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A criminalização das drogas: uma guerra inconstitucional

Editorial do mês de novembro/2021.

segunda-feira, 1 de novembro de 2021

Atualizado em 17 de outubro de 2022 15:01

A guerra contra as drogas - o uso do sistema penal para combater a produção, a distribuição, o comércio e o uso de entorpecentes - falhou miseravelmente. E não só por aqui; no mundo inteiro não há relato de caso de sucesso. E nem se pode dizer que o problema seria a falta de aplicação da lei, uma questão de impunidade. No Brasil, as prisões estão cada vez mais cheias de pessoas acusadas de crimes relacionados a entorpecentes - muitas, em razão de prisões preventivas.

Na guerra contra as drogas, não há razoabilidade. O sistema repressor do Estado investe uma grande quantidade de recursos, humanos e financeiros, nessa batalha, sem que haja resultados minimamente satisfatórios. As pessoas continuam usando, para fins recreativos, substâncias consideradas ilícitas e, por consequência, o tráfico não diminui.

O diagnóstico não é, no entanto, novidade. São abundantes os dados empíricos sobre a ineficácia da guerra contra as drogas. A transformação de uma questão de saúde pública em matéria criminal é medida rigorosamente ineficiente, incapaz de produzir os resultados almejados.

O problema é que, apesar de todas as evidências e de transformações bem-sucedidas verificadas em outros países, o Estado brasileiro continua insistindo na criminalização das drogas. Com precedência sobre a educação e a reabilitação, a repressão criminal às drogas ocupa de forma prioritária o aparato estatal, em especial o sistema de Justiça. Por exemplo, o tráfico de drogas é o tema que mais aparece no acervo penal do Superior Tribunal de Justiça (STJ) de 2020, com 13.636 casos.

A agravar a situação, a guerra contra as drogas é especialmente seletiva, discriminatória, racista. Se todo o sistema penal é segregacionista, a aplicação da legislação anti-entorpecentes é especialmente propícia à perseguição seletiva, realizando um verdadeiro massacre de pobres e pretos.

A criminalização das drogas aprofunda, assim, a desigualdade social, a hierarquia racial e muitos outros preconceitos da nossa sociedade, além de impedir um debate maduro e isento sobre o assunto e seus efeitos. É o anti-Estado Democrático de Direito em operação: em vez de combater, reproduz injustiças, consuma a repressão seletiva e dissemina discursos intolerantes.

O uso do sistema penal para controlar o uso recreativo de entorpecentes revela grave incompreensão do papel do Estado e de sua relação com a autonomia individual. Trata-se de modalidade do paternalismo estatal, incompatível com o regime democrático. Sob o pretexto de cuidar dos cidadãos, o poder público extrapola suas finalidades e avança sobre a esfera individual. E, para piorar, tudo isso se dá por meio do braço penal. É o sofisma completo: para proteger o cidadão, recorre-se à mais brutal violência estatal contra o cidadão.

Pôr fim à guerra contra as drogas é um imperativo jurídico, cívico e humano. Não é mera questão de "reduzir a criminalidade, descriminalizando condutas", como se o principal objetivo da descriminalização das drogas estivesse relacionado à segurança pública. Certamente o tema tem implicações na área, mas o problema é mais profundo. O Estado Democrático de Direito existe para outros fins, deve ter outros métodos. Seu sistema penal não pode ser usado para moldar costumes, naturalizar preconceitos e perpetuar desigualdades.

É urgente, portanto, terminar essa guerra, ineficaz e inconstitucional.

Nessa tarefa, muitas pessoas, instituições e organizações podem e devem colaborar. A sociedade tem de participar ativamente. Pelo envolvimento do sistema de Justiça na guerra contra as drogas, o Judiciário, em todas as instâncias, tem papel relevante nessa história, começando por não ser indiferente à realidade. Longe de ser instrumento de cidadania, a repressão às drogas é expressão de um legado patológico de discriminação, notadamente patriarcal e racializado.

A Justiça não pode ser cúmplice com tal sistema injusto e disfuncional - violenta a liberdade dos cidadãos, sem entregar o que promete -, com a desculpa de que simplesmente aplica a lei. Não poucas vezes, tribunais transformaram avanços legislativos - medidas que diminuíam a repressão contra as drogas - em genuínos retrocessos, por meio de interpretações recalcitrantes. O Judiciário existe para ser parte da solução, e não do problema.