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Combate à revitimização através do protocolo para julgamento com perspectiva de gênero

Este texto é o primeiro do "Especial IBCCRIM Julho das Pretas".

sexta-feira, 19 de julho de 2024

Atualizado às 14:08

A estrutura patriarcal expõe mulheres à revitimização. Instrumentos como o Protocolo para Julgamento com perspectiva de gênero são fundamentais para evitar esse fenômeno, conforme demonstra o presente artigo.

1 Reflexos do patriarcado no sistema de justiça brasileiro

Indiscutivelmente, as raízes da sociedade patriarcal, que se estabeleceu no Brasil desde o período colonial, ainda influenciam, de maneira muito marcante, as relações de gênero, sendo nítido que o poder e a autoridade são mantidos pelo homem, de forma desigual e injusta, nas mais diversas esferas, conservando-se uma estrutura machista, que vem sendo combatida, ao longo dos anos, por grupos que militam em favor da igualdade entre homens e mulheres.

Por óbvio, é imprescindível a resistência a essa estrutura. A desconstrução do patriarcado é urgente. Não é mera garantia de justiça para as mulheres. Mais que isso, é garantia da dignidade da pessoa humana. Movimentos sociais, mudanças legislativas, conscientização pública e mudança de postura no contexto do poder judiciário são ações necessárias, tanto como medida de reparação quanto como forma de assegurar uma sociedade justa e igualitária, nos termos do que preconiza a Constituição Federal.

Ao longo dos anos, alguns instrumentos têm sido utilizados para a concretização dessas mudanças no Brasil. A Lei 11.340/06, por exemplo, significou um grande avanço no que diz respeito à coibição da violência doméstica e familiar contra a mulher. A referida lei reconhece a vulnerabilidade feminina, de modo que a denominação a ela atribuída guarda estrita relação com um caso específico de violência contra mulher, cuja vítima foi a  cearense Maria da Penha Maia Fernandes, que, enquanto dormia, foi atingida por tiro de espingarda desferido por seu então marido, o economista M.A.H.V. (CUNHA E PINTO, 2024).1

O caso da Maria da Penha durou 18 anos entre a data do oferecimento da Denúncia (setembro de 1984) e a data em que o agressor foi realmente preso após trânsito em julgado da sentença condenatória (setembro de 2002). A situação chegou à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que, dentre outras deliberações, em relatório publicado no ano de 2001, determinou que o Brasil pagasse uma indenização de 20 mil dólares em favor da vítima.

Frise-se que a mera existência da Lei Maria da Penha, que cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, buscando prevenção, punição e erradicação da referida violência, não é o suficiente para as mudanças estruturais das quais a sociedade brasileira verdadeiramente necessita.

No âmbito do poder judiciário, por exemplo, não se pode considerar que a Lei tenha trazido profundas mudanças. Isso porque, como bem reflete Janaina Rigo Santin:²

[...]... o direito penal trata as mulheres da mesma forma como os homens a tratam [...]. Assim, acaba-se por força do costume, acusando a vítima e não o autor . Há uma seletividade de vítimas, somente sendo dignas de proteção as mulheres honestas. Ao invés de se julgar o autor do fato, julga-se a vítima, a qual sofre total interferência na sua intimidade, passando a ter sua vida, sua casa e sua família investigadas, com vistas a desvendar a sua reputação a fim de comprovar se não contribuiu para o crime.2

Prova do exposto acima é o caso Mariana Ferrer, modelo e influenciadora digital, que, em 2018, afirmou ter sido vítima de estupro em uma festa realizada em um beach club de Florianópolis - Santa Catarina.  Durante a audiência, Mariana foi extremamente desrespeitada e ofendida verbalmente pelo advogado do Acusado, que, na ocasião, expôs dados da vida pregressa da jovem, imagens retiradas das suas redes sociais sem qualquer relação com o processo, como se as suas escolhas pessoais pudessem justificar a violência por ela sofrida.

