Negacionismo científico e qualidade da jurisprudência
Editorial do mês de dezembro/2021.
quarta-feira, 1 de dezembro de 2021
Atualizado em 17 de outubro de 2022 14:39
O IBCCRIM é um instituto de ciências. Seus fundadores vislumbraram e construíram este caminho, hoje trilhado e compartilhado por todos os associados do instituto: o de aperfeiçoar e transformar o sistema penal brasileiro por meio da produção e do debate científico. Neste caminho, o IBCCRIM não está sozinho. Sua missão realiza-se em estreita proximidade - verdadeira parceria - com o âmbito acadêmico, como se pode constatar, entre outras iniciativas, nas edições do Seminário Internacional e em tantas publicações do instituto.
O IBCCRIM realiza seu objetivo estatutário quando produz, dialoga, fomenta, debate e difunde as ciências criminais. Nessa trajetória, o instituto teve papel especial ao contribuir ativamente para a pluralidade e a diversidade das ciências criminais. Ao contrário do que proclama a rasa meritocracia - percepção instantânea e quantitativa da realidade, que normaliza desigualdades e reproduz injustiças -, a excelência acadêmica exige perspectivas plurais. O 27º Seminário Internacional é caso emblemático dessa profunda conexão entre a qualidade científica e a pluralidade racial, social e de gênero.
Não basta, no entanto, produzir e difundir boa ciência - aberta, plural, crítica, tecnicamente consistente - para que o IBCCRIM realize sua missão. A finalidade do instituto transcende suas próprias atividades: almeja-se aperfeiçoar e transformar o sistema penal brasileiro. Parte relevante da tarefa do IBCCRIM consiste, portanto, em contribuir para que a atuação do sistema de Justiça seja mais justa, menos desequilibrada, em maior conformidade com as garantias constitucionais. Em outras palavras, uma atuação em maior aderência e em maior diálogo com as ciências criminais.
Aqui, o diagnóstico não é propriamente positivo. Observa-se um descompasso da jurisprudência - que, não raro, atinge patamares de estrita indiferença - com a produção acadêmica da criminologia, do direito penal e do direito processual penal. Tal fenômeno não é novo, tampouco restrito ao Brasil. No entanto, não cabe ao IBCCRIM, em razão de sua própria missão estatutária, conformar-se com essa situação ou apenas reclamar dela, o que teria efeitos muito similares à mera inação.
O descompasso dos Tribunais com a produção acadêmica é fato grave. Mais do que simples aplicação de uma sistemática jurídica defasada - o que já seria prejudicial e incompatível com os fins do Estado Democrático de Direito -, o fenômeno aprofunda os problemas relacionados ao sistema de justiça. Ao ser indiferente à melhor produção das ciências criminais, o judiciário não apenas opera abaixo de sua capacidade, com menor efetividade. Ele se torna contraproducente.
De toda forma, não basta advertir sobre a disfuncionalidade de tal situação, como se, nesse âmbito, a tarefa do IBCCRIM e de seus associados se resumisse a exigir dos magistrados uma postura mais aberta às ciências criminais. Certamente, é dever de todos os envolvidos no sistema de justiça denunciar abusos e aplicações equivocadas - por exemplo, indiferentes à produção acadêmica - do direito penal e processual penal. Mas a denúncia é insuficiente.
É tarefa de todos facilitar e promover a proximidade da jurisprudência com a melhor doutrina criminal. Nesse sentido, muito contribui, por exemplo, a atuação profissional profundamente técnica da advocacia. Para que a aplicação do direito se aproxime da produção acadêmica, também as partes devem estar próximas dessa produção. Também elas devem ser rigorosamente técnicas, com consistência acadêmica.
As soluções são conhecidas. É preciso melhorar o ensino do direito nas faculdades. É urgente aperfeiçoar a formação das carreiras jurídicas, muito além de uma mera eficiência quantitativa. É necessário uma nova cultura jurídica - mais aberta, mais plural e mais científica. Mas nada disso se tornará realidade se for apenas uma cobrança aos outros, a terceiros. É tarefa de todos, é responsabilidade de todos.