domingo, 22 de dezembro de 2024

  1. Home >
  2. Ainda sobre a necessária implementação do juiz de garantias

Ainda sobre a necessária implementação do juiz de garantias

Editorial do mês de setembro/2023.

sexta-feira, 1 de setembro de 2023

Atualizado às 07:34

Resumo: Com o julgamento das ações diretas de inconstitucionalidade (ADIns) 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305, no Supremo Tribunal Federal, o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) reafirma ser favorável à implementação do juiz de garantias no processo penal brasileiro, como medida necessária para melhorar a prestação jurisdicional.1

Palavras-chave: Processo penal; Juiz de garantias; Supremo Tribunal Federal.

O IBCCrim refirma ser favorável à implementação do "juiz de garantias" no Brasil.2 Com o estágio da discussão no julgamento das ADIns 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305 no Supremo Tribunal Federal (STF), insiste na urgência do instituto para o País.

1. Juiz de garantias não é nova instância jurisdicional

A competência admite divisões em sua extensão, o que pode se dar em razão de domicílio do réu, da consumação do crime e outros. No exercício da função jurisdicional, pode ser estabelecida em razão de fases do processo sem alterar a hierarquia de funções. Isso se vê em situações de juízes de instrução e de execução, tanto em processo cível quanto em processo penal. Seccionar a competência a depender da "fase" ou do "estágio" processual não significa criar instância diversa.

E o fato de o juiz da ação penal poder rever decisões do juiz de garantias não fere a fixação de competência por fases do processo. Se há decisões no mesmo grau de jurisdição que podem ser revisitadas pelo mesmo juiz (por exemplo, recebimento de denúncias, medidas cautelares em geral), claro que podem também o ser por outro juiz, de mesma hierarquia. Condicionar o poder de revisão de decisões a graus distintos de jurisdição é um equívoco. Aliás, as duas decisões monocráticas tomadas nas ADIs em questão não colocam os Ministros Luiz Fux e Dias Toffoli em jurisdições diversas.

2. Juiz de garantias trata de matéria processual

Além do sinal da Procuradoria-Geral da República e do Min. Dias Toffoli preconizando o que é sabido, repete-se que tema central à estrutura do processo penal tem característica de norma processual (art. 22, I, CF).

Não fosse assim, a consequência seria a de o processo penal brasileiro repristinar o regime anterior à Constituição de 1934, em que cada Estado da federação teria sua própria estrutura de sistema processual penal. É fácil entender a falta de lógica do raciocínio, de resto suplantado por precedentes do STF, inclusive na ADIn 4.414.

3. Juiz de garantias não é um modelo análogo ao Departamento de Inquéritos Policiais (DIPO)

Tem-se difundido o entendimento desde que o debate surgiu em 2009 com o PLS 156/2009, de que o modelo de inquéritos adotado na capital do estado de São Paulo serviria de inspiração ao "juiz de garantias". Tampouco isso é correto.

Tal constatação decorre não só em razão dos lassos critérios de inamovibilidade dos juízes no microssistema paulista, mas porque em São Paulo os juízes do DIPO não apreciam a legalidade dos oferecimentos de ações penais.

Se o juiz que deve controlar a investigação não apreciar a viabilidade da ação penal, aquele que o sucederá na próxima fase processual receberá o caso sem filtro cognitivo e por isso levará em conta o arcabouço informativo no qual não foi exercido o contraditório. Consequentemente, valorará as informações a partir do que se produziu em fase processual que não se presta a isso. Não é "o juiz" que pode ser bom ou ruim; a estrutura é que não funciona.

E se o Código de Processo Penal brasileiro, ainda que timidamente, alinhou-se à conceituação da prova como o que é produzido em contraditório e admitiu que aquilo é que deve ser valorado na sentença (art. 155, CPP), amesquinhar o controle jurisdicional do "juiz de garantias" é, com jogo de cena, fazer letra morta da previsão legal. Tirar do juiz das garantias o controle da licitude dos elementos de informação e da viabilidade da ação penal é aniquilar a originalidade cognitiva do juiz da causa.

