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Uma justa homenagem a René Ariel Dotti

Editorial do mês de abril/2021

quinta-feira, 1 de abril de 2021

Atualizado em 21 de outubro de 2022 16:06

O presente Boletim homenageia René Ariel Dotti (1934-2021). Filho de um pintor de paredes e de uma costureira, após uma infância humilde tornou-se um dos maiores penalistas brasileiros. Multifacetado, iniciou sua vida adulta como ator e diretor teatral, ainda na década de 1950. Trabalhou, na mesma época, como redator e colunista no Jornal Diário do Paraná. Formou-se em Direito, em 1958, pela Universidade Federal do Paraná e, já em 1962, iniciou a docência em Direito Penal na mesma instituição, cargo que ocupou com galhardia até sua aposentadoria compulsória, em 2004. Aliás, em seu imenso currículo, o único título que realmente lhe importava era ser professor. Enquanto jurista, integrou diversas comissões instituídas pelo Congresso Nacional para o aprimoramento das leis. É coautor do anteprojeto de reforma da Parte Geral do Código Penal (lei 7.209, de 11/7/84) e do anteprojeto da Lei de Execução Penal (lei 7.210, de 11/7/84) e participou da comissão, instituída pelo Ministério da Justiça, que redigiu o projeto da lei 9.613/98 (lavagem de dinheiro).  

Com o início da ditadura militar, em 1964, tornou-se advogado de dezenas de perseguidos políticos. Foi naquela época que germinou a nota característica de sua vida profissional: a liberdade de não ter medo. Em um de seus discursos, asseverou: "Foi naqueles anos 60 e 70, ao tempo da opressão militar, que aprendi: a maior das liberdades não é a liberdade de pensamento, de consciência, de expressão e tantas outras. A maior liberdade que um ser humano pode usufruir é a liberdade de não ter medo. Sem ela não se pode exercer nenhuma outra. O medo sequestra a alma e impede o exercício pleno de qualquer atividade humana."

Por sua atuação nos anos de ferro, foi fichado no DOPS e no SNI (o que, aliás, lhe trazia muito orgulho). Em 1972, os prontuários a seu respeito falam de seu caráter inidôneo em razão da defesa de elementos subversivos. Em 1976, as anotações já eram distintas: afirma-se que seu comportamento não era "consequência de suas convicções político-ideológicas e sim, do entendimento que tem, de suas responsabilidades no exercício de sua profissão (...). É considerado professor brilhante, honesto, capaz e conhecedor das novas técnicas de ensino (...). É dedicado à sua profissão, possui honestidade de propósitos e um invulgar dinamismo nas causas que assume". Quanto à moral, o inidôneo cede lugar ao "correto, responsável e honesto". Até os órgãos militares de repressão se curvaram à ética e ao talento de René Dotti.

Dotti era um apaixonado pela advocacia. Em 1992, redigiu juntamente com Miguel Reale Júnior, José Carlos Dias, Márcio Thomaz Bastos, Fábio Konder Comparato, Flávio Bierrenbach, José Gregori e Dalmo Dallari o pedido de impeachment contra o então Presidente Fernando Collor, apresentado pela OAB e pela Associação Brasileira de Imprensa. Contudo, não media o seu sucesso profissional pela relevância midiática ou repercussão do processo. Para ele, um caso bom era um caso justo, aquele que o permitia dormir tranquilo no travesseiro, como sempre afirmava. Nunca deixava de atender quem buscava seu auxílio, independentemente da condição social ou financeira.

Dentre as condecorações que recebeu, destacam-se a Medalha Vieira Neto, concedida pela OAB/PR; a Medalha do Mérito Legislativo, da Câmara dos Deputados, a Comenda do Mérito Judiciário, do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, e a Medalha Santo Ivo, concedida pelo Instituto dos Advogados Brasileiros. Foi Conselheiro Federal da OAB, Vice-Presidente Honorário da Associação Internacional de Direito Penal (AIDP) e Membro da Academia Paranaense de Letras.

Em sua trajetória profissional, teve tempo ainda de ser Juiz do Tribunal Regional Eleitoral do Paraná, além de Secretário de Estado e de Cultura (1987-1991). A cultura e as artes, aliás, tinham especial destaque em sua vida. Não à toa que, em sua vasta biblioteca, dentre as milhares de obras literárias, existe um palco à disposição dos artistas. Era rodeado por livros, escutando óperas e música clássica, que René Dotti sentia-se confortável.

Publicou dezenas de obras jurídicas, tais como "A proteção da vida privada e a liberdade de informação"; "Casos Criminais Célebres"; "Bases e Alternativas para o Sistema de Penas"; e "Curso de Direito Penal", atualmente na 7ª edição. Nos últimos anos, trabalhou ativamente na atualização da obra de Nelson Hungria.

René Dotti foi, também, um entusiasta do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), desde seu surgimento, em 1992. Escreveu dezenas de artigos para os boletins mensais, tais como "O direito adquirido à progressão do regime" (ed. 123, fev./03), "A reforma do sistema de penas" (ed. 140, jul./04), "O conceito de 'obstáculo' no furto qualificado" (ed. 155, out./05), "Um bando de denúncias por quadrilha" (ed. 174, mai./07), "Livre informação jornalística e censura judicial" (ed. 214, set. 2010), "O projeto do Novo Código de Processo Penal e as garantias essenciais do habeas corpus" (ed. 221, abr./11), "Algumas notas sobre o crime continuado" (ed. 246, mai./2013), "Prescrição e impunidade: responsabilidade pública" (ed. 277, dez./15), "Nova redação e limites da pronúncia" (ed. 285, ago./16), dentre outros.

Esteve, ainda, em diversos seminários internacionais promovidos pelo IBCCRIM, destacando-se sua participação, juntamente com Miguel Reale Júnior, no painel "Projeto de Reforma do Código Penal Brasileiro", ocorrido no 18º Seminário Internacional. Dotti sempre destacou o Instituto como a sede adequada para um debate democrático de ideias e de aprofundamento das ciências penais.

Humilde e sensível, René Dotti sempre destacou que os pontos cardeais de sua vida foram os sentimentos de entusiasmo, paixão e esperança. Disse ele: "O entusiasmo deve ser o alimento diário para a alma. Uma força estimulante para superar os problemas e os obstáculos do cotidiano. A paixão é o segundo estágio desse processo. Uma paixão lúcida, que fermenta as revoluções do espírito, uma paixão sem a qual a vida não vale a pena ser vivida. E, finalmente, a esperança. Esperança de que eu possa mudar alguma coisa para melhor em minha vida e na vida dos outros; que hoje é melhor que ontem e amanhã será melhor que hoje. Uma esperança que, como diz o Padre Antonio Vieira, 'é a mais doce companheira da alma'".

Ao prestarmos a justa homenagem a René Dotti, renovamos os sentimentos de entusiasmo, paixão e esperança que trilharam o seu caminho, os quais igualmente compõem a essência do IBCCRIM.