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Desconstruir a normalização da letalidade policial

Editorial do mês de maio/2022.

domingo, 1 de maio de 2022

Atualizado em 11 de outubro de 2022 13:53

As chacinas operadas pela polícia saem nas manchetes dos jornais. Há de imediato uma reação de indignação da sociedade perante a brutalidade, a disfuncionalidade e a seletividade do aparato estatal. Mas, por diversas razões - entre elas, o racismo que estrutura o funcionamento e a percepção da sociedade -, a letalidade policial acaba sendo logo normalizada. Torna-se invisível. Ganha ares de assunto restrito a movimentos sociais organizados, como se fosse preocupação exclusiva de grupos minorizados.

Todo esse processo de normalização deve suscitar reflexão. A sociedade, por meio do Estado, constrói e sustenta uma força policial que atua, de forma recorrente, contra a própria população - contra a maior parte da população, preta e pobre. É preciso um novo olhar, uma nova compreensão sobre esse estado desumano e inconstitucional de coisas.

Deve-se resgatar o valor das evidências, chamando as coisas pelo seu nome. A polícia brasileira tem índices de violência muito altos. Há reiterados relatos de execução e de tortura. E tudo isso dentro de um ambiente de certeza de impunidade, de invisibilidade e, é preciso reconhecer, de aceitação social. E aqui está um dos grandes desafios: a letalidade policial não é uma questão apenas da polícia, mas de toda a sociedade.

É muito importante, portanto, o trabalho de medição e acompanhamento do uso da força policial realizado pelas organizações da sociedade civil, para que se saiba como a polícia opera. O Estado é omisso e passivo na produção desses dados, o que por si só é um contrassenso. Por sua finalidade constitucional, o poder público deveria ser o primeiro a procurar entender a realidade e os efeitos de seu funcionamento.

É importante conhecer os números, mas é fundamental conhecer as histórias por trás de cada número. Não basta uma análise meramente quantitativa da letalidade policial, pois isso, em última instância, contribui para normalizá-la. Não são números, não são meras notícias. São pessoas de carne e osso, com histórias e memórias, com sonhos e aspirações, com famílias e amigos, que estão sendo mortas diariamente pela polícia. É preciso desvelar essas histórias, todas as histórias, em sua potência humana, em sua riqueza afetiva e pessoal.

Afinal, o problema da violência policial não é apenas o fato de ser massiva, constante, sistêmica: não é unicamente por fazer muitas vítimas. Há um enorme problema sempre que, em vez de promover proteção e respeito, o poder público é sinônimo de extermínio e violação.

A violência das polícias não apenas gera vítimas, mas estigmatiza cada vítima. Toda pessoa morta pela polícia tem sua memória violentada. Sem dispor de meios para se defender, a vítima vê recair sobre sua história o manto da ignomínia. Opera-se uma nefasta presunção de ilegalidade: se foi morta pela polícia, algum motivo deu. Não é pequeno o rastro que a violência policial deixa em cada história, em cada família.

Para piorar, com frequência há, no debate público, uma discussão se as vítimas da letalidade policial eram ou não inocentes. Num Estado Democrático de Direito, isso não tem nenhuma relevância. Não há julgamento sumário. Não há pena de morte. A polícia não está autorizada a matar. É preciso desmascarar os mecanismos que, sob a pretensa finalidade de analisar a realidade, servem para normalizar o racismo, a injustiça e a disfuncionalidade da polícia.

O absurdo dessas discussões tem sido desmascarado por uma experiência recente, que ainda precisa ser aprimorada: a instalação de câmeras nos uniformes policiais. Em vários casos, o uso da tecnologia pelas polícias não apenas propiciou uma redução da letalidade, como reduziu a zero as mortes nas abordagens policiais. Não se trata de ser ingênuo e achar que a letalidade policial acabou, mas de constatar que, em todos esses casos, não havia nenhuma circunstância a justificar minimamente a violência policial. Bastou gravar - bastou a transparência - para explicitar o absurdo que é policial matando pessoas, matando seletivamente pessoas.

A experiência com as câmeras nos uniformes também demonstra como o Poder Judiciário pode - e deve - agir ativamente contra o uso violento da força policial, não presumindo circunstâncias e justificativas, mas apurando abusos.  A implantação da tecnologia é oportunidade para um novo posicionamento da Justiça.

O IBCCRIM nasceu da indignação perante o massacre do Carandiru. E não descansará - não pode e não quer descansar - enquanto houver pessoas sendo mortas pela polícia. A letalidade policial é tema fundamental de e para toda a sociedade brasileira.