COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas

Circus

Crônicas e reflexões.

Adauto Suannes
sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Homens ou lobos?

  "Faculdade de Direito da UnB abre sindicância para apurar pichações homofóbicas" Migalhas "Decretada a prisão preventiva de padre de 84 anos. Uma câmera escondida gravou o padre a praticar ato sexual com uma criança frente ao altar da paróquia de Arapiraca". Dos jornais Trata-se de um tema tão tormentoso, que eu me havia prometido não tocar nele. Entretanto, diante das inevitáveis cobranças que venho recebendo e tendo em vista o número incalculável de bobagens ditas ou escritas sobre o assunto, aí vai o que penso sobre ele. Uma bobagem a mais não fará grande diferença. Quando nos explica o sentido da palavra sensual, Antonio Houaiss nos diz que o adjetivo se refere àquilo "que desperta desejos sexuais, que excita a sensualidade; lúbrico, lascivo, voluptuoso". E que é sensualidade? Diz o mesmo dicionarista: "propensão exagerada para os prazeres do sexo; lubricidade, volúpia, lascívia, luxúria; sensualismo". O qualificativo exagerada foi lá posto por ele, não por mim, mesmo porque tal qualificação parece inadequada, a julgar pelo que tanto o Larousse como o Webster nos informam a respeito do que ocorre entre os anglófonos e os francófonos. Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, quando cuida do assunto, é mais contido: "1. Qualidade de sensual. 2. Lubricidade, volúpia, lascívia, luxúria; sensualismo. 3. Amor aos prazeres materiais". Como se vê, começamos bem, pois se eles, que foram quem foram, não se entendem, que faremos nós, que deles dependemos? Certa ocasião um colega advogado, bem mais moço do que eu, que trazia consigo um dessas revistas "para homem", abriu-a e mostrou-me a fotografia de uma mulher pelada, uma dessas beneméritas que se dispõem, por alguma soma de dinheiro supostamente razoável, a posar para "fotos artísticas", como dizem os filhos delas aos colegas de escola. "Você não acha fulana de tal um mulherão?" E eu, com o cinismo que Deus me deu: "Pra mim isso é apenas uma folha de papel". A conversa ficou nisso. Quando, pai responsável de três filhos que sempre me considerei, achei que era hora de submeter-me a uma vasectomia, não contava com um efeito colateral: eu deveria, alguns dias depois, submeter meu esperma à curiosidade dos laboratoristas, que deveriam certificar, para minha tranquilidade, que, de fato, a cirurgia havia eliminado o risco de vir ao mundo um filho inesperado. Nem com um fato surpreendente: a atendente do laboratório me entregou a tal latinha e uma revista "para homem", algo que me constrangeu enormemente. "Minha filha, se nesta idade eu me excitar com o que está numa página de revista, melhor examinar meu cérebro". Ela, pelo jeito abobalhado exibido, não entendeu nada. Lembrei-me então de uma velha anedota: um homem, nas mesmas circunstâncias, foi lá para dentro, levando a latinha e a revista. Voltou algum tempo depois, indagando da atendente: "A senhorita pode ajudar-me? Já tentei com a mão direita, tentei com a mão esquerda e nada!". A moça indignou-se: "O que é que o senhor está pensando de mim?". E ele esclareceu: "Estou pedindo que a senhorita me abra a latinha". Em 2001, o jovem escritor Dennis Lehane, autor de livro que se converteu em aclamado filme dirigido por Martim Scorcese e recentemente exibido entre nós, havia publicado outro livro, cujo tema central é a pedofilia. Filmado por Clint Eastwood, concorreu a seis prêmios do Oscar, dois dos quais merecidamente ganhos: melhor ator principal para Sean Penn e melhor ator coadjuvante para por Tim Robbins. Evidentemente não vou narrar as histórias do livro ou do filme, que dizem respeito a três garotos amigos, cujas vidas tomam caminhos diversos, como é comum acontecer, e que acabam por cruzar-se, em circunstâncias dramáticas. Um deles, vítima de sevícias sexuais, torna-se um adulto inseguro, que a vizinhança considera uma pessoa estranha e que os amigos de infância parecem culpar pelo que então lhe ocorrera. Um deles acabará dizendo que o tal episódio não deixou marcas apenas em um deles, mas em todos os três. Paralelamente a isso, há investigações policiais, quando a filha de um deles é brutalmente morta. "Investigações" porque, insatisfeito com a morosidade da investigação oficial, o pai da garota resolve investigar por sua conta, como certamente muitos de nós deseja fazer em circunstâncias semelhantes. Qual o resultado disso? Se me chamassem novamente para dar palestra em Escola de Magistratura, de Advocacia ou de Polícia, eu simplesmente exibiria o filme do Clint e, em seguida, abriria um debate com o tema "que você faria no lugar do personagem com quem se identificou?". Por outro lado, como se sente um sacerdote vendo-se num filme caseiro mantendo relações sexuais (seja com uma mulher, um homem, uma avestruz ou uma tartaruga, pouco importa) diante de um altar? Em primeiro lugar, violando um dever básico do sacerdócio católico, como é o celibato, cuja existência não cabe aos sacerdotes discutir, mas acatar ou pendurar a batina. Em segundo lugar, sabendo ter como assistente privilegiado ninguém menos do que o mesmo Jesus Cristo que esse mesmo sacerdote afirma estar presente na hóstia consagrada, cuja presença é indicada pela luzinha vermelha acesa. De outra parte, que motivos levam um adulto a sentir-se sexualmente atraído por uma criança, seja menino ou menina? A pedofilia, que o Houaiss define como "perversão que leva um indivíduo adulto a se sentir sexualmente atraído por criança", criança essa que ele define como "ser humano na fase da infância, que vai do nascimento à puberdade", puberdade essa que ele define como "período de transição entre a infância e a adolescência", adolescência essa que ele define como "fase do desenvolvimento humano caracterizado pela passagem à juventude", juventude essa que ele define como "período da vida do ser humano compreendido entre a infância e o desenvolvimento pleno do seu organismo", pleno desenvolvimento esse que ele não diz quando ocorre, não é privilégio de padres, como é de todos sabido. De motorista de ônibus escolar a professor de judô ou universitário, casos muitos desses já houve envolvendo adultos e crianças. Eu conheço um Delegado de Polícia que, lá se vão alguns anos, mandou dois parrudos investigadores devolverem a certo professor e juiz de Direito um mimo que ele havia dado a um jovem, que nem aluno seu era, mas que, para azar do conhecido mestre e magistrado, era filho do tal delegado, com uma advertência: "da próxima vez que assediar o garoto Vossa Excelência ficará sem os dentes". Isso para não falar de intimidades entre padrastos e enteados ou mesmo entre pais e filhos, como aparece na Vara da Infância com alguma frequência. Essa forma perversa de desafogo da libido, como se pode dizer elegantemente, pouco ou nada tem a ver com a sensualidade, acima conceituada. É como se um sacerdote se sentisse excitado sexualmente diante da figura da Virgem Maria. Que fazer com tais pessoas? Alguns afoitos propõe hoje a adoção de uma tal "castração química", solução que certamente, se aprovada no Congresso Nacional brasileiro, seria fatalmente barrada no Supremo Tribunal Federal, por ser aviltante. A pena de prisão pouco ou nada contribui para a "ressocialização" de um pedófilo, da mesma forma que jamais contribuiu para que alguém se livrasse da quimio-dependência. Nada sei de soluções razoáveis para tão grave problema, até porque não sou psiquiatra. O que sei é que, nada obstante o inegável avanço das ciências humanas, a distância que separa homens de lobos está cada vez menor. É claro que a homossexualidade não tem nada a ver com isso, pois diz respeito a pessoas maiores que fazem suas escolhas a respeito de sua sexualidade. Mas, para muitos cretinos, cuida-se do mesmo assunto. Fazer o que?
sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Provas de suficiência

