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A (ir)racionalidade do processo legislativo penal

Editorial do mês de junho/2022.

quarta-feira, 1 de junho de 2022

Atualizado em 11 de outubro de 2022 13:58

O processo legislativo penal no Brasil é bastante falho em sua racionalidade. O Congresso produz frequentes alterações normativas, mas, em sua intensa atividade legislativa, não utiliza um conhecimento metódico e fundamentado da realidade. Observa-se um agir legislativo cego, tanto à realidade que pretende modificar, como às consequências que pretende gerar. Exemplo dessa atuação desorientada é o chamado Pacote Anticrime (Lei 13.964/19), que alterou, entre outros assuntos, a execução da pena, sem, no entanto, ter estudo prévio sobre o impacto nas penitenciárias (BRASIL, 2019).

A racionalidade do processo legislativo não é um tema acessório dentro das Ciências Criminais, mas toca o seu cerne. Não basta estudar, debater e buscar a melhor aplicação do Direito. É essencial estudar, debater e buscar a melhor produção das fontes de Direito. Todo o sistema de Justiça penal tem por base o Direito posto. Se a legislação é desequilibrada, o funcionamento da Justiça penal é inteiramente prejudicado, com danos para toda a sociedade.

Ao avaliar o processo legislativo brasileiro sob o ponto de vista de sua racionalidade, dois fenômenos saltam à vista: a falta de estudos empíricos que fundamentem as propostas legislativas e a falta de acompanhamento dos efeitos dos atos legislativos. É uma produção legislativa, que dialoga não com a realidade, mas com percepções superficiais e, muitas vezes, preconceituosas e equivocadas da realidade. Em muitos casos, as audiências públicas legislativas, em vez de aportarem embasamento teórico ao processo, apenas reverberam demandas políticas.

No Brasil, todo projeto de lei deve estar acompanhado de uma "exposição de motivos". No entanto, não há requisito a respeito do conteúdo dessas razões. Não há nenhuma exigência (de conteúdo) minimamente vinculante na produção legislativa.

Do início ao fim, o processo legislativo brasileiro está marcado pela predominância da retórica, como se a essencial dimensão política da produção legislativa tivesse de ser indiferente aos dados empíricos e à ciência. Trata-se de compreensão equivocada da autonomia da política, uma vez que, ao não estar vinculada a um mínimo de racionalidade, ela se desvincula da realidade e do próprio sentido da atividade legislativa. As leis existem para produzir resultados práticos.

São muitas as propostas para aumento da punição dos tipos penais, que surgem, em geral, como consequência de algum caso com repercussão midiática. Mesmo nos casos em que existem estudos sobre a matéria, a atividade legislativa fica à margem dessa discussão, sem efetiva verificação da necessidade e adequação da proposta em análise. A Lei dos Crimes Hediondos é exemplo dessa disfuncionalidade. Criada para um objetivo, nunca realizou sua pretensa finalidade.

Além disso, não há um efetivo acompanhamento sobre os efeitos de toda essa produção legislativa. Ao dificultar o controle dos efeitos, o Congresso gera intensa legislação extravagante, com normas duplicadas ou que contenham, para uma mesma conduta, preceitos sancionatórios diferentes.

É essencial aprimorar o processo legislativo, aproveitando o que já foi feito. É possível aperfeiçoar os Regimentos Internos das Casas Legislativas, fixando parâmetros mínimos de racionalidade, bem como o funcionamento das Comissões e Grupos de trabalho legislativo. Várias experiências internacionais podem ajudar nessa tarefa. A Suíça prevê períodos de teste para as novas leis, checando se os efeitos esperados foram de fato produzidos. A Espanha exige memoriais de impacto legislativo.

Não são soluções fáceis. É um desafio constante o equilíbrio entre a dimensão política da atividade legislativa e a análise científica. De toda forma, é possível avançar na compreensão de que os dados empíricos, mais do que condicionarem a vontade política, contribuem para tornar efetiva a vontade política. As leis nascem para produzir resultados, para resolver problemas. É necessário, portanto, avaliar se esses problemas são reais e se os resultados gerados são os esperados.

O aprimoramento do processo legislativo é tarefa coletiva. O IBCCRIM tem muito a contribuir, tanto com seu trabalho de advocacy, em parceria com outras muitas instituições da sociedade civil, como por meio de sua produção científica, qualificando o debate público e questionando esse afazer legislativo que, desconectado dos dados empíricos, corre o risco de agravar as injustiças, a seletividade e disfuncionalidade do sistema de Justiça penal.