O que se defende - porque acúmulo de informações colhidas antes da fase de contraditório não implica decisão mais justa - é que o juiz da causa penal tome contato com os fatos que irá julgar em situação de pureza, tanto quanto possível. O juiz da causa não pode ter conhecimento prévio do que irá julgar; não pode tocar processo já instruído com elementos de informação; não pode, em favor da imparcialidade objetiva, presidir causa que conheça à partida. Por isso, pela originalidade cognitiva, o juiz das garantias deve ter a competência preservada para apreciar a viabilidade de ações penais. E é por isso que - na esteira do art. 155, do CPP - os elementos de informação que não se constituírem como provas irrepetíveis, antecipadas ou cautelares devem ser excluídos dos autos. A pretensão é de criar a condição para o ineditismo cognitivo ao juiz.

4. Juiz de garantias não é "canto da sereia"

Mesmo que não tenha sido ventilado no julgamento em curso, na jurisdição constitucional, Jon Elster tem célebre trabalho ("Ulisses e as Sereias"), que toca no âmago do sistema de contrapesos entre Poderes Legislativo e Judiciário. A obra estimulou abordagens a respeito de self restraint e outras, típicas de debate qualificado.

Mas a menção à mítica passagem não cabe aqui, porque não se cuida de cegar ante a tentação de desvio catastrófico, como no regresso de Ulisses a Ítaca. O sistema processual penal que privilegia a figura do juiz de garantias foi provado e funciona em países europeus há cerca de 50 anos, valendo citar Itália, Espanha, Portugal.

Em países latino-americanos, que passaram por onda reformista desde a década de 60 do século passado, como documenta Maximo Langer, a sistemática se implementou na Colômbia, no Uruguai, no Chile, no Paraguai, no Peru e outros.

Além disso, precedentes tanto do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem quanto da Corte Interamericana de Direitos Humanos preconizam a estrutura processual.

5. Conclusões

É preciso ver o que está diante dos olhos: ainda não se conseguiu alterar a espinha dorsal do CPP que vigora há quase 100 anos, tomando sua estrutura como sacrossanta. Escolhe-se, até agora, a defesa do Código em detrimento da Constituição de 1988 e das evidências de que o sistema não anda bem. José Carlos Barbosa Moreira usaria expressão lapidar para isso: uma interpretação retrospectiva.

O remanejamento de juízes entre varas, como defendido pelo Min. Dias Toffoli em seu voto na medida liminar nas ADIns, não afronta as receitas brasileiras nem implica novos cargos públicos. O CNJ e ministros do STF, em posicionamentos publicados, mostraram-se favoráveis à medida. Associações de juízes, como a Associação de Juízas e Juízes para a Democracia, além de outras entidades, também. Ainda assim, desfiam-se argumentos pálidos como o de que haveria "impacto financeiro" a obstaculizar a mudança. Ora, com o advento da Lei 13.964, instituíram-se patamares diversos de cumprimento de pena para progressões de regime e se aumentou a duração de execuções penais, sem questionamento dos palpáveis impactos financeiros. Soa estranho que, para prender pessoas por mais tempo, com alto custo financeiro, o empecilho não seja visto, mas para o remanejamento funcional e em prol de justiça melhor, sim.

Juiz de garantias é tão "juiz" quanto qualquer outro. Dizer que a instituição da figura trará lentidão no andamento das causas é criar problema a partir de algo que não existe. A separação de competências se presta a otimizar os procedimentos. O País está perto de uma solução nada surpreendente para um velho e constrangedor problema.

_______

[1] IBCCRIM. Ainda sobre a necessária implementação do juiz de garantias. Boletim, n. 370, 2023. Disponível em: https://ibccrim.org.br/publicacoes/pagina/2. Acesso em: 20 abril.2023.  

[2] O IBCCrim foi admitido como amicus curiae na ADI 6298 (docs. 37/40 e 112 do processo). Posteriormente, apresentou parecer do Professor Titular de Processo Penal da USP, Gustavo Badaró, no qual sustenta a constitucionalidade das normas que implementam o juiz das garantias, pois "os novos artigos 3º-A a 3º-F do CPP são normas processuais, ainda que tenham reflexos na organização judiciária" (docs. 261/266). Confira tais peças em: https://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqobjetoincidente=5840274.