O desastre humanitário do povo Yanomami e o Direito Penal Internacional
Editorial do mês de abril/2023.
sábado, 1 de abril de 2023
Atualizado em 3 de abril de 2023 08:08
"No Brasil, todos têm sangue de índio.
Uns nas mãos, outros nas veias, outros na alma."
Por muito tempo as narrativas oficiais povoaram o imaginário popular de crenças em torno de uma "descoberta" do Brasil, produto de feito heroico dos navegadores nos idos de 1500. O fato é que muito antes de Santa Maria, Pinta e Niña, Pindorama já era habitada pelos povos originários, posteriormente denominados de índios diante da convicção de que os verdes mares bravios aqui encontrados banhavam, na verdade, as Índias.
Segundo a Funai, ao tempo da ocupação, a população indígena equivalia a três milhões de habitantes, em grande parte concentrados no litoral. A implementação de uma lógica colonizadora, fundada na dinâmica da exploração econômica e nos processos de aculturação, levou ao aniquilamento contínuo daquela população. Em 1957, os registros oficiais apontavam para a impressionante cifra de apenas 70 mil indígenas; um pouco mais de 2% da população original.
O que se assistiu em território brasileiro ao tempo da colonização foi uma reprodução da lógica exploratória e genocidária que pautou a ocupação europeia da América Latina. Em nome de uma suposta missão civilizatória, os povos originários foram aniquilados em seus direitos mais elementares: terra, liberdade, integridade e vida. Vistos como selvagens, os índios foram usurpados da dignidade e, até mesmo, da própria humanidade. A historiografia, de fato, não rende páginas de orgulho a quem se debruce no estudo do nosso passado. Massacres, extermínios, genocídio e etnocídio representam roteiro de tristes palavras.
A Constituição Federal, é certo, operou uma guinada substancial no tratamento dispensado à população indígena. Da lógica integratória à sociedade branca, abraçada pelo Estatuto do Índio de 1973, a nossa carta marear afirmou o direito originário dos índios à terra. Assim, ao alinhar o rumo do Estado brasileiro ao resgate de dívidas históricas, o legislador constituinte fixou premissas de tratamento em favor dos povos originários. Na pintura expressiva de direitos correspondem deveres cujos destinatários são os governantes. A delimitação de políticas públicas exige espaço de resguardo de população que, por natureza, se mostra vulnerável.
Ao nos aproximarmos de mais uma data celebratória dos povos indígenas somos assombrados pelas permanências do passado. A grave situação humanitária que acomete o povo Yanomami, amplamente noticiada pelos meios de comunicação, escancara a situação de abandono a que aquele povo foi submetido frente à ação predatória da garimpagem ilegal. Invasões e assassinatos, envenenamento das águas e do solo e propagação de doenças constituem mais um triste capítulo na história de sobrevivência e de resistência dos povos originários.
Os fatos noticiados, que exigem ampla e comprometida investigação, não constituem ação isolada e tampouco desconectada de um projeto de menosprezo aos direitos conquistados pelos povos indígenas. Um projeto que se desenhou como discurso eleitoral e que ganhou as formas de ações e omissões no desenho de políticas públicas.
Se confirmadas, as informações até o momento colhidas abrem a perspectiva de configuração de crimes internacionais; uma categoria de ilícitos que, por suas características, dimensão e gravidade afetam a consciência mundial. Integram o epicentro dogmático do Direito Penal Internacional, um ramo do direito que se ocupa da responsabilização internacional dos principais agentes integrantes das estruturas de poder. Chefes de estado, governantes e oficiais superiores são, por suas ações e omissões, responsabilizados pelos graves crimes cometidos, ainda que distanciados das execuções materiais das condutas. Trata-se de uma revolução da cultura punitiva que emerge do pós-guerra e que busca superar o legado histórico de impunidade dos massacres e dos genocídios.
Diante dos fatos que vêm ocupando as manchetes, emergem duas leituras possíveis.
A primeira nos remete à configuração de genocídio. A expressão, cunhada por Raphael Lemkin, abarca as ações violentas movidas pelo desejo de se exterminar, integral ou parcialmente, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso. Compreendem, portanto, os assassinatos, os danos à integridade física ou mental, a submissão de membros do grupo a condições de existência que lhe causem a destruição parcial ou total, a adoção de medidas destinadas a impedir o nascimento de membros do grupo e, por fim, a transferência forçada de menores de um grupo para o outro. Todas as ações, reitere-se, estão informadas por um direcionamento do agir: a vontade de exterminar um grupo especialmente protegido. O arcabouço jurídico-penal, como se sabe, é dado pela Lei 2.889/1956, que reproduz os termos da Convenção sobre a Prevenção e a Supressão do Crime de Genocídio, hoje considerada como norma de jus cogens.
A segunda leitura ampara-se na possibilidade de subsunção dos fatos aos crimes contra a humanidade. A categoria, que ainda não foi tipificada pela legislação brasileira, é albergada pelo Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional (art. 7º), internalizado pelo Decreto 4.388/2002. Compreende uma série de medidas realizadas no contexto de um ataque sistemático ou generalizado contra qualquer população civil. São, enfim, ações ou omissões, expressivas de uma política desenhada para a violação e destruição dos direitos humanos. Entre as condutas punidas, figura o extermínio, definido como a imposição intencional de condições de vida, como a privação de acesso a alimentos ou à saúde, destinadas a causar a destruição de parte de uma população.
A tragédia que acomete o povo Yanomami parece inserir-se no cenário maior de submissão da população indígena a condições que possam levar ao seu extermínio. Não foram outras as razões que levaram a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em julho de 2020, a conceder medida cautelar em favor dos povos Yanomami e Ye'kwana, diante dos riscos a que estavam expostos em face da invasão dos garimpeiros e da propagação de doenças. Não foram outras as razões, igualmente, que levaram o STF, por decisão da lavra do Ministro Barroso, na ADPF 709, a ordenar que o governo federal retirasse imediatamente os invasores das terras indígenas, dentre as quais aquelas ocupadas pelos Yanomami.
Os crimes internacionais, é certo, abrem espaço para o exercício do poder punitivo internacional que, como se sabe, opera-se em perspectiva complementar. No caso do sistema do Tribunal Penal Internacional, a cuja jurisdição o Brasil se submete, a atuação daquela Corte condiciona-se à demonstração da incapacidade, ou da falta de vontade dos órgãos nacionais, de promoverem e conduzirem persecuções verdadeiramente comprometidas com a identificação e punição dos responsáveis.
Independentemente das provocações feitas aos organismos internacionais, não se vislumbra cenário político obstativo para a apuração criteriosa por parte das instituições nacionais, solidamente estruturadas, para a condução de investigações isentas. Em realidade, a investigação e eventual punição daqueles que se revelarem responsáveis demonstrará o realinhamento do Estado brasileiro para com os valores que edificam a matriz civilizatória da humanidade. Um aceno de esperança, enfim, em favor daqueles para os quais a sociedade atual é devedora permanente.