A urgência da implantação do juiz de garantias
Editorial do mês de julho/2022.
sexta-feira, 1 de julho de 2022
Atualizado em 14 de outubro de 2022 11:01
A Lei 13.964/2019 previu em nosso ordenamento o que possivelmente seria a mudança mais relevante do nosso processo penal desde a Constituição Federal de 1988: a figura do juiz das garantias.
A divisão de competência no decorrer da persecutio criminis constitui mecanismo essencial para assegurar a imparcialidade do julgador. O magistrado que participa da fase investigativa, conhecendo os atos e decidindo sobre eventuais medidas cautelares, ainda em fase prévia ao contraditório, não pode ser o mesmo que julga o feito.
Tal constatação não decorre de qualquer desconfiança em relação a esse ou aquele julgador. Baseia-se em evidências sedimentadas, oriundas dos mais variados campos de conhecimento, de que o exercício da prestação jurisdicional na fase investigativa implicará em inevitáveis vieses - ainda que inconscientes - não só no momento do julgamento do caso, como durante toda a instrução criminal, colocando em risco a distribuição da justiça por um juiz imparcial.
Não por outra razão, a Corte Europeia de Direitos Humanos, desde a década de 1980 do século passado, declara reiteradamente a impossibilidade, em respeito às garantias fundamentais, de o juiz criminal atuar em ambas as etapas do processo penal. Além disso, a experiência do juiz das garantias em variados países, tais como Itália, Portugal, Chile e Alemanha, também se revelou profícua.
É essencial, ainda, que se dissolva a ideia de que a defesa do juízo de garantias faz-se para garantir a impunidade, ou ainda, menos punição penal no país. Não há correlação entre impunidade e a existência ou não do juízo de garantias. Trata-se, em verdade, de aprimoramento na qualidade da justiça distribuída, com incremento na legitimidade do Estado no exercício de seu dever de punir.
A escolha pelo juízo de garantias foi feita pelo legislativo brasileiro. A análise de questões e dificuldades de implantação devem sim ser consideradas, principalmente em razão das dimensões continentais do país. Neste sentido, a Associação dos Juízes Federais do Brasil (AJUFE) e o Conselho de Justiça Federal (CJF), nas falas dos juízes Walter Nunes da Silva e Nino Toldo, respectivamente, em audiência pública sobre o tema, foram cirúrgicas a pontuar a necessidade de adequação às diferentes realidades nacionais, reforçando a natureza organizacional das questões. Não há argumentos que sustentem a inconstitucionalidade.
Portanto, há de se lamentar profundamente a decisão liminar, de 22 de janeiro de 2020, proferida pelo Min. Luiz Fux, que suspendeu a eficácia dos dispositivos legais - aprovados após processo legislativo democrático - que tratavam do instituto do juiz das garantias. Os fundamentos ali lançados não encontram qualquer base constitucional.
A matéria não é apenas de organização judiciária, como sugere a decisão monocrática prolatada. Em verdade, trata-se de norma de Direito Processual, de competência da União, na medida em que estabelece critérios de competência funcional. Uma vez definida por lei federal a separação da competência nas fases do processo, caberá, aí sim, ao Poder Judiciário organizar a atribuição dos juízes que exercerão as funções em cada comarca.
Outra questão levantada na decisão do Presidente do Supremo Tribunal Federal seria o suposto impacto financeiro que traria a medida. Não se está a acrescentar um volume maior de trabalho, que implicaria na contratação de novos magistrados. A medida exige, sim, um trabalho de organização e atribuição de funções. Já foram expostas soluções à saciedade - sem qualquer incremento de gastos - nas audiências públicas levadas a efeito perante o STF sobre o assunto. Neste sentido, o argumento da dificuldade quanto às varas únicas foi arrebatado por toda vivência nacional em quarentena no período da pandemia, em que muito se fez para reduzir distâncias e melhorar processos a partir da tecnologia, o que pode e deve ser considerado na implantação do instituto ora debatido.
O IBCCRIM, na sua luta perene por um processo penal mais democrático, continuará a defender a premência na implementação do juiz das garantias. Transcorridos mais de dois anos da decisão que suspendeu a eficácia da norma, urge que o Supremo Tribunal Federal reconheça a constitucionalidade da norma trazida ao ordenamento pátrio por processo democrático.