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Algumas - das muitas - contribuições femininas negras do Direito e relações raciais para o campo das ciências penais

Este texto é o terceiro do "Especial IBCCRIM Julho das Pretas".

quarta-feira, 24 de julho de 2024

Atualizado às 10:08

Com o objetivo de contribuir para a produção de um Ensino Jurídico emancipatório brasileiro e problematizar algumas das características da autoria negra feminina nesse ensino, apresentam-se neste artigo algumas das principais pesquisadoras negras vinculadas ao campo do saber "'Direito e Relações Raciais" e seus contributos às Ciências Criminais.

A sofisticação da estrutura do racismo à brasileira como pilar para a formação do nosso pensamento jurídico esteve presente pela primeira vez na pesquisa realizada pela Professora Doutora Eunice Prudente na forma de dissertação sob o título "Preconceito racial e igualdade jurídica no Brasil"1, defendida no ano de 1980. A citada dissertação foi peça inaugural para o campo do Direito e Relações Raciais, sendo o primeiro estudo na área das Ciências Jurídicas a dimensionar o racimo como um problema fundamental ao lado dos estigmas de ordem social e econômica.2

Por sua vez, a Professora Doutora Dora Bertúlio inicia o estudo denominado "Direito e Relações Raciais: uma introdução crítica ao racismo"3 de 1989 com essa afirmação: "A questão racial no Brasil tem sido tratada, ainda, com a displicência típica à atenção dada aos demais problemas de todo o povo brasileiro, quer na esfera política, acadêmica ou jurídica."

Uma segunda geração de juristas negras pesquisou a experiência dos Estados Unidos da América com a Teoria Crítica da Raça. São as Professoras Doutoras Tula Pires, Ísis Conceição4 e Ana Flauzina. As três são pesquisadoras essenciais para o nascimento de uma rede de pesquisas envolvida na questão do racismo no pensar e no ordenamento jurídicos.5

Professora Doutora Thula Pires em sua pesquisa de Doutorado, "Criminalização do Racismo: entre política de reconhecimento e meio de legitimação do controle social sobre os negros"6, classifica normas criadas entre o Período Imperial e o Período Republicano, para efetuar a denúncia da neutralidade "fake" das leis. O racismo institucional é escancarado com a reverberação na sociedade dos símbolos racistas embutidos em normas jurídicas editadas, principalmente, no período pós-abolição inconclusa. Dessa maneira, quando Thula Pires analisa a criminalização dos atos de racismo, ela revisita o negro inferiorizado que foi assim interpretado pela ordem jurídica nacional. Portanto, para que a luta antirracista redunde em um redesenho do ordenamento jurídico, devemos levar em conta as tensões e distensões no campo das relações raciais, vez que a suposta neutralidade da ciência jurídica é uma máquina copiadora que produz e reproduz discursos e práticas de matiz racista de modo quase incontrastável.

Em seu estudo do sistema penal, Professora Doutora Ísis Conceição verifica no amálgama entre o racismo, controle social e política criminal, as bases do nosso Estado Nacional brasileiro. Na dissertação, " Os limites dos direitos humanos acríticos em face do racismo estrutural brasileiro: o programa de penas e medidas alternativas do Estado de São Paulo"7, a estudiosa sustenta que o resgate de diplomas legais de tempos pretéritos auxilia o estudo das relações raciais do Brasil do nosso hoje, já que a manutenção do racismo estrutural encontra argumentos nos diplomas legais "pais fundadores" da nossa nação, mais especialmente na migração entre o regime escravagista e a era dos trabalhadores livres. Dessa forma, a autora realça os códigos penais de 1841, de 1891 e o de 1940, bem como a legislação migratória, como produtos de teorias racistas, responsáveis pelo controle social no período pós-abolição inacabada. Nas considerações finais, a pesquisadora afirma que, a despeito da criminologia acolher o elemento raça e a sua dimensão, a política criminal de desencarceramento que adota a face de medidas e penas alternativas à pena de prisão, não abarcam a maioria da população brasileira, que é negra. As normas penais ganharam e permanecem com a face de mecanismo mantenedor de relações raciais assimétricas.

Os estudos de criminologia crítica no Brasil formam o objeto de pesquisa da obra da Professora Doutora Ana Flauzina, sob o título "Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do Estado brasileiro"8, de 2006. No articulado, as ideais racistas do ordenamento jurídico ao longo da formação do Estado Brasileiro são desveladas. O racismo como elemento central do sistema penal é aqui apresentado pois é sustentáculo da plataforma genocida da população negra.