  "As questões ortográficas podem ser resolvidas sem dificuldade com o dicionário. Mas, para isso, é preciso ter desconfiômetro. Duvidar sempre faz mal para a saúde, mas bem para o texto". Josué Machado, Língua sem vergonha "O alcandor do Conselho Especial de Justiça, na sua postura irrepreensível, foi correto e acendrado no seu decisório. É certo que o Ministério Público tem o seu lambel largo no exercício do poder de denunciar, mas nenhum labéu o levaria a pouso cinéreo se houvesse acolitado o pronunciamento absolutório dos nobres alvazires de primeira instância. A sentença apelada é de enche-mão e végeta. Merece, por isso, o imbatível confirmatório dessa Corte". Parecer do Ministério Público em segundo grau,citado por Rui Cavallin Pinto, in "MP - Histórias e historietas, A linguagem do foro" "Todo texto é uma máquina preguiçosa pedindo ao leitor que faça uma parte do seu trabalho". Umberto Eco, Seis passeios pelos bosques da ficção O Oscar tem um filho, Tomás. O Tomás tem um filho, João. O João tem um filho, Pedro. O Pedro tem um filho, Antônio. O Antônio tem um filho, Francisco. E o Francisco tem uma dúvida. De fato, ele sabe dizer qual é a relação parental entre ele e Pedro, que é o pai do seu pai. Daí pra cima, nada! Oscar, por exemplo, avô do seu avô, o que é dele? E Tomás? Eu disse que ele tem uma dúvida, mas retifico. Ele tem duas dúvidas. Sua namorada é a Maria Aparecida, que só fala em casamento. A dúvida dele: se eles se casarem, ela será sua parente? Se for, qual o grau desse parentesco? Pensando bem, suas dúvidas são três. Eis a terceira: se a noiva se chamasse Dilma e se ele se casasse com ela, ela seria sua parente ou sua parenta? É que o Francisco entrou para a faculdade de Direito (quem entra na faculdade é o carteiro, mas ali não assiste os professores, até porque quem assiste os professores é o médico, já que os alunos assistem às aulas dos professores) e está encontrando alguma dificuldade em entender o que alguns professores dizem. Por exemplo, quando o professor fala em "bem fungível" o Francisco deve incluir aí a sua Cidinha ou não? O professor mostrou a diferença entre coisa útil, coisa necessária e coisa supérflua. A serra elétrica que o Chico tem em casa é coisa necessária, útil ou supérflua? Embora esteja no primeiro ano, ele trabalha como "fórum boy" no escritório de advocacia de um amigo de seu pai. O tal advogado entrou com uma ação junto à Vara de Família e pediu a concessão antecipada da tutela reclamada, a ser concedida "inaudita altera pars". Você acha que isso está certo? Pior: o curador de família deu um parecer dizendo que os argumentos da pretensão vêm de encontro à opinião da doutrina. O advogado quer saber se o promotor concordou ou discordou dele. Que lhe parece? Não bastasse isso, a juíza que recebeu os autos mandou retificar a petição inicial porque está dirigida ao "Exmo. Sr. juiz de Direito" e ela é uma "Exma. Sra. juíza de Direito". Como você faria no futuro para que outra juíza não se abespinhasse com um cabeçalho que ela reputa machista? Perguntas semelhantes a essas eu costumava apresentar a meus alunos, no século passado, muitos dos quais ainda viam nas petições do escritório onde trabalhavam coisas como "E.R.M." e "Nestes termos pede deferimento", conforme me relatavam no intervalo de aulas. Tem sentido isso? Que pode me acontecer se eu omitir essas velharias? Já na primeira aula eu dava uma indicação de como seria o curso. Entregava a cada um deles uma folha de papel com algumas indagações, precedidas de uma observação: "Leia com atenção toda a folha e depois faça o que vem determinado". Depois disso vinham os itens a serem obedecidos: 1. Nome: 2. Matrícula: 3. Data de nascimento: 4. Se você for do sexo masculino, assobie a primeira estrofe do Hino Nacional Brasileiro 5. Se você nasceu em outro Estado da Federação, fique de pé e erga o braço direito 6. Se você tiver filhos, fique de costas para a lousa 7. Se você trabalha, além de estudar, erga os dois braços 8. Se você fala uma segunda língua, bata palmas 9. Se você for viúvo, rasgue a folha 10. gora que leu tudo, atenda apenas as primeiras duas determinações Eu não fazia isso por sadismo, mas para que aprendessem que um advogado, um promotor, um juiz ou mesmo um delegado de polícia somente deve iniciar o seu trabalho depois de ter conhecimento de todos os dados do problema a ser por ele equacionado. Ou passará a mesma vergonha daqueles alunos que, açodadamente, foram atendendo às determinações por mim feitas antes de ler a última e caíram no ridículo. Além disso, ficava a lição de que, antes de utilizar uma palavra ou uma expressão incomum, especialmente se for em língua estrangeira, o profissional do Direito deve certificar-se do seu exato sentido e de sua correta grafia, até porque há alguns conceitos ou redações vulgares que não correspondem ao conceito ou à redação técnicos, como se dá com a palavra "tataravô". Quem é seu tataravô? Tataravô ou tetravô? E seu trisavô? E chega de fazer perguntas. Agora quero saber das respostas. No fim da próxima semana darei as notas aos alunos que voluntariamente acederam a este desafio. Como diz o Umberto Eco, "que problema seria se um texto tivesse de dizer tudo o que seu receptor deve compreender. Não terminaria nunca". Mãos à obra, pois.
sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Ecos do mensalão

Ao ensejo do encerramento do mais importante julgamento já realizado por um tribunal do país, cabe a pergunta: que lembranças deixará o processo 470 naqueles que acompanharam as quase 53 sessões passo a passo? Muita gente, em primeiro lugar, concluirá que, positivamente, juiz é uma criatura especial. Veja, por exemplo, o início de uma sessão plenária no STF. O presidente manda o secretário ler a ata da sessão anterior e o secretário repete o mesmo bla bla bla que havia lido na sessão anterior, igual à da sessão da outra semana, igual à da sessão do mês passado. Em suma, perda de tempo, pois a finalidade da ata é registrar o que ocorreu na sessão, da mesma forma como a ata de uma assembleia deve conter um resumo do que aconteceu na assembleia respectiva. Ou seja, quem presidiu, quem saiu mais cedo, quem chegou mais tarde, quem aparteou, que providências tomou o presidente, quem puxou a orelha de quem, quem trocou sopapos com quem e por aí vai. Resultado: o presidente do STF é que acaba lendo o resumo da sessão anterior, especificando o conteúdo dos votos proferidos pelos julgadores. E o secretário ali ao lado, como uma estátua, ganhando sem trabalhar. Outro ponto a notar é que, nos órgãos colegiados, quando relator e revisor estão de acordo e o vogal, isto é, o juiz que não é relator nem revisor, pretende votar no mesmo sentido, ele simplesmente adere aos votos já proferidos, até mesmo para economizar tempo. No processo 470, porém, talvez pela sua repercussão, não é raro um vogal derramar-se em considerações para dizer aquilo que já havia sido dito anteriormente por um colega. Como dizem os juízes de uma turma julgadora, em cochicho, quando o advogado assoma à tribuna para falar sobre o óbvio: "Tomando o nosso tempo para dizer que a chuva molha". No que diz com os jornalistas e seus comentários sobre o julgamento, valha repetir o que disse um colega deles: "Jornalista é alguém que deve falar sobre o que sabe e também sobre o que não sabe". Quando o comentário sobre um processo será feito por escrito, é comum o seu autor consultar previamente operadores do Direito para bem calçar-se, quer depois indiquem ou não o nome do profissional escolhido, como sabemos todos os que já fomos consultados a respeito de temas jurídicos por jornalistas leigos. Quando o comentário vai ao ar, porém, a coisa fica mais complicada e o jornalista acaba mostrando sua ignorância sobre o tema. Não houve uma apresentadora de TV célebre, já falecida, que, antes de sapecar-lhe um selinho, perguntou ao famoso Dr. Zerbini, pai dos transplantes de coração no Brasil, se aquele que recebeu o coração de outro homem se apaixonaria, só por isso, pela viúva do doador? Dia desses, uma simpática jornalista mostrava sua indignação diante do fato de relator e revisor divergirem tão profundamente que um condenava e outro absolvia. "Que Justiça é essa?" indagava ela do paciente professor de Direito ali ao lado. Minha cara jornalista, se fosse para prevalecer a opinião (o voto dado por um juiz, em inglês, chama-se opinion, para não deixar dúvida quanto à carga de subjetivismo que há nele) do relator, qual o sentido de colocarem-se onze juízes dias e dias ali sentados, a ouvir toda aquela arenga? No Brasil, os julgamentos nos tribunais exigem, em regra, o voto de três juízes, sendo excepcional que o relator decida um recurso individualmente. Aliás, certa ocasião escandalizei uma audiência, composta majoritariamente de estudantes de Direito, com um exemplo bastante ilustrativo. Um réu é denunciado sob a acusação de haver subtraído a carteira de A, a caneta de B e o relógio de C. O juiz singular, talvez um Dr. Barbosa, acolhe integralmente a denúncia e, assim, condena o réu pela prática dos três furtos. A defensoria apela. Para o relator, a prova quanto ao furto da carteira é satisfatória (beyond a reazonable doubt, como se diz alhures). Quanto aos demais furtos, porém, o apelante deve ser absolvido. Para o revisor, o fato cuja prova está além de qualquer dúvida razoável é apenas a relativa à caneta de B, devendo o réu ser absolvido quanto ao mais. Já o juiz vogal, discordando de seus colegas, mantém a condenação apenas no que diz com o furto do relógio de C. Feita a narrativa, desafiei os ouvintes a dizerem qual seria o resultado do julgamento a ser proclamado pelo presidente da sessão. Estão discutindo até hoje. No caso do mensalão, há um complicador: são mais de 30 réus, acusados da prática de vários crimes, tais como peculato, corrupção ativa, corrupção passiva, formação de quadrilha e branqueamento de capitais. Combinando-se o número de réus e o número de crimes, teremos tantas possibilidades que só um matemático para enumerá-las. Não seria, portanto, impossível que nenhum dos onze votos coincidisse completamente com outro. Basta ver o bate-boca sobre se este ou aquele expediente caracteriza lavagem de dinheiro ou mero exaurimento do crime de corrupção passiva. Para não falar na tal "teoria do domínio dos fatos", que nem advogados sabem muito bem o que seja. Aliás, nenhum dos atuais membros da Corte foi juiz criminal, o que explica, por exemplo, certa dificuldade na hora de fixarem as penas. Ministro do Supremo não foi feito para isso. Isso para não falar se a reunião de quatro ou mais pessoas para o cometimento de determinado crime caracteriza crime de quadrilha ou se, para isso, deve haver um propósito genérico de cometer crimes vários. A popularização do STF (para não falar em "vulgarização") chegou a tal ponto que um motorista de táxi, travestido de humorista de terceira categoria, permitiu-se imaginar a seguinte situação: certo magistrado comenta com um colega que ontem, ao chegar do serviço, surpreendeu a esposa nua no quarto, tendo ao lado dela outro homem, também nu. E o que você fez? Indaga o colega, aflito. Evidentemente nada. Que provas eu teria para acusá-los de adultério? teria respondido o magistrado. Perguntei-lhe se sabia o que queria dizer solus cum sola in solitudine. Ele não sabia. Fosse ele um técnico e teria lamentado, como eu, o golpe de mão tentado dar pelo relator, com apoio de um dos colegas, quando, surpreendido a basear a pena proposta em legislação posterior ao fato criminoso, que elevou o mínimo dela de 1 para 2 anos, dando como argumento que, qualquer que fosse o mínimo legal a ser considerado, a pena final não ultrapassa o máximo previsto na lei anterior, que deve incidir no caso. O que ele quer dizer, com apoio de um colega, é que a lei perde tempo ao exigir que o juiz fundamente a pena final a ser aplicada, pois essa pena já está adrede fixada pelo juiz, sendo a referência feita por ele aos elementos levados em conta para isso, o tal sistema trifásico, mera formalidade. Chegar à mesma pena final quer adotando-se a pena inicial de 1 ano quer adotando a pena inicial de 2 anos será valer-se de um faz-de-conta. Para não dizer um embuste, o que a maioria impediu que ocorresse, com direito a desabafos como "Vossa Excelência parece advogado dos réus" e "E Vossa Excelência parece esquecer que não é mais promotor". Como quer que seja, porém, esse julgamento é, de fato, um marco não apenas no âmbito do Poder Judiciário, mas de toda a nação, pois diz, fundamentalmente, com o aprimoramento de nossa Democracia. Já era tempo de pôr-se um fim a essa sujidade que está por aí. Esperemos que a faxina se alastre pelos demais patamares. Como disse, com toda propriedade, a ministra Cármen Lúcia, que atualmente preside o Tribunal Superior Eleitoral, ao votar pela condenação de políticos, "Eu não gostaria que o jovem brasileiro desacreditasse da política pelo erro de um ou de outro". Muito embora seja próprio do poder, qualquer poder, tender a corromper e ser corrompido, como disse há tanto tempo o político John Emerich Edward Dalberg-Acton, o conhecido Lord Acton, é preciso, tal como afirmou, com toda propriedade, aquela ministra, deixar claro que isso não passa de mera tendência, cabendo aos cidadãos de bem impedir que essa tendência se concretize em uma prática rotineira.
sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

