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A manipulação do Direito e o papel das Ciências Criminais

Editorial do mês de maio/2021.

sábado, 1 de maio de 2021

Atualizado em 17 de outubro de 2022 16:28

Os tempos atuais já foram qualificados como a época da pós-verdade. De fato, há uma presença massiva de desinformação: mensagens deliberadamente falsas, produzidas e difundidas com o intuito de confundir, distorcer e prejudicar. É forçoso reconhecer, no entanto, que essa manipulação não está mais restrita exclusivamente ao campo da notícia e da informação. São muitas as áreas em que se verificam manobras de ruptura entre a realidade e o discurso, em que se constata um indiferente descompromisso com a verdade.

De forma crescente, o Direito vem sendo objeto dessa manipulação. Há uma constante e reiterada tentativa de deturpar conceitos e construções teóricas na aplicação do Direito, não apenas nos tribunais, mas também no discurso político - o que produz efeitos ainda mais amplos sobre toda a sociedade.

O atual cenário político brasileiro não deixa margens à dúvida. Há uma intensa campanha de manipulação da Constituição e das leis nacionais. Os exemplos são constantes, diários. Por exemplo, referências deliberadamente equivocadas, com propósitos sabidos, a estado de sítio, ou até mesmo às liberdades individuais.

O discurso político utiliza-se do Direito não para reafirmá-lo ou protegê-lo, mas para distorcê-lo, para dizer o que ele não diz, para instituir o que ele não institui, para punir o que ele não pune, parar gerar insegurança e temor. É a perversão do Direito que, em vez de ampliar liberdades e resguardar o cidadão do arbítrio, é usado para ameaçar, restringir, calar.

São muitas as palavras distorcidas, mas não são apenas palavras. O discurso faz-se prática. Faz-se ação. Faz-se violência aos olhos de todos. Não é novidade para ninguém: o aparato estatal tem sido usado de forma recorrente para perseguir adversários políticos, para calar vozes contrárias, para tolher ideias dissonantes.

Nos últimos meses, foram instaurados muitos inquéritos absolutamente ilegais com base na Lei de Segurança Nacional, com o único intuito de perseguir, ameaçar e amordaçar. Usa-se o Direito, abusa-se do Direito para fins absolutamente contrários ao Direito.

Tal como ocorre na desinformação - por exemplo, na difusão de fake news -, há na manipulação do Direito um clima de deboche. Não é a sátira, o humor ou a crítica, por mais ácida que ela possa ser. Faz-se referência aqui ao descaramento da violência, da desumanidade, do desrespeito. Tudo é nivelado por baixo, em desrespeito ao outro, em desprezo pela diferença.

Tem-se a disseminação do "e daí?". Sob esse olhar escrachado, nada tem valor, nada é respeitado, nada merece cuidado. A manipulação do Direito é também, assim, disseminação da insensibilidade, do desprezo, da cegueira ao outro. A história tem muitos exemplos dos perversos e duradouros efeitos de tal indiferença.

Frente a toda essa campanha manipuladora e intimidatória, é preciso advertir com clareza: isso está completamente fora da normalidade de um Estado Democrático de Direito e é, portanto, inaceitável.

Junto a esse diagnóstico, brota a natural conclusão: é preciso reagir, é preciso denunciar, é preciso desmascarar todas essas manipulações. Não pode haver passividade onde há tamanha atividade opressora.

Certamente, há muitos modos de não ser cúmplice e de reagir contra a violência e manipulação. Responsável e solidária, a cidadania tem infinitos modos de se expressar, de se fazer ouvir, de atuar. Aqui, destaca-se o imprescindível papel das ciências criminais nessa empreitada civilizatória.

O melhor antídoto contra a manipulação dos conceitos jurídicos é o estudo, a pesquisa, o debate, o diálogo em torno do Direito. É preciso resgatar o profundo papel social das ciências, que nada tem a ver com o olhar ingênuo de quem vê a ciência como um oráculo da verdade, do bem ou da virtude.

Mais do que respostas, as ciências fazem perguntas, trazem questionamentos, promovem revisões. E é justamente esse labor, feito de luzes e sombras, que promove a circulação de ideias, novos olhares, diferentes paradigmas - e escancara as manobras da manipulação, da violência, do poder que se faz autoritário.

As atuais circunstâncias exigem refletir, estudar, pensar, dialogar. Não basta reagir dentro de uma lógica mecanicista de ação e reação. É preciso advertir os sintomas, as manobras e as nuances da manipulação. É urgente, portanto, promover um profundo trabalho de reflexão, capaz de desvelar as mentiras, os sofismas, as distorções.

É uma tarefa árdua; pode-se dizer que não tem fim. Sempre será necessária a contribuição das ciências criminais para a defesa das liberdades e da democracia. Mas isso não significa que esse empenho seja inútil. O caminhar na senda da ciência - desse espírito científico que refuta respostas fáceis e procura um olhar mais amplo e mais plural - é proteção eficaz contra os terrenos áridos e as águas turvas que intolerantes e autoritários querem impor.

Enquanto instituto de ciências criminais, o IBCCRIM tem um importante papel a desempenhar nesse momento do País. Não é apenas que o instituto não deseja estar alheio à realidade nacional. É impossível fazer verdadeira ciência criminal de costas para a realidade.