sábado, 23 de novembro de 2024

  1. Home >
  2. A seletividade da Justiça Criminal: reconhecimento facial, raça e gênero

A seletividade da Justiça Criminal: reconhecimento facial, raça e gênero

Este texto é o quinto do "Especial IBCCRIM Julho das Pretas".

terça-feira, 30 de julho de 2024

Atualizado às 13:27

O dia 25 de Julho foi instituído pela Lei nº 12.987/2014, e dispõe sobre o Dia da Tereza de Benguela e da Mulher Negra, como resultado do movimento de mulheres negras nas diversas áreas de luta por igualdade e reconhecimento na sociedade. Internacionalmente, a data faz referência ao dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha.

Lélia Gonzalez, pensadora social brasileira, apontou que precisamos compreender a questão de gênero em suas várias complexidades, motivo pelo qual, enfatizou a questão das mulheres-afro-latino-americanas, que apresentam demandas diferentes das mulheres americanas, africanas e de outros lugares do mundo. Observando o avanço de movimentos populares, Lelia Gonzalez (2020) destacou que "é precisamente no popular que encontraremos maior participação de mulheres afro-americanas e ameríndias que, preocupadas com o problema da sobrevivência familiar, procuram se organizar coletivamente; por outro lado, sua presença sobretudo no mercado informal de trabalho as remete a novas demandas". Além disso, sobre a questão estrutural entre homens e mulheres, a autora destaca que "dada a sua posição social, articulada com a discriminação racial e sexual, são elas (mulheres negras e indígenas)  que sofrem mais brutalmente os efeitos da crise" (GONZALEZ, 2020). A autora afirma e os dados oficiais corroboram que as mulheres negras representam os piores dados de vulnerabilidade.

A mesma autora, destaca que as mulheres negras apesar de formadas, tinham mais dificuldade de acesso ao mercado de trabalho, e sofriam com as arbitrariedades da polícia, visto que, seus filhos, maridos e companheiros eram injustamente acusados e condenados pelo fato de serem negros. Essa realidade, atinge diretamente a vida de muitas mulheres negras até os dias de hoje.

Dados do Atlas de Segurança Pública de 2024 apontam que as mulheres negras representam 66,4% das vítimas dos homicídios ocorridos em 2022: "Em números absolutos, foram 2.526 mulheres negras assassinadas. Naquele ano, a taxa de homicídio de mulheres negras foi de 4,2 por grupo de 100 mil, enquanto a taxa para mulheres não negras foi de 2,5. Isso significa dizer que mulheres negras tiveram 1,7 vezes mais chances de serem vítimas de homicídio, em comparação com as não negras".

Além de mais expostas à morte violenta do que mulheres brancas, mulheres negras também padecem da discriminação institucional ao serem confundidas com suas pares e tratadas como se "todas fossem iguais", perdendo sua individualidade e se tornando alvo de acusações de crimes que não praticaram. Sua existência é monitorada no espaço público e no privado.

Como destaca FRASER, quando os padrões institucionalizados "de valoração cultural constituem alguns atores como inferiores, excluídos, como os outros ou simplesmente invisíveis", ou seja, "como menos do que parceiros integrais na interação social, então nós podemos falar de não reconhecimento e subordinação de status." (FRASER, 2007, p. 108).

Em seu manifesto "AI, ain't I a Woman?", disponível no youtube, a acadêmica Joy Buolamwini destacou que, suas pesquisas no MIT Media Lab, revelaram que sistemas das gigantes de tecnologia como Microsoft, Google, Amazon, Face++ e IBM apresentavam taxas de erro muito altas para identificar mulheres negras. Serena Williams - a maior tenista de todos os tempos, Shirley Chisholm - primeira mulher negra eleita para o Congresso dos Estados Unidos e até mesmo a ativista Sojourney Truth conhecida pelo discurso "Ain't I a Woman" realizado em evento de feministas brancas de 1851 foram lidas como homens (BUOLAMWINI, 2019).