O fim do mundo

  "Anunciaram e garantiram que o mundo ia se acabar". Assis Valente Estamos chegando a 21 de Dezembro de 2.012, quando, finalmente, segundo os sábios Maias, o mundo vai acabar. A discussão em torno do fim do mundo é uma conversa de bêbados semelhante à discussão sobre a existência ou inexistência de Deus. Os antigos diziam que isso era o mesmo que discutir o sexo dos anjos. Começa que, lá como cá, há necessidade de estabelecerem-se previamente os conceitos que serão utilizados na discussão. Que você entende por "anjo"? Que você entende por "Deus"? Que você entende por "mundo"? No caso concreto, se considerarmos "mundo" apenas o nosso planeta, a conversa é uma; se considerarmos que a palavra se refere a todo o universo, a conversa evidentemente será bem outra. Vá aos dicionários e veja o que eles dizem. Aliás, há quem já fale em multiversos e não apenas uni. Se eu lhe perguntar se você gosta mais das mangas pequenas do que das mangas grandes, qual será sua resposta? Se eu lhe disser que na carpintaria da esquina há um sargento prendendo uma tábua na bancada, o que você imaginaria? Pois saiba que ali, unindo a serra elétrica à rede de força, há um cabo que nunca foi soldado. Deu pra entender? Eu falava em frutas ou em indumentária? Em militares ou em aparelhos de carpintaria? Para limitar o alcance do nosso bate-papo de botequim, aceitemos que a palavra "mundo" se refira apenas a nosso planeta. Há quanto tempo nasceu ele? Os sumérios, que se estabeleceram entre os rios Tigre e Eufrates (a Mesopotâmia, ou "terra entre rios" de nossas aulas de História da Civilização, lembra?) muito antes de muita coisa acontecer ali (5.300 a 2.330 a.C.), dentre outras coisas inventaram a escrita, com a vantagem de valerem-se de tábuas de barro, em lugar de eliminar florestas como passou a fazer a "civilização", muitíssimo antes do nascimento do Gutenberg, para publicar livros feitos de papel. Eles descobriram que o céu era uma colcha de veludo escuro, com alguns furinhos, em número de sete. Era o primeiro contato dos homens com os deuses: Vênus, deusa do amor; Marte, deus da guerra; Saturno, que devorava os próprios filhos, ad cautelam tantum, pois, muito antes do Vinicius, já pregava: "Filhos? Melhor não tê-los"; Júpiter, o manda-chuva e manda-raios; o Sol e a Lua. Esses deuses foram concretizados nos dias da semana (settimana ou "sete manhãs"), em diversas línguas: Saturday (dia de Saturno), Sunday (dia do Sol), Monday (dia da Lua), Mardi (Martis dies ou dia de Marte), Mercredi (Mercurii dies ou dia de Mercúrio), Jeudi (Jovis dies ou dia de Júpiter), Vendredi (Veneris dies ou dia de Vênus), para não falarmos no Sábado (dia de Sabbat ou dia de repouso e oração) e no Domingo (dies dominicus ou dia do Senhor). E, no centro de tudo, nós e nosso umbigo. À medida que a civilização suméria caminhava para o desaparecimento, como ocorre com todos os seres vivos, surgia não apenas uma outra civilização, mas um novo estilo de governo: a demagogia, baseada num casamento entre o divino e o profano, tendo como pano de fundo a certeza de que o povo, antes como hoje, gosta mesmo é de pão e circo. Panis et circensis, como se dizia no falecido Tropicalismo. De fato, o rio Nilo apresentava fluxos e refluxos constantes. Subindo as águas, elas fecundavam áreas enormes, que se tornavam agriculturáveis quando baixavam as águas, o que significava fartura de alimento. A esperteza do governante (faraó) levou-o a assumir os méritos pelo fenômeno climático, pois ele era nada mais nada menos do que a divindade encarnada. Isso durou mais de 3.000 anos, 100 anos em média para cada dinastia. E nós ainda reclamamos dos poucos anos em que somos tapeados pelos nossos atuais demagogos! Fugindo os escravos hebreus do Egito, liderados, ao que se diz, por Moisés, o exemplo aprendido com o faraó frutificou, sendo posto em prática pelo líder dos fugitivos. Aos trancos e barrancos a ciência avançou, driblando as resistências religiosas e tentando explicar a história de nosso mundinho com base em algo que não fossem as revelações feitas aos iluminados, fossem eles faraós, fossem pastores de rebanhos, televisivos ou não, fossem churrasqueiros de incréus. Assim, muito embora a grande explosão inicial (o tal big bang, que, na realidade, nem fez barulho nem era grande) tenha ocorrido há cerca de 13,7 bilhões de anos, o nosso Sol teria surgido há "apenas" 4,6 bilhões de anos. Dele se destacaram pedaços, que foram estabelecendo suas rotas, uns mais e outros menos próximos da "nave-mãe". Dois desses corpos tinham rotas incompatíveis. Hoje eles são identificados por Terra e Theia, um nome de que você talvez jamais tenha ouvido falar. Quando o Sol comemorava aí os seus 50 milhões de anos, aqueles dois planetas colidiram, espalhando cacos e poeira para todo lado. A rotação da Terra, cujo volume a tornava bem maior do que a extinta Theia, era tão grande que, a exemplo do que faz uma máquina de produzir algodão doce num parque de diversões, catalisou aqueles elementos ultra-aquecidos, que, contatando entre si, foram-se amalgamando, até reunirem-se em um único corpo celeste. Estava criada a Lua, presa à Terra por um fio invisível chamado "força gravitacional". Agora, o nosso planeta não se esforçava apenas para produzir o seu giro em torno de um eixo, carregando seu peso. Foi-lhe adicionado o peso da Lua, o que levou a velocidade da sua rotação a reduzir-se a 1/6 do que era antes, algo que os cientistas, muito tempo depois, chamariam de "dia". Como tem sido a vida desse nosso "mundo" desde então? Tem sido uma eterna competição entre vida e morte. Aquela bola de fogo inicial foi esfriando graças, principalmente, a impactos de meteoros gelados, quando ainda não havia uma "rede de proteção" contra isso envolvendo o planeta, a tal camada de ozônio. Paradoxalmente, com as erupções vulcânicas, a Terra foi esfriando, pois as nuvens fantásticas que se formavam barravam a chegada de raios solares, levando ao congelamento a água existente. A era do gelo, ao contrário do que se supõe, não foi uma só, nem foi tão divertida como sugere um simpático desenho animado de nossos dias. Os seres vivos que foram aparecendo ao longo do tempo acabavam desaparecendo, ante a inclemência desse sobe/desce da temperatura. Nem a família dos mega sauros aguentou. Depois de passearem pelo planeta por mais de 160 milhões de anos (até no Brasil e na Argentina foram encontrados fósseis relativos a eles, pois não havia oceano separando continentes), bastou que um meteoro colidisse contra a Terra, há 65,5 milhões de anos, onde hoje é Yucatan, no México, para que a alteração climática acabasse com cerca de 80% dos seres vivos existentes na Terra. Só a cratera produzida tinha 160 quilômetros de diâmetro. Chegando ao mês de dezembro, estamos às vésperas do 6° fim do mundo ocorrido em nosso planeta, o que quer que isso signifique. A afirmação de que o homem está, com sua irresponsabilidade, destruindo o planeta é mais uma demonstração de nossa megalomania e egocentrismo. A irresponsabilidade do homem está diminuindo a quantidade de oxigênio respirável por aqueles que, como nós, necessitam dele. Ocorre que nem todos os seres vivos dependem do oxigênio para viver, o que significa que nós iremos e eles ficarão. Estamos aumentando o número de seres humanos de forma irresponsável, mesmo sabendo ser impossível produzir alimento para 7.000.000.000 de bocas. Estamos concentrando riqueza, em lugar de distribuí-la, criando formas violentas de sua obtenção, seja considerando-se os crimes individualmente, seja considerando-os a nível de nação contra nação. Ou seja, nós estamos destruindo a própria humanidade, a nossa própria espécie, coisa que nenhum ser vivo fez até hoje. Estamos simplesmente confirmando o que diz a sabedoria popular: Deus perdoa sempre, o homem perdoa às vezes, mas a Natureza perdoa nunca. O que surpreende é que, se desde a colisão entre Theia e a Terra (cerca de 4,5 bilhões de anos atrás) até este momento se tivesse passado apenas um dia, ou seja, 24 horas, o aparecimento do Homo sapiens teria ocorrido quando faltavam apenas três segundos para a meia-noite. Ou seja, o meio ambiente da Terra teria vivido 23 horas, 59 minutos e 57 segundos sem o ataque perpetrado pela nossa "civilização". Simplesmente incrível essa nossa capacidade patológica de destruir, que o velho Freud associava à tanatofilia, ou paixão pela morte! Pelo sim, pelo não, aí vai o texto. Sei lá onde estarei no dia 21.  
sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Identidade cultural

