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Centralidade e efetividade do (antir)racismo

Editoral do mês de novembro/2022.

segunda-feira, 14 de novembro de 2022

Atualizado às 10:10

Não há como discutir o sistema de justiça penal sem enfrentar a questão racial. O racismo permeia todo o funcionamento do sistema de justiça criminal, sendo elemento estruturante que viabiliza, sustenta e normaliza suas práticas violentas, arbitrárias e incompatíveis com as finalidades formais do Direito Penal. Não cabem ingenuidades. O Brasil é um país de passado e presente colonial escravista. Se não houver hoje um efetivo enfrentamento das causas e dos mecanismos de reprodução do racismo, será um país de futuro colonial escravista.

A luta antirracista não é mera escolha política. É uma consequência necessária do Estado Democrático de Direito. Entre os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, a Constituição de 1988 lista "construir uma sociedade livre, justa e solidária", "erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais" e "promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação". Toda vez que o Estado brasileiro não enfrenta o racismo, ele se contradiz, perde legitimidade, perpetua um estado de coisas inconstitucional.

Na luta antirracista relativa ao sistema criminal, dois aspectos se sobressaem. Em primeiro lugar, há grande quantidade de dados e estudos indicando a opressão e a seletividade do sistema de justiça penal contra a população negra. A afirmação de que o sistema é racista não se baseia numa hipótese. É um fato, comprovado sob as mais variadas perspectivas, análises e recortes. No entanto, continua existindo na sociedade um marcado negacionismo a respeito da questão racial, com o objetivo de minimizar suas consequências, desqualificar a luta antirracista e rejeitar a responsabilidade da branquitude na opressão da população negra.

Eis o paradoxo causado pelo negacionismo da questão racial. Faz falta tornar visível aquilo que talvez seja a característica dominante e mais visível da sociedade brasileira: o racismo presente em toda e qualquer relação para a qual se direcione o olhar. Diante do eficaz e onipresente mecanismo de normalização do racismo, é necessário desvelar o evidente. Há uma urgente tarefa de comunicação, que inclui também a desconstrução da sensibilidade colonial escravista e o reenquadramento afetivo da questão racial.

O segundo aspecto refere-se à efetividade da luta antirracista no sistema de justiça penal. É preciso ir além da denúncia dos números da seletividade desde a abordagem policial até o sistema carcerário. Urge qualificar o debate, começando por corrigir sua perspectiva e suas cegueiras: (i) explicitar as contribuições diretas e indiretas dos movimentos negros para a produção acadêmico-criminológica sobre a violência estatal; (ii) evidenciar o papel da branquitude na perpetuação do controle penal seletivo e na própria discussão acadêmico-criminológica; e (iii) empregar, na produção acadêmica, os termos raça e racismo de forma direta, não apenas implícita ou genérica, para expor e qualificar a seletividade racial do sistema.

Além disso, a efetividade da luta antirracista exige avançar em questões concretas. A esse respeito fazemos referência ao trabalho da "Comissão de juristas destinada a avaliar e propor estratégias normativas com vistas ao aperfeiçoamento da legislação de combate ao racismo estrutural e institucional no país", instaurada pela Presidência da Câmara dos Deputados e que contou, entre outras muitas entidades e movimentos, com a participação do IBCCRIM. Concluído em novembro de 2021, o relatório final da comissão é uma excelente síntese de propostas para a luta antirracista.

No âmbito da segurança pública e do sistema de justiça criminal, destaca-se a necessidade de combate à violência institucional contra a população negra, que se manifesta especialmente nas "operações policiais" das favelas e periferias, na discriminação racial nas abordagens policiais e na condução racista do instituto do reconhecimento de pessoas no processo penal. Também é preciso enfrentar o genocídio da juventude negra, o encarceramento em massa da população negra e um dos principais eixos de reprodução de violência no país, a "guerra às drogas". São desafios gigantescos e, por isso mesmo, seu enfrentamento não pode ser adiado.

Recentemente, houve avanços importantes na jurisprudência a respeito do reconhecimento fotográfico e dos critérios para a abordagem policial na rua. Mas é preciso ir além; por exemplo, fortalecer os parâmetros legais para o uso da força, incluir na formação policial o combate ao racismo institucional, assegurar câmeras corporais nas forças de segurança de todos os Estados, criar cotas raciais para o ingresso nas carreiras policiais.

O racismo é elemento estruturante da sociedade e do Estado brasileiro, especialmente do seu sistema de justiça penal. É preciso identificá-lo e combatê-lo. Ontem, hoje e sempre.