Regulação de plataformas, democracia e justiça criminal
Editorial do mês de julho/2023.
terça-feira, 22 de agosto de 2023
Atualizado às 10:51
É difícil imaginar o mundo sem internet. Desde a década de 1990, ela protagonizou uma verdadeira revolução nas comunicações, pelo aumento da capacidade de disseminação de informações, levando ao rompimento de fronteiras culturais e, até mesmo, a mudanças socioeconômicas.
O aumento da participação ativa da sociedade no ambiente online, contudo, também trouxe seus desafios, como a necessidade de balancear a liberdade de expressão e a moderação de conteúdo; o abuso de poder econômico por plataformas com enorme concentração de mercado; a ausência de transparência algorítmica no modo de funcionamento das plataformas digitais; a disseminação de desinformação (popularmente chamada de "fake news") e de discursos de ódio online; a facilitação de práticas de crimes, ou a sua incitação; e a propagação de conteúdo ilegal, entre outros.
O fato de quase a totalidade da população compartilhar e absorver conteúdos em algumas poucas plataformas, sejam elas redes sociais ou serviços de mensageria instantânea, faz com que poucas empresas concentrem níveis de poder antes inimagináveis. Ao mesmo tempo, a ausência de regulação desses espaços cria riscos comprovados a direitos fundamentais e ao próprio Estado Democrático de Direito, incluindo prejuízo ao debate plural e influência no processo eleitoral.
Com essa preocupação e na linha do crescente movimento internacional pela regulação do ambiente online, em 2020 foi protocolado o Projeto de Lei (PL) 2630/20, inicialmente com foco no combate à desinformação. Hoje, após três anos do protocolo, as discussões em torno do PL foram ampliadas para o enfrentamento aos riscos sistêmicos da internet para a sociedade. Não por acaso, embora tenha sido popularmente apelidado de "PL das Fake News", o Projeto se propõe a ser a "Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet", ainda em constante modificação.
O tema tem sido tratado de forma prioritária pelo novo governo desde a campanha eleitoral. Entretanto a urgência em se debater e aprovar uma regulação democrática das plataformas digitais foi impulsionada pelo fim de um conturbado período eleitoral, pelos atos antidemocráticos de 8 de janeiro e pelos violentos ataques recentes às escolas. Em todos esses casos, os crimes foram orquestrados e divulgados em redes sociais ou serviços de mensageria instantânea.
A busca brasileira por uma saída regulatória não está isolada na esfera internacional, nem carece de apoio social.
São crescentes as iniciativas para a regulação do ambiente online. Recentemente, foi aprovado pela União Europeia o Digital Service Act (DSA), que entrará em vigor em fevereiro de 2024. Trata-se de movimento já acompanhado pela vigência do Network Enforcement Act (NetzDG) na Alemanha, de modificações legislativas na França em prol de regulação para o ambiente online e da New Media and Digital Platforms Mandatory Bargaining Code Act na Austrália. Ainda, pesquisas mostram que a necessidade de criar regras mínimas para o funcionamento de plataformas digitais é apoiado pela maior parte da sociedade. De acordo com pesquisa realizada pelo Instituto Atlas/Intel em parceria com a Avaaz, 78% dos brasileiros são a favor de algum tipo de regulação de plataformas.
Por compreender a relevância e a urgência do tema, o IBCCRIM, por sua diretoria e seus departamentos, notadamente o de Novas Tecnologias e Justiça Criminal e o de Política Legislativa Penal, vem participando das discussões sobre o tema e observando as alterações do texto legislativo, em especial no que se refere aos artigos com potenciais implicações na justiça criminal.
Do ponto de vista político-criminal, o debate regulatório tem como objetivo principal o combate a condutas ilícitas cometidas dentro das plataformas digitais. Nas últimas versões do PL fora elaborado um rol taxativo de condutas sob responsabilidade das plataformas, em sua vasta maioria condutas previstas como tipos penais (crimes contra o Estado Democrático de Direito, contra crianças e adolescentes, relacionados a discriminação racial e de gênero, contra a saúde pública, entre outros). Essa foi a forma encontrada de limitar a responsabilidade das plataformas apenas àquelas condutas mais graves relacionadas com o risco sistêmico das plataformas digitais da internet.
A forma como a responsabilidade das plataformas pelo gerenciamento desse conteúdo será definida ainda é incerta. Contudo, dentre as propostas apresentadas, verifica-se a vontade de instituir um sistema focado em prevenção de potenciais efeitos nocivos da circulação de conteúdo ilícito online e cooperação com órgãos de segurança pública e persecução penal, no âmbito de procedimentos criminais próprios.
Assim, dentre os desafios, a nova lei precisará balancear o objetivo regulatório com a proteção a direitos fundamentais e garantias penais. Especificamente, precisará apontar os meios para evitar que a regulação abra espaço para que as plataformas digitais sejam obrigadas a reter um número ainda maior de informações sobre os indivíduos com a justificativa de eventual combate ao crime, mesmo que o fornecimento de informações esteja sempre vinculado a uma ordem judicial. Ou ainda, que ferramentas de segurança como a criptografia de ponta-a-ponta sejam quebradas. A privacidade e a proteção dos dados dos usuários devem guiar a escolha legislativa.
Também preocupa a tipificação do delito de propagação de fake news, pela intrínseca dificuldade de se apreender a conduta incriminada em um tipo penal fechado, preciso e taxativo, sem incorrer no risco do uso político e parcial da norma penal.
Nesse sentido, devem ser aprofundadas as discussões sobre o novo crime de propagar desinformação, bem como sobre os riscos sistêmicos atrelados à criação de tipos penais relativos à difusão de conteúdo ilegal e ao dever, atribuído aos provedores de internet, de armazenar conteúdos que possam ser utilizados como material probatório para fins de investigação e repressão a crimes.
Diante da relevância social da matéria, o IBCCRIM se posiciona favoravelmente à ideia de uma regulação democrática das plataformas digitais e se coloca à disposição no fortalecimento do debate público, especialmente no que tange às implicações do projeto no sistema de justiça criminal. O Instituto acredita que uma regulação do gênero é um importante passo para o fortalecimento da democracia em nosso País.