A complexidade em torno da simplificação do processo
Editorial do mês de julho/2021.
quinta-feira, 1 de julho de 2021
Atualizado em 17 de outubro de 2022 16:02
A ideia de inserção de fórmulas negociais no processo penal sempre gerou controvérsia. A cada nova proposta de lei buscando a abreviação do processo ou a obtenção de provas por meios consensuais, renovam-se as críticas relativas à suposta sobreposição de critérios de efetividade em relação aos critérios de justiça.
As últimas décadas foram pródigas em trazer categorias negociais ao processo penal brasileiro. Desde a entrada em vigor da lei 9.099/95, a legislação pátria viu-se constantemente modificada para abranger institutos como a transação penal, suspensão condicional do processo, colaborações premiadas e acordos de não-persecução penal.
Diante da dificuldade do Estado de investigar, processar e julgar os milhares de casos que deságuam diariamente nas varas criminais, os institutos de consenso foram vistos como uma solução acessível. Como uma válvula de escape para a rápida resolução de muitos feitos. Não se observa nada a indicar que essa tendência irá mudar.
No entanto, a questão permanece válida. É possível falar em uma justiça penal verdadeiramente negocial em nosso país? Apesar da introdução de instrumentos que dependem de um "acordo" entre as partes, são raríssimas ainda as ocasiões nas quais há uma negociação efetiva. O que se vê, na imensa maioria dos casos, é a assinatura de documentos semiprontos, que mais parecem contratos de adesão.
O modelo consensual de justiça penal nasceu no sistema norte-americano, no qual as partes detêm uma autonomia de fato para gerir as provas e determinar os rumos do processo. Lá, portanto, os institutos consensuais estão alinhados com a base principiológica-processual existente naquele sistema. Eles funcionam dentro de uma dinâmica específica - e, não é demais lembrar, com uma série de críticas.
A pretensão de que essas categorias negociais produzam aqui, num sistema processual bastante diferente, os mesmos efeitos de lá exige muito mais do que a simples inserção de dispositivos legais no nosso ordenamento jurídico. Sempre envolve adaptação tanto do instituto consensual como do próprio sistema. Caso contrário, haverá conceitos e institutos que não se comunicam entre si - o que é prejudicial para a efetividade e para a justiça.
Nessa nova dinâmica consensual, também os atores do processo devem se adaptar. Ao juiz cabe compreender, por exemplo, sua nova posição, mais simbólica e menos protagonista, dentro da instrução. É essencialmente uma função de garantidor da lei. Isso significa que o magistrado deverá deixar às partes a liberdade de escolherem o rumo do processo. De outra forma, não será uma justiça negocial.
Por sua vez, os representantes do Ministério Público devem ser conscientes de que o modelo de justiça negocial acarreta ainda mais responsabilidade para o dominus litis. Por exemplo, eventuais erros de estratégia processual produzirão mais consequências.
Além disso, a própria existência de institutos consensuais deve levar a um maior cuidado na apresentação dos feitos, em plena aderência à prova colhida. Ao contrário do que às vezes se pensa, categorias consensuais exigem maior qualidade do trabalho acusatório. É falso - e absolutamente injusto - o argumento de que, como caberá ao acusado aceitar ou não as condições, poderia haver um menor cuidado nessa fase inicial.
Por óbvio, não é possível fechar os olhos ao fato de que nossa realidade social concreta impõe ainda maiores cautelas para a justiça negocial. Não basta dizer que o réu tem liberdade para aceitar ou não. A imensa maioria da população não tem acesso a uma orientação jurídica efetiva sobre os acordos. Além de que, muitas vezes, inexistem condições mínimas que assegurem um exercício autônomo dessa faculdade.
A advocacia também tem de aprender a lidar com a sistemática negocial. Acostumados a um processo de embate, contencioso, advogados precisarão desenvolver habilidades novas, capazes de prover uma defesa eficiente aos seus clientes. A postura de mera crítica aos institutos negociais, sem a devida compreensão, pode gerar perigoso déficit na representação dos imputados.
Há muito a aprender, estudar e aprimorar. É preciso olhar para cada instituto de forma madura. Tome-se, por exemplo, a colaboração premiada. Introduzido em nosso sistema para casos específicos, o instituto foi fortemente banalizado nos crimes econômicos. De alguma forma, observam-se efeitos inversos aos objetivos da lei. Em vez de multiplicar os casos elucidados por meio de poucos acordos, houve uma multiplicação de acordos de colaboração (e diminuição de pena). Nos casos em que a delação poderia ser mais útil para promover justiça, a colaboração raramente aparece.
Recentemente implantado em nosso ordenamento, o acordo de não persecução penal é também exemplo de nossa dificuldade em lidar com categorias consensuais. Por exemplo, a confissão do imputado como condição para assinatura do acordo. Além de sua questionável constitucionalidade, essa exigência não tem o menor sentido em uma justiça verdadeiramente negocial.
A justiça negocial exige reflexão. Não é mero preciosismo técnico. A vida de muitas pessoas é afetada pela utilização dos instrumentos de justiça negocial. Não cabe tratamento simplista - com fórmulas prontas ou negacionista - fingindo não ver a existência desses instrumentos. É mais que hora do aprofundamento teórico, da crítica madura, do diálogo aberto sobre a justiça negocial criminal. Eis a razão para o presente dossiê.