A violência contra a população negra tomou nova forma com a chancela de identificação facial por fotos. A dançarina Barbara Quirino foi uma das vítimas da arbitrariedade policial com reconhecimento fotográfico. No artigo intitulado "Sistema de Justiça Criminal Brasileiro e o Racismo Institucional: Racialização e Criminalização da População Negra", os autores apontam que Barbara Quirino foi identificada por fotos e presa, mesmo alegando estar em outra cidade. "A vítima do crime de roubo reconheceu Bárbara como a autora do  crime  com  a seguinte descrição em que afirmou que ela era 'da cor parda, magra, cabelos de cor escura, longos e encaracolados, olhos escuros, altura aproximadamente de 1,68, aparentando  ter idade entre 18 e 25 anos'" (TJSP, 2017, p. 31 apud BATISTA, et, 2020, p. 110). A descrição é compatível com milhares de mulheres negras no Brasil e fora dele. Este é apenas um caso dentre tantos outros em que o racismo fez com que mulheres negras fossem falaciosamente acusadas e condenadas pela prática de crimes.

Da mesma forma que a singularidade das pessoas negras e das mulheres negras segue estruturalmente ignorada, a utilização da tecnologia no sistema de justiça sem a devida curadoria e reflexão não apenas reproduz o imaginário de quem a programa e a opera como perpetua e reforça dinâmicas discriminatórias e excludentes da sociedade.

Estudo QUEMCODABR da PRETALAB em parceria com a Thoughworks olhou para quem está lidando com tecnologia e programação e traçou uma espécie de perfil em uma pesquisa voluntária com mais de 600 pessoas no Brasil: homens brancos, jovens, héteros, sem deficiência, sem filhos e de classes sociais média ou alta que começaram sua trajetória nos centros formais de ensino são a maioria entre os profissionais do segmento.

Vale lembrar que, enquanto articulação ideológica e conjunto de práticas - o racismo denota sua eficácia estrutural na medida em que estabelece uma divisão racial do trabalho e é compartilhado por todas as formações sócio-econômicas capitalistas e multirraciais contemporâneas: Em termos de manutenção do equilíbrio do sistema como um todo, ele é um dos critérios de maior importância na articulação dos mecanismos de recrutamento para as posições na estrutura de classes e no sistema da estratificação social e de trabalho (GONZALEZ, 1979).

O narcisismo (amor a si mesmo), trabalha para a preservação do indivíduo e é responsável por gerar a "aversão ao que é estranho, diferente". Em Pacto da Branquitude, Cida Bento vai dizer que o diferente coloca em questão o "normal" e "universal" da branquitude, exigindo a modificação, enquanto, "autopreservar-se remete exatamente à imutabilidade" (2002).

O papel do Estado como fomentador ou mediador de mecanismos de vigilância e violência ligados a tecnologias digitais traz enormes preocupações a partir de lentes raciais e de gênero. De um lado, a existências de vieses de algoritmos devido a processos discriminatórios no desenvolvimento de tecnologias como o reconhecimento facial podem levar a situações de prisões injustas. Por outro lado, temos impactos nocivos ligados a vazamento de dados, restrições à liberdade de movimentação e associação política. Internacionalmente, há forte direcionamento para o banimento de tecnologias biométricas de vigilância.

Há múltiplas e nenhuma resposta. Um trabalho de "levantamento dos riscos, ações que tratem tais riscos de forma contínua, além da auditoria independente das bases e dos modelos, visando assim trazer mais segurança são indispensáveis para se construir e calibrar processos que trarão impacto severo à vida coletiva". Indispensável ainda, a participação da sociedade civil, dos grupos socialmente minorizados - por destaque mulheres negras -, a fim de que diferentes realidades sejam consideradas e contempladas (CESAR, 2023).

Não restam dúvidas de que o olhar atento à luta contra a naturalização do imaginário do lugar da população negra na sociedade brasileira é fundamental. A Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 973, de relatoria do Ministro Luiz Fux, que trata sobre as violações de direitos da população negra está com o julgamento suspenso.