A repercussão do caso motivou a promulgação da Lei nº 14.245/20213, mais conhecida como Lei Mariana Ferrer, que entrou em vigor no ordenamento jurídico brasileiro em 22 de novembro de 2021.  

A referida lei, dentre várias inovações que visam preservar a dignidade da vítima, inseriu no Código de Processo Penal, o art. 400-A, segundo o qual, na audiência de instrução e julgamento, em especial nas que apurem crimes contra a dignidade sexual, todos os envolvidos no processo deverão zelar pela integridade física e psicológica da vítima; e o art. 474-A, que estabelece que durante a instrução em plenário todos os sujeitos envolvidos no processo devem respeitar a dignidade da vítima. Importante observar que ambos os dispositivos preveem a responsabilização civil, penal e administrativa em caso de descumprimento.

A verdade é que a revitimização (ou vitimização secundária) é um dos grandes problemas que afetam a mulher que sofre violência, como se verifica abaixo:

A primária tem origem a partir das consequências diretas do próprio crime. A vitimização secundária é resultante da atuação das instâncias formais de controle social que podem se concretizar por meio de um tratamento desrespeitoso por parte das autoridades com a vítima, da demora no processamento do feito, das cerimônias degradantes a que são submetidas as vítimas [...]  (ROSA; MANDARINO, 2017, p.319)4

Observe-se, ainda, que:

Vitimização secundária refere-se ao tratamento dado pelo sistema de justiça criminal. Aqui se analisa a intimidação gerada pelo próprio processo e os dissabores experimentados pela vítima nas situações em que ou não acreditam em sua versão ou são vulneradas pelas instituições em que em verdade deveriam lhe oferecer apoio. (SAAD-DINIZ, 2019,p .132)5

Nos termos do Art. 15-A da Lei 13.869/2019 (Lei do Abuso de Autoridade), quando o Agente Público expõe a vítima a esse processo de revitimização, comete Violência Institucional.

Para evitar que tal prática se perpetue, além da promulgação de leis como as que já foram citadas, novas posturas devem ser adotadas por todos os envolvidos no sistema de justiça, a fim de garantir às vítimas um tratamento digno e, no mínimo, acolhedor.

Para tanto, tem-se, desde 2021, um importante instrumento, advindo dos esforços de um Grupo de Trabalho do Conselho Nacional de Justiça, qual seja o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero. É mister que o conhecimento acerca desse protocolo seja expandido e, acima de tudo, que ele seja posto em prática, pois não se pode tolerar a vitimização secundária quando tudo que se espera é a proteção da vítima e a punição daquele que viola sua integridade e a expõe à vitimização primária.

2 Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero: surge uma nova esperança (?)

Através da Portaria do CNJ, de nº 27, de 2 de fevereiro de 2021, um Grupo de Trabalho ali instituído, elaborou o protocolo para julgamento com perspectiva de gênero6, a fim de colaborar com a implementação das políticas nacionais estabelecidas pelas Resoluções (também do CNJ) 254 e 255, com o intuito de promover, respectivamente, o enfrentamento à violência contra as mulheres pelo Poder Judiciário e o incentivo à participação feminina no poder Judiciário.

O referido documento é uma espécie de "roteiro" para ser utilizado pelos Magistrados e, "colateralmente", por todos os demais envolvidos no sistema de justiça, a fim de que se possa combater práticas que reproduzam o patriarcado, o machismo, o sexismo, o racismo e a homofobia, dentre outras questões que se interseccionam a esses temas.

O Protocolo é dividido em três partes: na primeira seção, apresentam-se conceitos relacionados a sexo, gênero, desigualdades e direito; já na segunda parte, apresenta-se um "Guia para Magistradas e Magistrados", onde é mostrado o "passo a passo" para que se julgue com um olhar sempre atento às vulnerabilidades. Já na terceira seção do protocolo são trabalhadas as questões de gênero específicas dos ramos da justiça.