  "Cerca de 700 pessoas participaram na tarde desta quarta-feira (7) da segunda passeata do dia contra a corrupção na avenida Paulista, em São Paulo. Como no ato da manhã, que reuniu 500 pessoas, a manifestação foi convocada pela rede social Facebook". Folha online, 8/9/2011 Tenho notado algo em que talvez você já terá reparado: o número de filmes que têm sido feitos tendo a África como personagem, se assim posso dizer. Não é isso que me chama a atenção, até porque não tenho interesse especial por aquele continente. É que tais filmes poderiam muito bem ter sido feitos no Brasil, que ninguém notaria, pois o cenário é o mesmo. Ruas sem calçamento, negros e negras, talvez alguns quase-negros, como diz o Caetano, aqueles arremedos de casas, crianças barrigudinhas correndo por todo lado. E palmeiras na praia, vergadas pelo vento, lembrança do tempo da Pangéia. A história é o de menos, pois o que fica é o distanciamento cultural entre aqueles personagens e a Europa ou os Estados Unidos, com personagens de filmes mais palatáveis, se é que posso usar a palavra. Quem se importa com miséria é intelectual, dizia-se outrora. Minha amiga não concorda com minhas observações. "Eu não me considero uma africana" diz ela, exalando o inconfundível perfume estrangeiro que deve ter comprado no free shop e agitando umas tantas pulseiras de metal amarelo que bem pode ser ouro. Quem duvidaria? Pois experimente passar uma tarde na Praça da Sé, desafio. "Deus me livre! Se eu fizer isso, me internem. Aquela gente horrorosa que passa por ali, bêbados caídos por toda parte, números circenses de quinta categoria, os eternos leitores de bíblia, aqueles cabelos desgrenhados, dentes mal alinhados e faltando alguns, roupas medonhas e aquela mulatice que não termina mais. Nem pensar!". Acontece que aquilo é que é o verdadeiro Brasil, minha amiga. O Jardim Europa onde resides cercada por grades e guardas em todas as esquinas da calçada, todos com o mesmo tipo de corte de cabelo e mesma cor de roupa, com walkie-talkie o tempo todo na mão, estrangeirismo, aliás, que ficou desatualizado depois da invenção do celular, esse sim um autêntico anda-e-fala, é um oásis num deserto de miséria, de que, com muito esforço, uma parcela de nossa população se vai libertando. Quantos brasileiros se vestirão como você? Freqüentarão os restaurantes que você freqüenta? Fará as viagens que você faz? Terá a pele da cor da tua? Os olhos azuis da cor dos teus? Quando você pensa na África do Sul você pensa nos loiros ou nos negros? "A troco de quê esse discurso de uma esquerda retrô? Coisa mais superada!". O escândalo dos mensalões foi aquilo que foi e o chamado povo brasileiro continuou a preparar-se para o carnaval; o escândalo sanguessuga deu no que deu e o povo discutindo o preço dos ingressos do Fla-Flu. O próximo capítulo desse esquerdismo avant la lettre é uma emenda constitucional para contemplar a possibilidade de reeleições em número ilimitado. Nada mais democrático. "Ou você tem dúvida a respeito da seriedade da apuração da mais recente eleição ocorrida no país?" conclui ela. É claro que estou provocando aquela que o Nelson Rodrigues chamaria de granfina de nariz de cera, até porque no tempo dele não se falava em para-choque de silicone. Milton Santos, geógrafo brasileiro respeitado no Exterior, que era negro, entrou no avião, aqui no Brasil, com destino aos Estados Unidos. A comissária de bordo, toda gentil, cobriu-o de salamaleques. Ditos em inglês. E ele: "É assim mesmo. Negro entrando em avião, no Brasil, só se for estrangeiro". Já o meu dileto amigo Paulo Rangel, ex-membro do Ministério Público do Rio de Janeiro, negro careca que lembra jogador de basquete norte-americano, vinha, há alguns anos, em seu BMW pela avenida Copacabana. Uns policiais militares estendem o braço, mandando parar. Revólver na mão, fazem o Dr. Rangel sair do carro, mãos sobre o capô do veículo, pernas abertas, e dão-lhe uma revista geral. Pedem seus documentos e tomam um susto inimaginável. "Aí você lhes deu voz de prisão, por abuso de autoridade?" pergunta alguém na roda de chope. "Claro que não. Negro em BMW no Brasil ou é cantor, ou jogador de futebol ou traficante" exagera ele. "Como não sou cantor conhecido nem jogador famoso, os homens foram pelo quod plerumque accidit", sentenciou o ex-promotor, todo culto, hoje desembargador por óbvio merecimento. Pois aí está: os negros, que se libertaram há pouco mais de 100 anos, têm tudo para impor-se culturalmente, deixando de ser considerados cidadãos de segunda categoria, independentemente de proteção legal, de que os bons alunos não necessitam. Eu mesmo, que nada tenho de negro, pois descendo de espanhol e italiana, estudei a vida toda com bolsa de estudos. Isso apenas me fez dedicar-me mais aos estudos do que certamente eu me dedicaria se alguma vez meu pai tivesse pago minha mensalidade escolar. Não estudei de graça por ser inferior, mas, ao reverso, porque alguém percebeu que aquele menino, cuja família não dispunha de recursos financeiros, mereceria uma chance. E eu, como qualquer negro, qualquer branco, ou qualquer mulato deve fazer, não desperdicei a oportunidade que me foi dada. Essa discussão, que é interminável, ganha neste começo de novo século um novo e precioso dado: a classe operária acha que, de fato, chegou ao Paraíso. O resultado é pessoas desabituadas ao diálogo reivindicarem direitos e mais direitos, esquecidas de que todos nós que vivemos em sociedade equilibramo-nos nos dois pratos da balança: o que prevê nossos direitos e o que estatui os nossos deveres. As mulheres, que chegaram ao mercado de trabalho sendo exploradas pelos empregadores, hoje não aceitam qualquer tipo de trabalho. Cozinhar, lavar roupa e arrumar casa alheia? Nem a peso de ouro. Quando alguma delas aceita ser entrevistada, inverte-se a ordem natural das coisas e ela passa a entrevistar a candidata a patroa, indagando quais os hábitos dos moradores da casa. "Quantos jantares a senhora oferece a convidados num mês?" indagou uma das candidatas. "Além do preço da condução, quero vale-refeição" exigiu outra. "Você fala algum outro idioma?" perguntou a patroa a uma candidata, indignada diante da arrogância da pretensa "secretária do lar", como algumas querem ser chamadas. O Egito acaba de demonstrar que é possível fazer revolução sem derramar (muito) sangue, algo digno de ser imitado. Mas, quantos anos tem o Brasil? Quantos anos tem o Egito? Na Líbia e em vários outros países, com população muitíssimo inferior à do nosso, milhares de pessoas vão às ruas, dispostas a pagar o preço do atrevimento. No Brasil também. Para pedir a liberação da maconha. Talvez alguém tenha a bela ideia de, em sinal de protesto, um dia plantar vassouras verde e amarelas em Brasília. Quer apostar que algum comerciante local acaba levando pro depósito aquela tentação colorida? Deve ser efeito da água do lago Paranoá.
sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Santos advogados e advogados santos

