As contribuições da Justiça Restaurativa
Editorial do mês de agosto/2021.
domingo, 1 de agosto de 2021
Atualizado em 17 de outubro de 2022 15:51
Embora algumas de suas práticas sejam milenares, o conceito de Justiça Restaurativa surgiu na década de 1970 no Canadá, ensina Howard Zehr. Numa pequena comunidade, dois jovens foram acusados de atos de vandalismo. Como eram conhecidos de todos, em vez de simplesmente puni-los, o juiz optou por facilitar o encontro deles com as 22 vítimas.
O resultado foi muito positivo. As vítimas expuseram suas dores e ressentimentos. Os jovens manifestaram arrependimento e assumiram suas responsabilidades. Houve não apenas a reparação dos danos, mas a reconciliação entre os envolvidos.
A partir dessa experiência e de um paulatino desenvolvimento do tema, surgiram iniciativas internacionais de Justiça Restaurativa, como o Programa de Reconciliação Vítima-Ofensor (VORP, em inglês) e a prática restaurativa Vítima-Ofensor-Comunidade (VOC). A ONU tem várias recomendações sobre a implantação da Justiça Restaurativa nos Estados-Membros.
Atento à tendência internacional, o Brasil aprovou leis voltadas à autocomposição e à solução alternativa dos conflitos. Na área cível, destacam-se a Lei dos Juizados Especiais (lei 9.099/95), a Lei da Mediação (lei 13.140/15) e o novo CPC, exigindo a audiência de conciliação ou de mediação (art. 334) e a criação dos Núcleos Permanentes de Solução de Conflitos (NUPEMEC) e Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (CEJUSC). Na área criminal, os destaques são os institutos despenalizadores previstos na lei 9.099/95 e o novo Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), disciplinado no art. 28-A do CPP.
Hoje, a Justiça Restaurativa é incentivada e difundida pelo CNJ. A Res. 225/16 criou a Política Nacional de Justiça Restaurativa. A Res. 288/19 definiu como política institucional do Poder Judiciário a aplicação de "alternativas penais, com enfoque restaurativo, em substituição à privação de liberdade". A Res. 300/19 instituiu o Comitê Gestor da Justiça Restaurativa, determinando que os Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais Federais tenham um plano de implantação, difusão e expansão de suas regras quanto ao tema. Segundo o mapeamento do CNJ de 2019, a Justiça Restaurativa é cada vez mais aplicada; especialmente nas varas criminais e nas varas especializadas da infância e juventude e da violência doméstica.
As experiências nacionais e internacionais mostram que a aplicação de técnicas específicas de restauração do quadro social com os envolvidos pode ser mais efetiva na resolução do conflito. O sistema tradicional é omisso em alguns aspectos, perpetuando a insatisfação social e a sensação de impunidade.
No entanto, ainda há muitos obstáculos para a aplicação da Justiça Restaurativa. Enraizado na cultura e no sistema penal, o paradigma punitivo resiste à perspectiva crítica, própria da Justiça Restaurativa. A crença na punição é ainda muito difundida.
A perspectiva da Justiça Penal vigente desconsidera - ou ao menos não prioriza - a visão daqueles que vivenciaram o conflito. A Justiça Restaurativa pretende garantir o envolvimento das partes e de todos os que, de alguma forma, foram envolvidos no conflito (famílias, comunidade), com objetivo de proporcionar uma melhor resposta estatal.
Sem recorrer ao tradicional "sistema binário" - que divide atos e pessoas entre bons e maus, culpados e inocentes -, a abordagem integral do conflito permite tratar a realidade com a complexidade que lhe é inerente. Todas as partes envolvidas - ofensor, vítima e comunidade -são convidadas a participar do processo de reconhecimento de responsabilidades e atendimento de necessidades, para que todas, ao final do processo, estejam vinculadas à resposta que o Estado consolida a partir desse procedimento participativo.
Possibilita-se, assim, um outro olhar sobre a pena, com propostas que vão além da simples punição, realocando a própria ideia de responsabilização. Como infelizmente se constata na prática, a pena de prisão não ressocializa tampouco previne crimes, sendo muitas vezes mero instrumento de vingança e estigmatização da pessoa. Dessa forma, a Justiça Restaurativa é também caminho para reduzir os índices de violência e de encarceramento.
O Projeto de Reforma do CPP traz um capítulo destinado à Justiça Restaurativa. No entanto, sua efetividade não é apenas uma questão de lege ferenda. Por exemplo, o art. 334 do CPC determina a realização de audiência de conciliação ou de mediação. No entanto, são ainda muito comuns decisões judiciais dispensando a realização da audiência, sob as mais variadas justificativas; em especial, a falta de estrutura do Poder Judiciário.
Por si só, a lei não muda crenças e mentalidades. É preciso estudar, dialogar, debater e fomentar a mudança de paradigmas da Justiça Penal no Brasil. Como propõe Howard Zehr, é necessário praticar um "novo olhar" para aproveitar todas as potencialidades transformadoras da Justiça Restaurativa.
Com o propósito de promover o estudo, a reflexão e o debate sobre tema tão importante, o IBCCRIM criou, em maio deste ano, o Departamento de Justiça Restaurativa. Trata-se de um espaço para pensar - numa perspectiva plural, interdisciplinar e madura do sistema penal -alternativas à lógica punitivista, sabidamente ineficaz e contraproducente.