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As questões raciais e o Direito

Este texto é o segundo do "Especial IBCCRIM Julho das Pretas".

segunda-feira, 22 de julho de 2024

Atualizado às 13:45

(...) Segue inflamado pela ousadia de viver sua juventude negra. Contra a fenda bucal policialesca, oferece seu verso que o agente fica a olhar com perícia(...)

Eles têm um olhar diferenciado para ver e ouvir. Longe da massa são forjados na academia, na Europa, no sono despreocupado...  Corredores e entradas exclusivas para se movimentar. Estão sentados em cadeiras acolchoadas, ladeados por chegados do mesmo território material e simbólico. Posicionados acima de quem foi designado para falar, escutam, anotam, contabilizam uma realidade apresentada através de teses que desfilam por um procedimento. Observam quem conta, as vestes, a forma de falar, as cores, a história, a narrativa e o enredo, para imparcialmente julgar. Existem mais atores deste cenário em lugares sequencialmente bem equipados de acordo com o crachá e de costas para a realidade que se apresenta. A novidade é que no próximo ano o julgamento será dividido em três dias. É há muito mais a saber sobre as diferenças entre quem faz desfile e quem faz carnaval... Qualquer semelhança é mera coincidência...

Reposicionar a questão racial a partir de uma dimensão narrativa e imaginativa para falar da experiência e da expectativa negra adquiriu um novo sarrafo na proposta crítica do camaronês Achille Mbembe disponível no livro Crítica da Razão Negra. A sofisticação do filósofo é trazer um devir negro do mundo, um fluxo de transformação, um movimento ininterrupto que transforma a realidade existente. Essa abordagem é questionadora e favorece a formação de novas conexões para rearranjos de caminhos, pensamento e comportamento.

O fenômeno das relações raciais em contato com o Direito, requer uma separação de rotinas dos procedimentos, descolonizar as generalizações que fundamentam invisibilidades históricas. As instituições, os padrões sociais ligados à criação e difusão das artes, a produção científica e cultura jurídica brasileira, o desfile na Marquês de Sapucaí são mecanismos em que as condições da desigualdade racial se reproduzem.

Estamos falando de pessoas que não precisam fazer qualquer esforço para receberem os holofotes e atenção da esfera penal. O ato de ver é algo que impregna a retina, a imagem chega ao cérebro e o "eu" dará sentido ao que vejo: "o olho que vê é o olho da tradição".

E assim caminham as coincidências para que representações de conhecimento popular adquirido pela repetição irrefletida e que não foi testado empiricamente sejam reproduzidos nos ambientes do sistema de justiça criminal. São frases curtas, ritmadas, ricas em imagens reforçadas que sintetizam um conceito a respeito de uma regra social ou moral e arbitrariamente sem compromisso com a realidade: territórios determinantes para a condenação antecipada, garantia da ordem pública para prisão preventiva, personalidade voltada para o crime, a própria categoria controversa de "bandido".  Construções da sociedade de "consensos" com a ideia de que as normas e valores sociais são compartilhados por todas as pessoas. Fato é que as relações raciais não são óbvias para todos, assim como a ligação estreita entre a religiosidade e a bateria da Portela.

Através da criação de uma linguagem, Mbembe identifica a experiência da população negra em relação às demais, porque a prática colonial se espalhou em escala global e opera com a democracia. São criadas vantagens para alguns e desvantagens para outros na economia, nas políticas públicas, no sistema jurídico e filosófico que organizam nossa sociedade ocidental permeada por relações de poder.

Em 2023, foi sancionada a Lei 14.532, que incluiu a injúria racial na Lei de Crimes Raciais, a punição se tornou mais severa. A Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância (CIRDI), instrumento internacional que passou pelo mesmo processo de Emenda Constitucional, foi promulgada pelo decreto nº 10.932, de 10 de janeiro de 2022.  Apesar desses instrumentos recentes, há um curso de permanências no sistema de justiça criminal para retirar a complexidade das condutas de racismo: construção de hipóteses fáticas menos qualificadas e escassas em detalhes.

O tempo que este fato, racismo, leva para atravessar os corredores do sistema de justiça criminal é normalizado na retina treinada pela consolidação do Estado Brasileiro, com especificidades que foram totalmente invisibilizadas em nome de um projeto de nação de mesma natureza: branco normativo e monocultural. A audiência, ou seja, o "ato de ouvir" pode ser mais um produtor de desigualdades controlando socialmente aquele corpo, pois são saberes, tradições, hábitos, comportamentos, costumes e modos de fazer de um único grupo. Este mecanismo reforça a existência de espaços e lugares de reprodução das relações do cotidiano que confundem o público e privado.  

Há um cenário que coloca a Europa no centro da narrativa como um modelo exclusivo de produção de lugares e de conhecimento. Certa feita um jatinho particular de interior tão alvo quanto tranquilo e aconchegante, levantou voo. A bordo apenas uma jovem, olhos castanhos esverdeados ou verdes acastanhados - tanto faz, nas alturas o Brasil é mais europeu. E assim o conhecimento é fragmentado e isso cria obstáculos para uma compreensão mais robusta de fenômenos sociais. E as consequências de uma história recontada é televisionada pelos ditos vencedores.

Descolonizar as relações raciais é uma ferramenta para divorciar rotinas de procedimentos, criando um idioma para retirar qualquer mecanismo formal ou informal que concorra para o resultado de vulgarização, para ao final ser considerado irrelevante.  A CIRDI busca a releitura das experiências cotidianas ao tipificar a discriminação racial indireta, racismo religioso e ambiental, restrições a locais, discriminações correlatas, entre outros. A convenção se soma a instrumentos que discutem a adequação da política pública para pessoas destinatárias dos holofotes da vigilância, como o Estatuto da Igualdade Racial.

Não há como traçar essas permanências sem considerar as contingências e subjetividades imbricadas. É necessário descolonizar as decisões que conformam as relações de poder existentes desde processos históricos particulares, realidades e arranjos locais. Ao fim e ao cabo é divorciar rotinas de procedimentos, o geral do particular. Este mecanismo não é algo que a democracia posicionará em lugar no qual possa ficar oculto, pois o racismo é um fato social com um conjunto de valores, normas culturais e, estruturas sociais que transcendem o indivíduo e contribuem para o controle social. O campo da experiência e da expectativa da população negra, além da estatística, traz para a cena a necessidade de tirar as cortinas da utopia europeia e direcionar a observação para a raiz dos fenômenos. "Isso acontece diariamente numa cidade muito perto daqui".

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Referências

REDE LIBERDADE. Letalidade policial e seletividade penal: reflexões produzidas por corpos matáveis: Ed. dos Autores, 2023. Disponível em: https://redeliberdade.org.br/letalidade-policial-e-seletividade-penal-reflexoes-produzidas-por-corpos-mataveis/

MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: n-1 edições, 2018.

REDE LIBERDADE. Letalidade policial e seletividade penal: reflexões produzidas por corpos matáveis: Ed. dos Autores, 2023. Disponível em: https://redeliberdade.org.br/letalidade-policial-e-seletividade-penal-reflexoes-produzidas-por-corpos-mataveis/. Acesso em: 10 jul. 2024.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Culpabilidade por vulnerabilidade. Tradução Fernanda Freixinho e Daniel Raizman. Revista Discursos Sediciosos, Rio de Janeiro, n. 14, p. 31-48, 2004.

Carmen Lucia Lourenço Felippe

Carmen Lucia Lourenço Felippe

Advogada criminalista. Mestranda em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense. Coordenadora Estadual do IBCCRIM Rio.