  "OAB vai ao STF para excluir advocacia da lei de lavagem de dinheiro". Migalhas, 26 de Novembro de 2012 Eça costumava dizer que era advogado, "como toda a gente", mesmo porque era filho de José Maria d'Almeida de Teixeira de Queirós, magistrado, formado em Direito por Coimbra e que, ironia das ironias, foi juiz instrutor em processo movido contra o escritor Camilo Castelo Branco, de quem Eça viria a tornar-se amigo e colega na arte da escrita. Como advogado foi um excelente romancista e diplomata nas horas vagas. Também foi advogado Afonso Maria Antônio João Cosme Damião Miguel Gaspar de Liguori, que nasceu em Nápoles, nos idos de 1.696. Diz a lenda que, de tão inteligente, formou-se em Direito precocemente e, já aos 19 anos, prestava as provas de admissão à Advocacia, algo que já existia no século XVII, saiba a senhora. Desgostoso em face de uma derrota inesperada de um cliente numa causa que antecipadamente considerara ganha, em lugar de desconfiar da honestidade do juiz preferiu ver naquilo a mão de Deus. Retirou-se da Advocacia e passou a dedicar-se a ações sociais. Acabou canonizado, como Santo Afonso de Liguori, depois de haver fundado a Congregação dos Redentoristas que, aliás, em nosso país, são, entre outras coisas, os responsáveis pela Basílica de Nossa Senhora Aparecida, dita padroeira do Brasil. Antes, porém, deixou ele um decálogo com aquilo que imaginava serem os deveres do Advogado: I - Não aceitar causas injustas, porque são perigosas para as suas consciência e dignidade. II - Não defender uma causa usando de meios ilícitos. III - Não cobrar do cliente senão aquilo que com ele convencionou. IV - Tratar da causa, que lhe fora afeta, com zelo e dedicação. V - Estudar conscienciosamente a defesa dos direitos do cliente. VI - Não prejudicar o cliente com negligência ou demoras, e, se por acaso causar-lhe algum prejuízo, deve ressarci-lo, sob pena de pecar contra a Justiça. VII - Implorar o auxilio de Deus, porque Deus é o primeiro defensor da Justiça. VIII - Não aceitar causas superiores a seu talento ou às suas forças. IX - Ser sempre justo e honesto no exercício da profissão. Para outros biógrafos, o tal decálogo não era composto de nove mas de apenas sete mandamentos: I - Nunca deve o advogado patrocinar uma causa injusta: a isso se opõem sua honra e sua consciência. II - O advogado não deve defender uma causa, ainda que justa, com meios injustos e ilícitos, devendo suas defesas ser verídicas, sinceras e respeitosas. III- O advogado é obrigado a estudar as peças do processo, a fim de tirar delas os argumentos mais eficazes para a defesa de suas causas, fazendo-o com tanto cuidado como se tratasse de seus próprios interesses. IV- Para lograr êxito em sua defesa, o advogado deve implorar o auxílio de Deus, primeiro protetor da justiça. V- O advogado merece censura se encarrega de processos que ultrapassem seus talentos ou suas forças, ou se ele prevê que o tempo lhe faltará para preparar a defesa de sua causa e mesmo assim a aceita. VI- Se, por sua demora ou negligência, o advogado perde a causa, ou acarreta prejuízo a seu cliente, ele é obrigado a indenizá-lo, além de restituir-lhe o valor de despesas supérfluas. VII- A justiça e a probidade devem ser as duas companheiras do advogado, que deve amá-las como a menina de seus olhos. Gabriel de Rezende Filho, Professor de Direito Processual na Faculdade do Largo de S. Francisco, que em seu manual transcrevia esses deveres, ironicamente ali anotava: "Se Afonso de Liguori cumpriu, como advogado, todos estes mandamentos, mereceu certamente ser canonizado". Outro santo ligado ao Direito foi Ivo Hélory de Kermartin, que viveu no século XIII. Foi membro do Tribunal Eclesiástico de Paris e, nessa condição, era tido como um habilíssimo conciliador. Numa época em que era heresia falar em droit de l'homme et du citoyen, Ivo de Kermartin era mais absolvidor e esquerdista do que um Ranulfo Mello Freire. Daí o apelido que lhe deram, possivelmente os promotores de Justiça, um dos quais talvez de nome Barbosá, de advogado dos pobres. Curiosamente, talvez por desconhecer História, alguém sugeriu um juiz para patrono da classe dos Advogados, quiçá nomeado (por quem?) em obediência a algum quinto constitucional, a partir de uma lista em que Afonso de Liguori não poderia estar ausente. E até o nosso Ruy botou sua colher de plástico nesse angu quente, baixando, agora sim, um decálogo de dez mandamentos: I- Não desertar a justiça, nem cortejá-la. II - Não lhe faltar com fidelidade, nem lhe recusar o conselho. III - Não transfigurar da legalidade para a violência, nem trocar a ordem pela anarquia. IV - Não antepor os poderosos aos desvalidos, nem recusar patrocínio a estes contra aqueles. V - Não servir sem independência à Justiça, nem quebrar da verdade ante o poder. VI - Não colaborar em perseguições ou atentados, nem pleitear pela iniquidade ou imoralidade. VII - Não subtrair-se à defesa das causas impopulares, nem à defesa das perigosas quando justas. Onde for apurável um grão, que seja, de verdadeiro direito, não regatear ao atribulado o consolo do amparo judicial. VIII - Não proceder, nas consultas, senão com a imparcialidade real do juiz nas sentenças. IX - Não fazer da banca, ou da ciência, mercatura. X - Não ser baixo com os grandes, nem arrogante com os miseráveis. Servir aos opulentos com altivez e aos indigentes com caridade. Note-se que, enquanto lá tínhamos decálogos de nove ou sete mandamentos, aqui é um decálogo de doze, pois dois deles são dúplices. Já a nossa Ordem dos Advogados, atenta à desejável canonização dos colegas de Eça, Afonso e Ruy, está sendo mais pragmática: vamos canonizá-los em vida! Para quem, como juiz, viu safadezas serem praticadas não só por advogados como por juízes e promotores, até mesmo com perda do cargo, que dizer? Eu mesmo fui mandado, mal ingresso, substituir certo juiz, afastado do cargo e depois aposentado, porque no dia 1° de Abril de 1964 hasteou no fórum, a meio pau, o chamado auriverde pendão. Em outra ocasião assumi certa comarca depois que o titular foi removido para a capital por haver sido descoberto que ele era sócio de um advogado na comarca. "Logo na comarca, doutor?" talvez lhe tenha dito o corregedor. Fui mais tarde promovido para outra comarca, com a incumbência específica de "restaurar o prestígio da Justiça", depois que o titular foi aposentado por recusar-se a pisar no fórum durante o dia. Só trabalhava à noite o famigerado "Doutor Chiquinho Vagalume". Isso para não falar de casos envolvendo bacharéis e promotores, como o advogado que fez acrescentar no texto da procuração, abusivamente, cláusula assegurando a ele 30% de honorários. Bastava colocar uma régua sobre aquele papel para verificar (era texto datilografado) que a tal cláusula fora inserida fora do alinhamento do texto primitivo e datilografada em outra máquina. Depondo nos autos do incidente de falsidade suscitado então, a secretária dele assegurou que aquele tipo de letra pertencia à máquina dele e não à dela. Ou o procurador de Justiça que tinha cinco ou seis modelitos de parecer (repito: ainda não havia computador), com afirmações genéricas, que a secretária punha nos autos de acordo com a indicação dele. As parcas se revoltaram e eu, como relator, recebi, de uma só vez, três processos criminais que, embora cada um com suas peculiaridades, tinham pareceres praticamente idênticos assinados pelo salafrário, que, em face disso, foi convidado a aposentar-se. Cito, a propósito, um caso bem significativo: certo desembargador do TJ/SP, homem educado, além de corretíssimo, no intervalo da sessão desculpou-se junto aos colegas que o acompanhavam, um dos quais este escriba, visto não acompanhar-nos no lanche. "É que um fazendeiro amigo meu veio trazer-me um dossiê que, segundo ele, comprova o envolvimento do juiz, do promotor, advogados e do síndico numa falcatrua de milhões, envolvendo desvio de bens da massa num processo de falência". E, certamente antecipando o que iria dizer ao tal fazendeiro: "No envolvimento dos demais eu acredito, mas do juiz eu duvido, embora não o conheça". Lá, com manifesto exagero, bastava cobri-lo com a toga para converter um pecador em santo; agora se pretende que a conversão se opere por força do uso da beca. Curioso é que o tal desembargador, grande latinista, sabia melhor do que nós todos, que ubi homo ibi peccatum. A quem se pretendeu beneficiar, por exemplo, com a sobrecarga de processos originários no Supremo Tribunal Federal? A quem se pretende beneficiar tentando impedir que o Ministério Público, entidade independente, apure irregularidades, deixando-se isso apenas ao critério da Polícia, entidade subordinada ao Poder Executivo, onde as mazelas pululam? Positivamente, a OAB tem coisa mais importante com que ocupar-se, cabendo a cada advogado defender-se, como qualquer um de nós, quando eventualmente for alvo de investigação abusiva.
sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Voto sem vista