As três pesquisadoras sob análise acima forjaram as primeiras obras jurídicas da teoria crítica racial brasileira9. São obras são originais em posicionar o racismo como estrutural para a concepção do nosso sistema jurídico. Melhor dizendo, o racismo não é apenas uma variável para a análise do fenômeno do Direito em nossos rincões e "quebradas".

No campo dos estudos processuais penais temos Professora Pós-Doutora Soraia da Rosa Mendes e Professora Doutora Anamaria Prates Barroso. A primeira, em seu "Processo Penal Feminista"10 empresta o conceito de "dororidade", potência criada pela pensadora Vilma Piedade ao processo penal e à construção dos sujeitos vulnerabilizados e objetificados pelos protagonistas das práticas penais. A originalidade da obra está na emergência de uma investigação jurídica com um olhar feminista e negro, portanto embebido de autenticidade.11

"O não racismo como princípio constitucional processual penal"12 é título de artigo da Professora Anamaria Prates Barroso publicado recentemente no portal jurídico "JOTA". No festejado texto, a docente expõe, de forma arrojada, que o não racismo ganha contornos de dogma constitucional e que possui as seguintes características essenciais: a fundamentalidade, a generalidade e a força normativa.

Após essa singela e sintética panorâmica de pesquisadoras negras, é necessário-em nosso pensar- que o Direito e Relações Raciais em integração com as Ciências Criminais proporcionem a implementação do Ensino Jurídico de fato antirracista desde a graduação até as pós-graduações "lato" e "stricto sensu" a fim de proporcionar maior equidade no projeto de civilização brasileira.

______

[1] DE JESUS PRUDENTE, Eunice Aparecida. Preconceito racial e igualdade jurídica no Brasil. 1980

[2] Nesse sentido, confira-se a análise de Rodrigo Portela Gomes sob o título "Cultura jurídica e diáspora negra: diálogos entre Direito e Relações Raciais e a Teoria Crítica da Raça" - Legal culture and black diaspora: dialogues between Law and Race Relations and Critical Race Theory. Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 12, N. 2, 2021, p. 1203-1241. Rodrigo Portela Gomes DOI: 10.1590/2179-8966/2021/59627 | ISSN: 2179-8966.

[3] BERTÚLIO, Dora Lúcia de Lima. Direito e relações raciais: uma introdução crítica ao racismo. Dissertação de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 1989. BERTÚLIO, Dora Lúcia de Lima. Racismo, Violência e Direitos Humanos considerações sobre a Discriminação de Raça e Gênero na sociedade brasileira. Curitiba (no prelo), 2001.

[4]  CONCEIÇÃO, Isis Aparecida. Movimentos sociais e judiciário: uma análise comparativa entre Brasil e Estados Unidos da América do Norte. Tese (Doutorado). Faculdade de Direito - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014

[5] Idem.

[6] FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do Estado brasileiro. Dissertação (Mestrado) - Universidade de Brasília, Brasília, 2006.

[7] CONCEIÇÃO, Ísis Aparecida. Os limites dos Direitos Humanos acríticos em face do Racismo Estrutural brasileiro: o Programa de Penas Alternativas do estado de São Paulo. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Direito - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.

[8] PIRES, Thula Rafaela Oliveira. Criminalização do racismo: política de reconhecimento ou meio de legitimação do controle social dos não reconhecidos? Tese (Doutorado em Direito) - Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.

[9]  CONCEIÇÃO, Ísis Aparecida. As lições da Teoria Crítica Racial para o Brasil. In: FLAUZINA, Ana; PIRES, Thula (org.). Encrespando - Anais do
I Seminário Internacional: Refletindo a Década Internacional dos Afrodescentendes (ONU, 2015-2024). Brasília: Brado Negro, pp. 53-62, 2016. CONCEIÇÃO, Ísis Aparecida. Justiça Racial e Teoria Crítica Racial no Brasil: uma proposta de teoria geral. In: AUAD, Denise; OLIVEIRA, Bruno. Direito humanos, democracia e justiça social: uma homenagem à professora Eunice Prudente - da militância a academia. São Paulo: Letras Jurídicas, pp. 167-204, 2017.

[10] MENDES, Soraia da Rosa. Processo penal feminista. São Paulo: Atlas, 2020.

[11] A obra foi prefaciada pelo festejado Professor Geraldo Prado.

[12] Disponível em https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/elas-no-jota/o-nao-racismo-como-principio-constitucional-processual-penal-13062024?non-beta=1 . Acesso em 18.07.2024.

Simone Henrique

Simone Henrique

Doutora e mestra em Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Advogada especialista em compliance pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e Universidade de Coimbra. Coordenadora chefe da Biblioteca do IBCCRIM.