Há legislação antirracista que respalda toda a luta de combate ao racismo, como a Lei nº 14.532/2023, que tipifica a equiparação do crime de injuria ao crime de racismo, a Lei nº 10.288/2010 (Estatuto da Igualdade Racial) e a ?Convenção Interamericana de Combate ao Racismo, Discriminação Racial e intolerâncias correlatas (Decreto 10.932/2022).

Frente a essa realidade, o Dia 25 de Julho deve ser a data de marcar as conquistas que a população brasileira conquistou, em particular, as mulheres negras em seus diversos espaços. No entanto, também deve ser momento de ninguém soltar a mão de ninguém no enfrentamento às desigualdades de raça e gênero.

A democracia brasileira não é completa enquanto não alcançar a materialização de condições materiais e imateriais dignas à população negra. As arbitrariedades que acontecem no sistema de justiça criminal são uma das faces das violências existentes em todas as relações econômicas, sociais, ambientais, profissionais e até mesmo de afeto.

O Brasil adotou os Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável em 2015, que foca em ações para as gerações presentes e futuras. É impreterível que sejam repensadas políticas institucionais para materialização de todos os ODS, com atenção e destaque ao ODS 16 sobre Paz, Justiça e Instituições Eficazes, que busca  promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis. Nada disso se fará sem e por mulheres negras.

________

REFERÊNCIAS

Atlas da violência. Coordenadores: Daniel Cerqueira; Samira Bueno. Brasília: Ipea; FBSP, 2024. Disponível em: 7868-atlas-violencia-2024-v11.pdf (ipea.gov.br). Acesso em: 22 jul 2024.

BATISTA, Waleska Miguel, et. Al. Sistema de Justiça Criminal Brasileiro e o Racismo Institucional: Racialização e Criminalização da População Negra. Revista Brasileira de Sociologia do Direito, São Paulo, v. 9, n.2, 2022, p. 93-119. Disponível em: Sistema de justiça criminal brasileiro e o racismo institucional | Revista Brasileira de Sociologia do Direito (abrasd.com.br). Acesso em: 22 jul. 2024.

BUOLAMWINI, Joy. "AI, Ain't I a Woman?"Vision & Justice, Radcliffe Institute. Youtube. 07.05.2019. Disponível em https://youtu.be/HZxV9w2o0FM?si=JQnazRyhQgLYoVtF . Acesso em 22 jul.2024.

CESAR, Camila Torres. Neutralidade, controle e novas tecnologias. Trincheira democrática, Boletim IBADPP, ano 6, n.29, out.2023.

FRASER, Nancy. Reconhecimento sem ética?. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, p. 101-138, 2007.

GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo Afro-Latino-Americano: ensaios, intervenções e diálogos. Organização de Flavio Rios e Márcia Lima. São Paulo: Zahar, 2020 (e-book).

MAGNO, M. E. da S. P.; BEZERRA, J. S. Vigilância negra: O dispositivo de reconhecimento facial e a disciplinaridade dos corpos. Novos Olhares, São Paulo, v. 9, n. 2, p.  45-52, 2020. ISSN: 2238-7714. DOI:  https://doi.org/10.11606/issn.2238-7714.no.2020.165698. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/novosolhares/article/view/165698. Acesso em: 22 jul. 2024.

PRETALAB. Perfil dos profissionais de tecnologia no Brasil hoje: a pesquisa #QUEMCODABR. Disponível em https://www.pretalab.com/report-quem-coda . Acesso em 24.07.2024.

Camila Torres Cesar

Camila Torres Cesar

Diretora nacional no IBCCrim. Doutoranda em Direitos Humanos (USP). Mestre em Direito Político e Econômico (Mackenzie). Diretora Executiva na Formação Antirracista Consultoria. Membro das Juristas negras. Advogada.

Waleska Miguel Batista

Waleska Miguel Batista

Coordenadora da Graduação em Direito da FADISP, Professora da Escola de Direito da FADISP e da PUC-Campinas. Pós- Doutoranda em Educação pela UNICAMP. Doutora em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Diretora de Comunicação do Instituto Luiz Gama. Advogada.