"Supremo prepara pente-fino contra distorções em penas" Dos jornais Senhor Presidente Eminentes pares Ouvi com a máxima atenção os votos divergentes dos ilustres relator e revisor no que diz com a fixação da pena cabível ao réu ora sob julgamento, cabendo-me opinar sobre eles. Preliminarmente, peço vênia para repetir as palavras de um grande penalista brasileiro, o saudoso Heleno Fragoso, quando afirmava que é preferível ter más leis com bons juízes do que maus juízes para aplicarem leis boas, sendo certo que, como queria o emérito Glasson, "não basta que os juízes sejam honestos; é necessário que eles provem que o são". Ou, dito de outro modo, como o fez Warlomont, "a motivação não deve ser unicamente considerada como algo que dá confiança na pessoa do juiz, mas como um privilégio concedido a ele pelo legislador de justificar sua sentença diante de seus jurisdicionados". Nosso Sidnei Benetti pondera que "a decisão realiza um silogismo perfeito cuja premissa maior é a lei e cuja premissa menor são os fatos, seguindo-se a extração da conclusão, que é a decisão judicial". Mas adverte: "E assim realmente é. Mas muitas vezes a matéria não se exaure no exame da legislação, assim como, no sistema anglo-americano, a interpretação não estanca na análise dos precedentes". Longe está isso de ser uma tarefa mecânica, diz ele. "A formação da decisão, em si, é ato aninhado nas profundezas do sistema psíquico do juiz, cujas trilhas, nos casos realmente complexos, nem o próprio juiz possui meios de reconstituir". É esse amálgama de elementos tão díspares que constituirá o fundamento da decisão. "O silogismo jurídico objetivo em verdade toma corpo para o juiz especialmente no momento da concretização da decisão no escrito, na motivação, com a qual obedece ao disposto na Constituição Federal e nos Códigos de Processo, textos que, em verdade, apenas explicitam a necessidade de fundamentação inerente à etiologia de qualquer julgamento", diz o mesmo autor, com sua autoridade de Ministro de um de nossos Egrégios Tribunais Superiores. E por que isso deve ser assim? Porque, se "até os ditadores, nos regimes discricionários, sentem o imperativo de expor ao público as razões dos seus decretos, o que fazem, geralmente, antepondo-lhes consideranda justificativos", como dizia o Ministro Mário Guimarães, com maior razão isso há de ocorrer em um regime democrático, em que os atos judiciais, tanto quanto os administrativos, emanam de um agente do Estado que recebe seus proventos não só para decidir desta ou daquela maneira, mas, principalmente, para dizer os motivos pelos quais decide desta e não daquela maneira, como exige a Constituição Federal no artigo 92, IX e X. E se ao prejudicado se assegura o direito de impugnar os fundamentos da decisão, como diz ela no artigo 5°, LV, como fazê-lo sem os conhecer? Como impugnar fundamentos meramente subjetivos? Daí dizer o insigne Gaston Jèze: "Quando um agente público está obrigado, segundo a lei, a motivar seu ato, deve fazê-lo, sob pena de nulidade do ato. Assim, a ausência de motivos passa a ser um vício radical. Essa lacuna faz supor que o motivo determinante não é um motivo de interesse público". Além dessa suposição, há outra, igualmente relevante, segundo o já referido Mário Guimarães: "A fundamentação é que dá a prova de haver o juiz tomado conhecimento do processo. Ora, se não houve o estudo, ludibriou-se o princípio das duas instâncias, que assenta na vantagem de ser a causa examinada por juízes de hierarquias diferentes". No que diz com o presente processo, a lei penal não só exige que seja aplicada a pena adequada ao caso como que seja fundamentada adequadamente a fixação dela, demorando-se o julgador em três fases sucessivas, quando ele levará em conta vários critérios, indicados no artigo 59 do Código: "a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social, a personalidade do agente, os motivos, as circunstâncias e consequências do crime, bem como o comportamento da vítima". "Na fixação da pena de multa", diz o Código, "o juiz deve atender, principalmente, à situação econômica do réu". Em face de tais elementos, pode-se, então, fugir do subjetivismo? Se pudéssemos estabelecer uma escala da culpabilidade, considerando a culpa mínima de grau 1 e a culpa máxima de grau 10, quando saberíamos que determinado réu atingiu o grau 8 e não o grau 5 de culpa? Os olhares de Vossas Excelências, pulando sucessivamente do relator para o revisor já nos dão a resposta. Como falarmos dos antecedentes do presente condenado? Nasceu ele de uma gravidez desejada? Os psicólogos, como sabemos, entendem ser tal antecedente fundamental para tentarem compreender a conduta de alguém, máxime se desviante. Era filho único, daqueles sempre mimados? Ou tinha vários irmãos, disputando com eles o carinho talvez escasso dos pais? Como foi sua infância? Que exemplos teve na juventude? Como foi sua iniciação sexual? Que escolas frequentou? Que empregos teve? Que funções exerceu? Nada disso foi trazido a seus votos por relator e revisor. Fala-se, é verdade, que este réu já se envolveu com a polícia anteriormente. O que isso significa? Maus antecedentes? Ou esse envolvimento conduziu a uma sentença condenatória, ou a uma sentença absolutória, ou a sentença nenhuma. Se ainda não houve sentença, isso não pode ser considerado mau antecedente, pois ele não só é presumido inocente pela Constituição como pode até vir a ser absolvido por negação de autoria. Se foi absolvido, ainda que por carência de provas, continua inocente quanto a tal crime, não mais por mera presunção constitucional, mas por força de uma decisão judicial. Se foi condenado, isso também não pode ter influência nenhuma neste processo, pois a pena correspondente àquele processo foi lá fixada e não pode ser alterada para mais, o que ocorreria se aquela outra decisão fosse levada em consideração na fixação da pena deste. Aliás, a chamada reincidência técnica, constante do Código Penal, é claramente inconstitucional pois o plus aqui aplicado sobre a pena base não decorreria dos fatos aqui julgados, mas dos fatos que culminaram na sentença condenatória anterior. Isso é violação do antiquíssimo "Ninguém pode ser processado duas vezes pelo mesmo fato", que os de língua inglesa chamam princípio do "no double jeopardy", ou "a procedural defence that forbids a defendant from being tried again on the same (or similar) charges following a legitimate acquittal or conviction", que foi acolhido pelo International Covenant on Civil and Political Rights, assinado pelo Brasil e entrado em vigor aqui aos 24 de Abril 1992 (clique aqui), com força de emenda constitucional, a teor do contido no parágrafo 3° do artigo 5° de nossa Magna Carta, especialmente no que diz com o artigo 14, inciso 7, do mencionado Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. Outrossim, que sabemos da conduta do réu? É bom vizinho? Maltrata seus empregados? Participa regularmente das reuniões de condomínio? Embriaga-se? Dá calote nos credores? Enfim, como se relaciona com a companheira, com os filhos e com os vizinhos? Não sabemos. Algum psicólogo foi ouvido para nos indicar como é a personalidade do réu? É ele introvertido? Extrovertido? Tende à depressão? À euforia? Seu humor é bipolar? Se soubéssemos responder a essas indagações, isso nos levaria a aumentar a pena básica ou a diminuí-la? Nem relator nem revisor esclareceram isso. Para não esgotar a paciência de Vossas Excelências passo para a pena de multa proposta por relator e revisor, cujos valores também não coincidem. Diz a lei que se deve levar em conta principalmente a situação econômica do réu. Quanto ganha ele em média por mês? Quais os seus gastos médios? De que se compõe o seu patrimônio? Quantas pessoas estão sob sua dependência econômica? Não tenho resposta para nenhuma dessas questões. Sendo assim, ou peço vista dos autos, prolongando ainda mais o tempo já enorme da tramitação do processo, ou dou um voto na base do "em face do jeitão do condenado, fixo a pena em tantos anos, tantos meses e tantos dias", ou, menos por justiça e mais por equidade, invoco o velho e revelho in dubio pro reo e, pragmaticamente, fixo a pena final no mínimo legal. Aliás, por falar em equidade, figuremos que a turma julgadora fosse composta de 7 juízes e, desses, 2 absolvessem o réu. Os 5 restantes discutiriam qual a pena justa, pois se teria entendido que os juízes que o absolvem não podem "logicamente" fixar pena. Como aqui se disse, "quem absolve não impõe pena". Sendo isso assim, figuremos que, enquanto 2 deles fixam a pena no mínimo, 3 fixam a pena no máximo. Destarte, pela "maioria lógica" de 3 votos, a turma julgadora, composta de 7 juízes, condenaria o réu a cumprir a pena máxima. Entretanto, se, estrategicamente, os juízes que haviam absolvido o réu resolverem mudar o voto, o que podem fazer até a proclamação do resultado final, para também condená-lo, certamente aderirão aos que fixam a pena no seu mínimo legal. Resultado: a turma, por sua verdadeira maioria de julgadores, imporia ao condenado a pena mínima. Eis o paradoxo: se dois juízes da turma absolvessem o réu, ele receberia a pena máxima; se todos os membros da turma o condenassem (o que, logicamente, é mais grave do que absolver), ele receberia a pena mínima. E aproveito o ensejo para deixar o meu protesto no que diz com a competência originária deste Tribunal para julgar processos criminais: nós aqui não chegamos ao mais alto grau da Magistratura para estarmos a brincar de juízes originais. Nossa função social deve ser, antes e acima de tudo, a de concretizarmos os preceitos constitucionais, o que estamos deixando de fazer ao longo deste famigerado processo, com prejuízo enorme a número incalculável de pessoas, ao perdermos nosso tempo em análise de provas e cálculos matemáticos, operações que gritantemente refogem de nosso carisma institucional, enquanto se acumulam na secretaria recursos e mais recursos que só serão julgados quando este terminar de ser julgado. Até porque, a meu enfoque, o contido no artigo 102, letras b e c, é incompatível com o contido no parágrafo 3° do artigo 5° da Constituição Federal, implantado em 2004. É como voto.
sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Mundo maluco

