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Racial profiling, novas tecnologias e racismo estrutural

Editorial do mês de maio/2023.

segunda-feira, 8 de maio de 2023

Atualizado às 07:35

Um homem parado ao lado de um carro em via pública poderia ser apenas o que estas palavras descrevem, desde que esse homem não fosse um homem negro. Francisco Cícero dos Santos Júnior é a prova disso. Abordado pela polícia durante um patrulhamento de rotina, foi avistado e descrito como "um indivíduo de cor negra que estava em cena típica de tráfico de drogas". Nenhuma outra característica foi empregada para descrever Francisco, porque a epiderme preta é o gatilho que impulsiona e legitima o aparato repressivo estatal. Assim, ele foi conduzido e preso para, em seguida, ser denunciado e condenado por tráfico de drogas. Em linhas gerais, esse é o pano de fundo do julgamento que se iniciou no dia 1º de março deste ano, perante o Supremo Tribunal Federal, por força da impetração do HC 208.240 pela Defensoria Pública de São Paulo.

Recentemente, os tribunais superiores têm avançado sobre discussões que tocam a questão racial, como se deu em relação ao debate sobre os crimes de injúria racial e racismo e sobre o reconhecimento facial e os famigerados "álbuns de suspeitos" (majoritariamente negros). Agora, o Supremo deve decidir sobre o chamado "perfilamento racial", que se caracteriza pela mobilização das agências de repressão do Estado (como sói ocorrer com as revistas policiais) baseada em elementos de raça, cor, descendência, etnicidade ou nacionalidade. A mais alta Corte do país está diante de um caso individual com uma dimensão coletiva e enorme importância no enfrentamento do racismo no sistema de justiça criminal.

Os dados sobre encarceramento no Brasil são divulgados amiúde. No final de 2022, o Sisdepen contabilizou 68% de pretos e pardos nos estabelecimentos prisionais, reiterando a inegável sobrerrepresentação de pessoas negras no cárcere, já que elas são apenas 56% da população geral. Não são apenas números, mas o reflexo da hierarquização artificial e violenta entre pessoas negras e não negras, cabendo àquelas a subalternização, sobretudo decorrente da força dos agentes de Estado. É preciso apor lentes de aumento para permitir identificar que o aprisionamento não se dá aleatoriamente; ele depende, obviamente, de uma série de práticas cotidianas, entre as quais o racial profiling.

O caso levado ao Supremo é bom para julgamento do tema, especialmente porque está escancarada, na declaração dos policiais militares, a condição que os moveu - a cor da pele de Francisco. Num país em que o racismo ainda é negado e omitido dos debates públicos, um contexto fático em que a atuação racista pôde ser flagrada - não tendo sido escamoteada por outras características igualmente racistas, porém menos perceptíveis - é ideal para formar um precedente. 

O que o Estado brasileiro enxerga em um corpo negro parado ao lado de um carro na via pública? E o que enxergaria se fosse um corpo branco parado ao lado do mesmo carro na mesma via? Essas foram questões formuladas pela Defensoria Pública, da tribuna. Se as respostas a essas questões parecem óbvias, o desenrolar do julgamento no Supremo Tribunal Federal, até aqui, indica quão arraigado é o racismo. Até 8 de março, quando o julgamento do Habeas Corpus foi suspenso por pedido de vista, quatro dos 11 membros da corte divergiram do entendimento do relator, ministro Edson Fachin, que concedia a ordem de ofício reconhecendo na motivação discriminatória dos policiais causa de nulidade da abordagem e da prova que nela se originou.

Da escuta dos votos divergentes, dois dados relevantes podem ser extraídos: o primeiro é o reconhecimento de que o racismo estrutural existente é um mal a ser combatido; o segundo é a negação de que, no caso concreto, ele teria se manifestado. A busca pessoal dirigida a Francisco, "indivíduo de cor negra" (não é demais lembrar), teria ocorrido porque outros elementos, como o local do fato, teriam suscitado a suspeita. O posicionamento é sintomático dos tempos atuais, em que o racismo é evidente demais para ser negado, contudo é preciso encontrar argumentos para que as consequências do seu reconhecimento não se imponham, sob pena de fazer ruir as bases do funcionamento do sistema.

O racismo atravessa o funcionamento dos órgãos de segurança pública e, se essa é sua face mais aparente, não devemos descuidar de como as outras instituições do fluxo da justiça criminal convalidam as más práticas que orientam aquelas agências. O fato de pessoas brancas também serem julgadas pelo Supremo Tribunal Federal - como sublinhou a Procuradoria Geral da República em sua manifestação - em nada altera essa realidade, sendo urgente uma mudança de paradigma sobre a questão racial a partir da própria Suprema Corte.

Conforme o IBCCRIM destacou no editorial da edição nº 360 deste Boletim, é questão central na luta antirracista o combate à violência institucional contra a população negra, manifestada em abordagens policiais discriminatórias, nas grandes operações policiais em favelas, no reconhecimento direcionado de pessoas e na política de guerra às drogas, que têm como consequências nefastas o encarceramento massivo e o genocídio de pessoas negras.

O combate a essa violência institucional se torna ainda mais relevante e urgente quando se tem em vista a adoção de novas tecnologias no campo da segurança pública. Ao contrário do que se possa imaginar, tecnologias não são neutras, mas produzidas a partir dos mesmos padrões e dinâmicas presentes no tecido social. Os ares de infalibilidade das inovações que nos aproximam do futuro e prometem dar conta de problemas crônicos não devem nos cegar à reprodução dos vieses racistas embutidos na programação desses aparatos.

Algoritmos de reconhecimento facial, por exemplo, são, em grande parte, treinados a reconhecer faces humanas a partir de bancos de dados muitíssimo extensos de rostos de pessoas majoritariamente brancas, o que inevitavelmente faz com que identifiquem a transgressão da lei em rostos negros. Essas tecnologias encontram-se em estágio avançado de implementação por todo o Brasil, sem que tenham sido submetidas a um debate público amplo e transparente, tampouco se façam acompanhar da devida prestação de contas sobre seus usos, objetivos, erros e acertos. Mais uma ferramenta com enorme potencial para aprofundar práticas institucionais violentas e discriminatórias contra a população negra.

Nesse cenário em que a modernidade e as práticas tradicionais se encontram, é extremamente necessário que o Supremo Tribunal Federal reconheça e combata o racismo sob as suas mais diversas manifestações, de modo a fazer valer os mandamentos da Constituição de 1988.

O HC 208.240, como advertiu o ministro Edson Fachin, é o típico caso de policiamento por estereótipo, que se opera pela fusão do perfil racial do criminoso à simples descrição de um local suspeito para justificar uma abordagem sem justa causa - "a diferença pode ser sutil, mas essa sutileza transforma ou mantém o mundo". Espera-se que, ao concluir o julgamento, o Supremo Tribunal Federal possa reconhecer a sutil diferença, resguardando a dignidade de Franciscos, Josés, Joões e Marias pelo Brasil afora.