, majoritariamente escrito por pessoas tradicionalmente silenciadas - ou não escutadas.

O esforço para ignorar as diferenciações torna os juristas replicantes e não seres críticos e pensantes também porque, na regra posta, sua análise é tão mais qualificada quanto mais neutra possa se mostrar. Contudo essa crença de técnica de neutralidade reforça dinâmicas racistas, machistas, capacitistas etc., já que a indiferença a gênero, cor e raça, mais especificamente, não traz igualdade, e sim silencia o impacto da interseccionalidade (cf. Akotirene, 2018) na realidade e, portanto, nos meios em que o Direito é aplicado.

A neutralidade ignora que o Direito é feito por pessoas e não o contrário e promove o descolamento da realidade prática e concreta, sobretudo ao tentar ocultar que toda perspectiva é parcial, que a narrativa do sujeito universal é apenas uma das narrativas e que essa disputa não pode se descolar de aspectos ideológicos e, por vezes, políticos. Temáticas desse tipo são relegadas a impressões subjetivas ou não acadêmicas quando estudadas por pessoas negras.

Entre as muitas razões para prestigiar a diversidade de perspectivas no âmbito jurídico, há uma pragmática: não há possibilidade de reformar o sistema de justiça criminal usando as lentes de sempre. Como afirma Adilson Moreira (2019, p. 136): "os juristas brancos não contribuem da forma mais adequada para a construção de uma hermenêutica jurídica capaz de promover transformação social", porque, mesmo aqueles progressistas "não estão cientes da complexidade da pauta política que defendem". A demanda por novos olhares e, portanto, por novos olhantes, capazes de enxergar outras formas de enfrentar os erros no reconhecimento de pessoas, do ingresso policial em domicílio, das abordagens policiais, do cumprimento imediato da condenação recorrível proferida no tribunal do júri.

Se todo e qualquer ser fala de um lugar (cf. Ribeiro, 2017), admitir como válidas apenas as proposições de certos é um empobrecimento epistemológico que só tem espaço se a pretensão for justamente a de excluir. O sistema de (in)justiça colonial citado por Góes (2022, p. 243) se robustece com o monopólio branco de fontes, conteúdo, parâmetros e limites que o integram.

O deslocamento da percepção do que são as/os agentes produtores de conhecimento é duplo, porque enxergar novos sujeitos (subjetividades) é enxergar novos lugares (territorialidade). Há, com isso, um desbordamento das fronteiras da Academia, mas não só: também dos escritórios, dos gabinetes e de outros espaços ocupados pela branquitude nos quais são formuladas políticas públicas essenciais para a definição da vida e morte da população. Ao refletir sobre a política criminal que queremos, precisamos observar atentamente para quem controla a tessitura dessa política. Como disse Lívia Casseres (Borges, 2019): "Quem diz o que é segurança pública são as Mães de Maio e de Manguinhos. Sem essa garantia, nós não vamos avançar em termos de combate à violência, combate ao crime organizado e combate a corrupção". É reconhecer que a obstacularização da humanidade no campo do pensamento desagua inexoravelmente em ações concretas do poder público contra as mesmas pessoas invisibilizadas.

Da razão para o seu surgimento (o massacre do Carandiru, em 1992) aos dias de hoje, a fidelidade aos fins institucionais do IBCCRIM somente se concretiza com a ampliação das políticas e práticas de diversidade. Como ensina Beatriz Nascimento (2021, p. 219): "a questão racial atravessa todo o edifício da sociedade", então as ciências e as políticas criminais também não podem ser tecidas sob as bases do apagamento e desumanização, elementos que, no limite, autorizaram aquele nefasto episódio, infelizmente revivido em recentes chacinas pelo País.

Como citar (ABNT Brasil):

IBCCRIM. Saberes negros e Ciências Criminais. Boletim IBCCRIM, [S. l.], v. 31, n. 372, p. 2-3, 2023. Disponível em: https://publicacoes.ibccrim.org.br/index.php/boletim_1993/article/view/791. Acesso em: 13 nov. 2023.

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Referências

AKOTIRENE, Carla. O que é interseccionalidade? Belo Horizonte: Letramento, 2018.

BERNADINO-COSTA, Joaze; MALDONADO-TORRES, Nelson; GROSFOGUEL, Ramon (Orgs.). Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico. Belo Horizonte: Autêntica, 2020.

BRASIL. Lei nº 12.519, de 10 de novembro de 2011. Institui o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra. Brasília: Presidência da República, 2011. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12519.htm. Acesso em: 16 out. 2023.

BORGES, Pedro. "Quem diz o que é segurança pública são as Mães de Maio e de Manguinhos", diz defensora pública. Alma Preta, 18 de abril de 2019. Disponível em: https://almapreta.com.br/sessao/cotidiano/quem-diz-o-que-e-seguranca-publica-sao-as-maes-de-maio-e-de-manguinhos-diz-defensora-publica/. Acesso em: 16 out. 2023.

CALAZANS, Márcia Esteves de; PIZA, Evandro; PRANDO, Camila; CAPPI, Riccardo. Criminologia crítica e questão racial. Cadernos do CEAS, Salvador, n. 238, p. 450-463, 2016.

FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do Estado brasileiro. Brasília: Brado Negro, 2017.

FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2023. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2023/07/anuario-2023.pdf. Acesso em: 18 out. 2023.

FREITAS, Felipe da Silva. Novas perguntas para criminologia brasileira: poder, racismo e direito no centro da roda. Cadernos do CEAS, Salvador, n. 238, p. 488-499, 2016.

GÓES, Lucano. Direito Penal Antirracista. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2022.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, 2022. Critério raça/cor. Brasília: IBGE, 2022. Disponível em: https://sidra.ibge.gov.br/tabela/6408#resultado. Acesso em: 18 out. 2023.

KILOMBA, Grada. Memórias da plantação. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.

MOREIRA, Adilson. Pensando como um negro: ensaio de hermenêutica jurídica. São Paulo: Contracorrente, 2019.

NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

NASCIMENTO, Beatriz. Uma história feita por mãos negras: relações raciais, quilombos e movimentos. Rio de Janeiro: Zahar, 2021.

RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento, 2017.

SODRÉ, Muniz. Aula ministrada no curso "Ler o Brasil". Casa Sueli Carneiro, 2022.