  "O primeiro grande desafio de nossa época é assegurar a superioridade da pessoa humana na escala das prioridades políticas, econômicas e sociais. A pessoa humana não é prioridade nos dias atuais. Não é prioridade dos governos, não é prioridade das sociedades, não é prioridade dos indivíduos. A pessoa humana foi posta num lugar secundário, ou terciário, num lugar de inferioridade. Por isso, um dos grandes desafios do nosso tempo é repor a pessoa humana no centro das preocupações, promover o reconhecimento da pessoa humana como valor acima dos demais valores." Dalmo de Abreu Dallari "Odeio os indiferentes. Como Friederich Hebbel, acredito que viver significa tomar partido. Não podem existir os apenas homens, estranhos à cidade. Quem verdadeiramente vive não pode deixar de ser cidadão e partidário. Indiferença é abulia, parasitismo, covardia, não é vida. Por isso odeio os indiferentes. A indiferença é o peso morto da história. É a bala de chumbo para o inovador, é a matéria inerte em que se afogam freqüentemente os entusiasmos mais esplendorosos, é o fosso que circunda a velha cidade e a defende melhor do que as mais sólidas muralhas, melhor do que o peito dos seus guerreiros, porque engole nos seus sorvedouros de lama os assaltantes, os dizima e desencoraja, e, às vezes, os leva a desistir do gesto heróico." Antonio Gramsci, La città futura Eu vou dirigindo o carro pela avenida Moema, na correta mão de direção e em velocidade compatível com o local. Não sou um primor de motorista, mas tomo minhas cautelas, até porque já não tenho idade para qualquer tipo de exibicionismo. Um carro, vindo em marcha-a-ré, saindo do estacionamento situado na lateral esquerda da rua, considerando o sentido do meu automóvel, colide contra este. Eu desço do carro ligeiramente furioso e passo a despejar alguns insultos contra a motorista (sinto muito, mas era uma senhora) do veículo colidente, menos porque colidiu contra o meu e mais porque trazia no banco de passageiro dianteiro uma criança de uns cinco ou seis anos de idade, o que não é permitido. E sem usar cinto de segurança, duplicando sua infração. Quando chego mais perto e consigo vislumbrar algo além daquela nuvem escura com que alguns proprietários enfeitam o vidro do carro, descubro que a tal senhora mora no mesmo prédio que eu. E, mais: estaciona o veículo ao lado do meu. Acredite que foi. Não digo mais nada e volto para o meu automóvel. Dias depois ela encontra minha filha, a quem reclama da minha descabida grosseria. Pagar os estragos produzidos nem pensar. Naquela vez eu estava sozinho e, por isso, o leitor poderá imaginar o que bem entender a respeito da minha versão dos fatos. "Ninguém há de ser admitido a testemunhar em prol de si mesmo" diziam os antigos, por sinal em latim, mas eu já me esqueci como se diz isso naquela língua. Meses depois, tendo a Maria Helena ao meu lado, outro fato insólito. Eu estou dirigindo pela Alameda dos Anapurus, que admite tráfego em ambos os sentidos. Há um caminhão, que vinha em sentido contrário, parado em fila dupla, por motivos que desconheço. Quando estou emparelhando meu automóvel com ele, um veículo que vinha no sentido do caminhão passa para a contra-mão de direção, para ultrapassá-lo. Como fazê-lo se eu, que estou na correta mão de direção, já estou ali? A motorista (sinto muito, minha senhora, mas era uma bela senhorita) coloca a mão esquerda fora do veículo e faz um sinal indicando que eu deveria dar marcha-a-ré para que ela, vindo na contra-mão, por direitos que desconheço quais fossem, ultrapassasse o caminhão. Eu não tinha nenhum compromisso imediato, tanto quanto a Maria Helena. Tiro a chave do contato, exibo-a à tal motorista e deixo cair a chave no chão do carro. Ela, provocativamente, faz o mesmo com a chave do automóvel dela. A Maria Helena pensa em descer para argumentar com a infratora. Eu a convenço a ficar no carro e passamos a falar de coisas desimportantes, como a biografia do Kung-Fu-Tseu que ela estava lendo. Nossa conversa vai de vento em popa, com os dois carros estacionados frente contra frente, quando o tal caminhão resolve sair dali. A tal moça dá marcha-a-ré em seu automóvel, entra na correta mão de direção, emparelha o seu carro com o meu, freia e me brinda com um "saiba que você é um babaca!" O leitor dirá que estou delirando, mas eu invoco o testemunho de minha mulher. "Ambos estão delirando", dirá o exigente leitor, e eu não saberei mais o que dizer. Melhor, saberei. Nos primórdios da psicologia, os pesquisadores dividiam as chamadas "doenças mentais" em dois grupos: uma com menor gravidade, as neuroses; outra com gravidade maior, as psicoses. Para o Jung, por exemplo, tudo o que era perturbação mental merecia o nome de demência precoce. Logo ele, que tinha aquelas visões esquisitas, de que ele fala em sua autobiografia. Nada mal, no entanto, para quem estava apenas engatinhando. O próprio Jung, como sabemos, publicou vasta obra sobre isso, sendo que em um de seus livros ele se dispôs a classificar os seres humanos, de acordo com certas características. O conceito de introvertido e extrovertido começou ali, embora alguns detratores digam que ele se apropriou de estudos de um de seus discípulos. A psicose passou a dividir-se em esquizofrenia e paranóia e o Código Civil Brasileiro de 1916 generalizava tudo isso com aquele "loucos de todo gênero", que o tempo fez revogar. Com o surgimento da anti-psiquiatria e a firme atuação de Ronald Laing, descobriu-se que a coisa não era assim tão fácil. Muitas pessoas que estavam internadas em sanatórios, vivendo à custa de tranquilizante, poderiam perfeitamente levar uma vida produtiva, desde que lhe fossem ministrados determinados medicamentos, que as reequilibrassem quimicamente. Os mais velhos naturalmente se recordam dos efeitos do lítio sobre o doutor Ulisses Guimarães, que andava fazendo uns discursos meio sem nexo. "Derrubemos os portões dos hospícios!" poderia ser o bordão desses desbravadores. Nosso Machado de Assis, genialmente, já havia antecipado tudo isso, ao escrever seu notável O Alienista, nome que se dava a quem cuidava dos "alienados mentais", como o doutor Simão Bacamarte, o que quer que aquilo quisesse dizer. Se alienado era quem tinha um comportamento diverso do comportamento da maioria, até Jesus Cristo seria internado na Casa Verde, dirigida pelo doutor Simão Bacamarte. Laing era uma espécie de anti-doutor Bacamarte. Há pouco tempo descobriu-se que o termo "louco" não só é inconveniente como é impróprio. A ideia que todos temos é que por esse nome se devam indicar aquelas pessoas mal trajadas, barba por fazer, discurso desconexo e sempre babando na gravata. Descobriu-se que muitas pessoas que andam ricamente vestidas, jóias a mais não caber, rosto barbeado e prosa de vendedor de enciclopédia são o que se denomina, à falta de nome melhor, autênticos "psicopatas". Um Gengis Khan, que se orgulhava de não crescer grama por onde passassem seus cavalos, um chefe de Estado que determina o indiscriminado bombardeamento do terreno inimigo, um padre que não respeita a intimidade sexual de crianças e tantas outras pessoas com as quais convivemos diariamente se enquadram nessa categoria. A principal característica do psicopata é que ele não tem freios inibitórios, pois lhe faltam padrões éticos de conduta. Olhe à sua volta e encontrará pessoas que agem como se o mundo tivesse sido criado especialmente para elas. Essas pessoas estão intimamente convencidas de que as outras pessoas vieram ao mundo para servi-las. Suas gentilezas, seu sorriso, sua fala mansa são meros artifícios de que se utiliza para o único fim que têm em vista: levar vantagem em tudo, como sintetizou aquela infeliz propaganda de cigarro. Conheço alguns casos desses. Primeiro: um homem casado, morando no interior do Estado, devendo fazer um curso de um mês na capital, solicita a uma prima que o hospede durante esse mês. Ela, gentilmente, aceita a presença daquela incômoda visita, que passa a encher a casa com seus insuportáveis roncos noturnos, pois dorme na sala. Seis meses depois a prima praticamente o expulsa de casa, onde ele, pelo jeito, ficaria até ver reconhecido o usucapião que tinha em vista. Claro que os familiares comuns foram informados, por ele, da insensibilidade da prima, para a qual os compreensivos parentes passaram a virar o rosto. Caso dois: um casal, que tem uma filha adolescente, resolve que isso de trabalhar é uma grandessíssima besteira. Contando com a compreensão e o espírito de caridade de amigos e parentes, moram um tempo na casa deste, um tempo na casa daquele, sem jamais encontrar o emprego ideal para suas auto-reconhecidas qualificações profissionais. Quando todos os parentes e amigos se inteiraram do golpe, a filha teve de suspender as aulas da faculdade, trabalhando como balconista de loja para sustentar os três. O que não impede que a tal jovem aceite os convites das amigas para irem curtir uma balada quase todo fim de semana, ao fim da qual, coincidentemente, a tal moça descobre que esqueceu a carteira em casa. Dia desses, quando saíram da balada, ela descobriu que, durante o esfrega-esfrega, lhe haviam batido a carteira. "Ué, mas você não nos havia dito que esquecera a carteira em casa?" O psiquiatra Paulo Gaudêncio diz que lhe é menos difícil tratar de adultos que foram crianças carentes afetivamente do que de adultos que foram excessivamente mimados na infância. Mostrar a esses adultos que a vida é cheia de limites é algo quase impossível, pois foram criados por pais completamente ausentes ou excessivamente tolerantes e isso agora está ali plantado como uma sequóia. O pior, diz ele, é que esse quadro, quando se cristaliza e a pessoa se torna psicopata, é simplesmente incurável. Enganar, fingir ou matar são atos que para essas pessoas têm o mesmo significado. O tema exigiria muito mais tempo. Por hoje, fico por aqui. Antes de encerrar, alguns lembretes: não se esqueça de devolver o livro que aquele seu amigo lhe emprestou e você já leu. Ou recolher o papel amassado que você havia atirado pela janela do carro. Ou apertar o botão de descarga antes de sair do banheiro do shopping. Ou chamar um táxi para vir buscá-lo depois da próxima bebemoração com os amigos. Ou.
sexta-feira, 26 de outubro de 2012

A erudição nossa de cada dia

  "O filho do erudito disse sua primeira palavra: Progenitora!" Millôr Fernandes "Embora a noção de certo e errado tenda a diluir-se cada vez mais com o avanço dos estudos da linguística, pouca gente duvida de que devemos continuar nos orientando pela variedade culta da língua". Josué Machado, Língua sem vergonha Quando escrevi sobre o linguajar culto e a linguagem informal, houve quem me censurasse pela galhofa de falar em "Direito Favelário", o que sugeriria que os que moram nas favelas são criaturas culturalmente inferiores. Fui politicamente incorreto, enfim. Meu dileto amigo João Carlos Martins (clique aqui), cuja vida profícua dá não só livros como filmes, realiza um trabalho admirável na periferia de São Paulo, especialmente na favela de Paraisópolis (clique aqui), uma cidade de lata num dos bairros mais chiques desta capital. Graças a ele, milhares de jovens estão a descobrir a música clássica, talvez até como opção de vida profissional, como aqueles que já lograram obter bolsa de estudo e já se encontram no Exterior aprimorando-se. Por que "no Exterior"? Responda quem puder. Seria para perguntar: um fato como esse demonstra que todos os moradores da periferia conhecem música clássica? Quantos moradores de favela tocam violino? Sabem distinguir uma valsa de Chopin de um minueto do Mozart, se é que Mozart escreveu algum minueto? O leitor mais crítico certamente responderá que a maioria dos universitários também não saberia fazer tal distinção, o que nos levaria para o início do problema: o que se ensina hoje aos alunos, seja da escola primária, seja das universidades? Como se aprende a gostar de música clássica? No meu tempo de escola, para usar a surrada ressalva, aprendíamos latim e música no ginásio. Hoje a palavra ginásio está ligada apenas ao esporte e ali não se toca música, a não ser, vez ou outra, o hino nacional brasileiro, que os jogadores fingem cantar, mascando chiclete. Enquanto isso, de que modo os chamados "meios de comunicação" desempenham o seu papel de veículos de disseminação de cultura, como tantos deles se intitulam? Leio no caderno Paladar, do jornal O Estado de São Paulo, que certo vinho "é bem apinozado, expressivo, algo de tostado no nariz, madeira presente e bem integrada. Na boca tem boa acidez, corpo delicado, complexidade e suculência, taninos delicados". Depois da leitura desse instrutivo texto, que certamente não foi escrito por algum jurista, tanto eu como qualquer morador da periferia estamos em melhores condições de apreciar um Sang de Boeuf, safra 2010. Ou não? Quantos universitários estão em condições de entender o que disse o especialista? A quem ele dirige seu texto? Continuemos. Leio no primeiro caderno do mesmo O Estado de São Paulo: "Prova da Unicamp foi para gênios". No mesmo caderno, página de rosto, leio: "A presidente Dilma Rousseff já prepara a primeira bondade de seu governo". A palavra bondade não vem em itálico nem entre aspas, o que já é estranhável, pois se trata de evidente crítica ao governo. O que nos interessa, porém, é o que vem a seguir: "A idéia é elevar o valor máximo dos imóveis financiados pelo programa Minha Casa Minha Vida em grandes centros urbanos". O que o jornalista pretendeu dizer é que o governo federal autorizou o financiamento também de imóveis que valham mais de R$ 130.000,00, até o limite de R$ 170.000,00. Ou seja, o governo federal não elevou "o valor dos imóveis financiados", como diz o jornalista, mas o valor do financiamento. Em suma, a julgar por esse exemplo, o jornal tem motivos para considerar que só gênios serão aprovados nos exames da Unicamp. O redator desse texto certamente não o seria. Esse fenômeno, que diz mais com dificuldade em raciocinar do que com desconhecimento da língua, ocorre diante de nossos olhos todos os dias, especialmente quando a emissora de televisão, para ganhar tempo, coloca nos noticiários, além da imagem, um texto correndo da direita para a esquerda, onde se lê coisa como "Fulano chegou na cidade" ou "a estação do metrô será entregue daqui há dois meses". "Há"? Veja o DVD do filme Becket, por mim citado outro dia, e descobrirá que quem redigiu as legendas em português não conhece próclise nem mesóclise. E você, conhece? Algo como "Eles não enganarão-me" aparece ali amiúde, agredindo os ouvidos de quem ainda tem sensibilidade para essas coisas. Há algum departamento do Governo Federal a quem se possa denunciar tal crime contra a língua pátria? Talvez o Ministério Público, sob o tópico "crime de lesa-pátria". Duvido que haja, até porque não haveria político preparado para presidi-lo. Isso lembra o caso de um grupo de professores que foi ao encontro ("ir de encontro a alguém" é trombar com ele, ressalvo) do Secretário da Educação. Foram atendidos por ele, que deu a palavra ao chefe do grupo. "Viemos aqui à vossa presença para reivindicarmos melhores salários", teria dito o orador. O secretário, ofendido com o emprego do verbo no passado para referir-se a um fato presente ("vimos aqui" ou "aqui estamos") ter-se-ia levantado e respondido: "Vieram e não me encontraram". E saiu da sala. Recentissimamente, o segundo colocado na eleição para prefeito de São Paulo, logo que anunciado o resultado e certamente sem tempo para consultar algum assessor, saiu-se com esta: "Agradeço os companheiros, agradeço os partidos que me apoiaram, agradeço meus familiares". O candidato Fernando Haddad, mesmo tendo sido ministrro da educação, não distingue objeto direto ("agradeço o presente recebido") de objeto indireto ("agradeço ao Papai Noel a vitória que me caiu no colo"). Já citei em outra ocasião o caso do horto florestal de Campos do Jordão, onde uma advertência diz ser proibida a entrada de animais domésticos. Se eu levar um leão, o porteiro será obrigado a deixar-me entrar com a fera? Na verdade, o que se quis dizer foi: "É proibida a entrada de animais (irracionais), ainda que domésticos". Difícil, não? Quando uma tabuleta diz que o elevador não funciona por estar em "manutenção" ("ato ou efeito de manter"), quem conhece o significado do verbo manter ("fazer perdurar um determinado estado") sabe que ele nunca mais poderá ser acionado, pois continuará indefinidamente com o defeito que o impede de funcionar. Era isso que o autor da placa queria dizer? Por falar em elevador, entro num edifício onde nunca estive antes e leio uma advertência (baseada em lei!): "Antes de entrar no elevador, verifique se o mesmo se encontra no local". Consulto o porteiro: "Como eu nunca estive aqui antes, o senhor pode informar-me se esse elevador ainda é o mesmo que estava aqui dantes?". Ao que me consta, mesmo é aquele "de igual identidade; não outro", segundo me ensinam os dicionários. O que a palavra mesmo manda verificar é se não mudaram o elevador que ali havia antes. Enquanto isso, outro dia, quando perguntaram ao Felipe (clique aqui) se ele já havia comido aquele bolo, o garoto, com seus cinco anos e meio, não deixou por menos: "Se eu tivesse comido, ele não estaria mais aí".
sexta-feira, 19 de outubro de 2012

