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O necessário sistema de precedentes judiciais

Editoral do mês de setembro/2022.

quinta-feira, 1 de setembro de 2022

Atualizado em 14 de outubro de 2022 11:00

Um melhor funcionamento do sistema de justiça penal depende de diversos fatores e medidas. Não existe bala de prata. Não há uma única medida redentora capaz de resolver todos os problemas relativos à aplicação técnica, funcional e democrática do Direito Penal. Por sua própria natureza, a melhoria da justiça penal é um assunto complexo. Frente a isso, é fundamental não desperdiçar nenhuma medida que sabidamente produz resultados positivos sobre o sistema de justiça penal.

Uma dessas medidas de reconhecida eficácia é o fortalecimento do sistema de precedentes judiciais. Trata-se de tema fundamental, com efeitos sobre todo o sistema de justiça penal. Basta pensar nos inúmeros Habeas Corpus diários ao Superior Tribunal de Justiça para que se faça valer a jurisprudência relativa à substituição da pena de prisão por serviços à comunidade em casos de tráfico de entorpecentes e a progressão de regime em crimes hediondos. Nos dizeres de Danyelle Galvão, a estabilidade da jurisprudência é uma forma de "garantir tratamento igualitário para situações idênticas, um mínimo de previsibilidade em relação à atuação estatal e diminuição de contrastes de entendimento sobre um mesmo tema, às vezes dentro de um mesmo tribunal" (Boletim Revista do Instituto Baiano de Direito Processual Penal, ano 4, n. 14, p. 21, maio 2021).

A existência de um sistema de precedentes judiciais não significa transformar a prestação jurisdicional em uma tarefa mecânica, automática ou burocrática. É apenas o reconhecimento de que a norma jurídica não é o texto escrito na lei, mas o conteúdo normativo que efetivamente se extrai ao aplicá-lo. Se há interpretações divergentes, na prática existem diferentes normas jurídicas regulando comportamentos semelhantes, o que contraria a função afirmativa da norma, viola o princípio da igualdade de todos perante a lei e distorce o princípio da legalidade penal.

Dessa forma, a inexistência de previsão legal específica a respeito da estabilização da jurisprudência ou da formação e utilização de precedentes judiciais no processo penal não deve ser óbice para sua implantação. Afinal, a Constituição de 1988 consagra os princípios da igualdade e da legalidade.

Além disso, o Código de Processo Civil de 2015, com aplicação supletiva no processo penal, traz diversas disposições relativas à adoção de um sistema de precedentes, como meio de prover uma ordem jurídica estável e previsível. E se isso é uma exigência legal no processo civil, é ainda mais necessário no âmbito penal. O princípio do nullum crimen, nulla poena sine praevia lege requer um sistema que garanta a estabilidade da jurisprudência, que é estabilidade e previsibilidade do conteúdo normativo efetivamente aplicado. A proibição da retroatividade penal também ilumina a importância da estabilidade da jurisprudência.

Se o Direito Penal deve ser a ultima ratio da proteção de bens jurídicos fundamentais de uma sociedade, essa proteção precisa estar revestida de um patamar de certeza. De outra forma, haveria não apenas arbítrio na punição, mas também um enfraquecimento da proteção de bens fundamentais para a sociedade. Longe de ser um automatismo, a previsibilidade das decisões judiciais proporciona um aspecto especialmente importante quando se trata de ações com relevância penal: as consequências de cada comportamento devem ser conhecidas. Ao mesmo tempo, a igualdade de tratamento obtida com o uso de precedentes assegura outro ponto imprescindível para um sistema de justiça: situações fático-jurídicas semelhantes devem ter a mesma solução judicial. Esse tratamento equânime é requisito para a confiança dos jurisdicionados no sistema de justiça.

No entanto, se, no plano da reflexão e da ciência do processo penal, o sistema de precedentes dispõe de incontestável prestígio e consolidado grau de adesão, é preciso reconhecer que o mesmo não ocorre em nossos tribunais. Há uma alta frequência de decisões colidentes não apenas com a jurisprudência das Cortes superiores, mas com julgados do próprio tribunal - às vezes, da mesma turma. É um funcionamento rigorosamente disfuncional, que sobrecarrega os tribunais superiores, multiplica o trabalho jurisdicional, retarda o final dos processos e contribui para minar a autoridade do Judiciário. Vale notar que há uma enorme imprevisibilidade mesmo em relação às regras de competência.

Mais do que mera melhoria opcional, o sistema de justiça penal terá um funcionamento em maior conformidade com a Constituição se duas medidas forem implementadas: (i) rigorosa observância dos precedentes das Cortes superiores e (ii) não aleatoriedade na aplicação da lei penal, seja em qual instância for. A convivência de diferentes interpretações da lei desrespeita garantias constitucionais, conferindo uma dimensão de arbítrio ao resultado do processo penal. Para que o sistema de precedentes seja operativo, é preciso também avançar noutro ponto, com previsão expressa na Constituição e na lei: a fundamentação das decisões. A melhoria do sistema de justiça penal é um assunto complexo, mas os caminhos são conhecidos e não estão interditados. É preciso trilhá-los.