Registre-se que o CNJ, através da Resolução 492, de 17 de março de 2023, "institui obrigatoriedade de capacitação de magistrados e magistradas, relacionada a direitos humanos, gênero, raça e etnia, em perspectiva interseccional, e cria o Comitê de Acompanhamento e Capacitação sobre Julgamento com Perspectiva de Gênero no Poder Judiciário e o Comitê de Incentivo à Participação Institucional Feminina no Poder Judiciário."

Portanto, é inquestionável que a atuação de advogadas e advogados deve estar pautada na exigência da aplicação do protocolo aos casos em que mulheres figurem como vítimas. Esse é um instrumento que só terá eficácia se todos estiverem verdadeiramente envolvidos com a sua prática, até que se torne rotina e que situações que exponham as vítimas à revitimização sejam erradicadas.

Abaixo, algumas sugestões de atuação da advocacia frente ao uso do protocolo:

a) Condutas no atendimento: registrar as particularidades da cliente; associar a realidade da cliente às diretrizes do protocolo; esclarecer à cliente todos os sus direitos enquanto vítima; garantir à cliente uma atuação pautada na busca de igualdade;

b) Elaboração de petições: criar um tópico chamando atenção à Recomendação 128/2022 CNJ; citar trechos do protocolo; abordar as Interseccionalidades; relacionar o Protocolo à Constituição Federal;

c) Postura nas audiências: citar o Protocolo sempre que perceber a vitimização secundária; pedir a aplicação do protocolo às testemunhas e se for mulher advogada, ou estiver dentro de qualquer padrão de vulnerabilidade, pedir que o protocolo também seja aplicado, caso sinta suas prerrogativas sendo violadas.

Conclui-se que a luta pela erradicação do patriarcado no sistema de justiça ainda é embrionária. Para fortalecer tal luta, a casa da justiça deve promover decisões e comportamentos justos, e não a complementação da violência sofrida antes do caso ali chegar. Enquanto houver diretrizes, haverá esperança, pois elas são a linha traçada rumo à efetivação de uma sociedade verdadeiramente justa e igualitária.

________

1  CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Violência Doméstica: Lei Maria da Penha- 11.340/2006 - comentada artigo por artigo

2 SANTIN, J.R; GUAZELLI, Maristela Piva; CAMPANA, Joziele Bona; CAMPANA, Liziane Bona. A violência doméstica e a ineficácia do direito penal na resolução dos conflitos. Revista da Faculdade de Direito (UFPR), Curitiba- PR, v.39, p. 83, 2003

3 BRASIL. Lei 14.245 de 22 de novembro de 2021. Altera os Decretos-Leis nos 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), e 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), e a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995 (Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais), para coibir a prática de atos atentatórios à dignidade da vítima e de testemunhas e para estabelecer causa de aumento de pena no crime de coação no curso do processo (Lei Mariana Ferrer).

4 ROSA, Larissa; MANDARINO, Renan Posella. o lugar da vítima nas ciências criminais: política criminal orientada para a vítima de crime. In: SAAD-DINIZ, Eduardo (org.). O lugar da vítima nas ciências criminais. São Paulo: liberArs, 2017. p. 315-326. Disponível em: https://bit.ly/3yJmhHs. Acesso em: 10 de julho de 2024.

5 SAAD-DINIZ, Eduardo. Vitimologia corporativa. São Paulo: Tirant Lo Blanch Brasil, 2019.

6 BRASIL, Conselho Nacional de Justiça. Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero. Disponível em: http:// www.cnj.jus.br e www.enfam.jus.br. Acesso em: 10 de julho de 2024

Luanna Dalya Andrade Lago Campos

Luanna Dalya Andrade Lago Campos

Licenciada em Letras, Advogada, Pós graduada em Advocacia Criminal, coordenadora do IBCCRIM/MA, membro da Comissão de Advocacia Criminal OAB/MA, Mentora em cursos de prática em advocacia criminal.