A galinha

  "O criador do conto é o próprio Homem, na sua necessidade de fazer o mundo ter sentido, em sua necessidade de narrar a vida para si mesmo. Se você argumentar 'mas nós não estamos discutindo a forma literária chamada Conto?' eu vou responder: 'mas como você define Literatura? Especialmente quando você considera a expressão literatura oral, a partir da qual, eu diria, o Conto nasceu?'. Tal é a confusão que surge quando se lida com esta ininteligível criatura". Frank Delaney, Irish Short Stories, Introduction A galinha da Clarice (clique aqui) passeava calmamente no telhado do sobrado. Era uma galinha gorda, penas pintalgadas, dessas galinhas que alimentamos durante meses e que são sacrificadas às vésperas de um dia especial, desde que as crianças a ela não se tenham afeiçoado, vindo então a implorar que à ave se lhe dê destino outro que não a panela que a ela estava desde sempre destinada. Não era tampouco como a galinha do Virgílio (clique aqui) digo-o desde logo, para que dúvidas não haja. Imagine uma galinha daquelas ali, posta por alguém que nada mais tivesse para fazer e houvesse dado a si o trabalho de galgar o telhado, a caminhar cuidadosamente de telha a telha, sempre no prenúncio de que uma delas se partisse, como é das estatísticas, a criar a necessidade de ser substituída, não me vá a chuva por ali cair sobre o teto e surgirem goteiras na sala de visitas ou, muito pior, num dos quartos da casa. O que, à sua vez, criaria a necessidade de alguém, talvez ele mesmo, o desastrado autor do dano, ali voltar ao telhado, trazendo consigo nova telha para substituir a que se partira na vez anterior. A criar-se novo risco de novas telhas partirem-se, a criar-se a necessidade de alguém ali retornar, talvez ele mesmo, para substituí-las e assim repetir-se essa lenga-lenga ad infinitum. Era, em súmula, uma galinha de carne, osso e penas. As pessoas que se dignavam de olhar para cima, com o risco de meterem o pé em algum buraco da calçada, abrindo uma das mãos, que levavam perpendicularmente à testa, à maneira de um aparador que lhes toldasse os possíveis efeitos dos raios solares incidentes sobre os olhos atrevidos, indagavam-se o que fazia aquela galinha naquele local. Alheia a tais comentários, talvez por falta de orelhas ou em razão da distância, a galinha da Clarice caminhava lentamente, como é próprio dos galináceos, dobrando, sucessivamente, cada perna, até porque, se dobrasse ambas ao mesmo tempo, não andaria, sentaria. E caminhava para diante, mesmo porque galinhas não dão marcha-a-ré. Aceleram, quando se faz necessário, como se um galo no diuturno cio com ela cisme e manda a pudicícia galinácea que ela se faça de rogada e não aceite desde logo a corte, pondo-se a correr em círculo, sempre a ser seguida e perseguida pelo galo que a todos deseja mostrar quem é que manda no terreiro. E lá longe, alheia aos olhos curiosos e pudicos dos presentes, ela se dignará de abaixar-se, para que ele a monte e depois, sexualmente satisfeito, dela desça e faça um rodopio, como se dissesse "de que te valeu correr tanto?" E ela então se levantará e se sacudirá toda, espadanando as penas, como a querer eliminar delas todos os vestígios do natural ato que acaba de praticar, sabe-se lá se voluntariamente ou não. Mas ali, no alto do telhado da casa, não havia porque nem como correr em círculo, até porque galo algum ali subiria apenas para dar vazão à libido, presumindo-se ajam os galos com prudência mínima. Pois à medida que a galinha da Clarice, não a do Virgílio, ressalvo segunda vez, dobrava a perna, o que fazia lentamente, como é próprio das galinhas desde o início dos tempos, se permitido for fazer uma tal suposição, ela também lentamente recolhia os magros dedos, dada a evidente inutilidade de mantê-los empalmados, como a dar adeus a fantasmas. Mas, à medida que a perna voltava, também com lentidão, a esticar-se, os magérrimos dedos iam-se afastando uns dos outros, como a formar, mecanicamente, uma esquelética flor, que ela exibia a ninguém. Enquanto caminhava pelo telhado, valendo-se daquele caminho natural formado pelo encontro das telhas que vinham de um lado e de outro, da direita e da esquerda, unindo-se ali, naquele cocuruto, e casadas uma a outra por outro tipo diferenciado de telha, dita telha de arremate, a galinha da Clarice olhava, também sucessivamente, à direita e à esquerda, como se aguardasse aplausos ante o seu atrevimento de, menos votada ao vôo como tantos de seus parentes distantes, passear atrevidamente a tantos metros do solo. Galinha pensa? Lá embaixo, alguns desocupados ou, talvez, preocupados com a possível extinção da espécie, acompanhavam aquela marcha da galinha, algo digno de soldados vietnamitas em parada militar. E ela alheia a tudo e a todos, sabe-se lá se ainda tem mãe, a qual certamente aflita estaria, se existente, ante aquele despropósito galináceo. Eis que dois pombos, não mais do que dois, assentam-se no alto do telhado, naquela espécie de coluna vertebral que a maioria dos telhados apresenta, ali posta, não para suster costelas, mas para dividir o telhado em duas águas, como diz o vulgo, até porque a galinha da Clarisse passeava caminhando exatamente ao longo daquela longa e falsa coluna vertebral. Que faz ela, ante a inesperada visita? Que fazem essas duas aves cá no alto, uma delas a girar em círculo sem sair do lugar? Pasma, a galinha da Clarice simplesmente sustém o passo, mantendo a perna dobrada e os dedos recolhidos, como é próprio dessas aves em tais momentos de indecisão. Que quer esse casal postado em meu caminho? há de ter pensado a galinha, se aceitarmos que as galinhas de fato pensam, minúsculo que seja seu cérebro, como sabemos todos nós. Ou haverá quem se tenha refestelado a comer cérebro de galinha, tal como se come os de boi ou de vaca, ditos eufemicamente miolos? O fato é que essa vacilação galinácea custou-lhe a ela a vida, pois o rapaz da casa surgiu num átimo de segundo, essa fração de tempo imedível, e a agarrou por uma das asas, levando-a, por mais que ela resistisse, para a casa, onde, não havendo crianças nem tendo ela botado ovo nenhum, mataram-na, preparam-na à cabidela, comeram-na com quiabo e arroz branco. E passaram-se anos. Muitos e muitos anos.
sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Hebe

  "Saber que se está com câncer é um choque. Sentimo-nos traídos pela vida e pelo próprio corpo. Mas ficar sabendo de umas recaída é terrível. É como se descobríssemos de repente que o monstro, que acreditávamos ter abatido, não está morto, e não havia parado de nos seguir na sombra, e terminou nos pegando" David Servan Schreiber, Anticâncer Diz a biografia oficial que ela nasceu na cidade de Taubaté, interior de São Paulo, em 08 de março de 1929, filha do violonista Fego Camargo. Iniciou sua carreira como cantora, atuou em várias emissoras de rádio, em diversas capitais do Brasil. O primeiro trabalho de Hebe foi ao lado de sua irmã Estela e das primas Helena e Maria. Depois ela e a irmã formaram uma dupla sertaneja. Aí veio o primeiro contrato como cantora-solo, nas Rádios Tupi e Difusora de São Paulo. Quando veio a televisão, foi contratada por Dermeval Costa Lima, o todo poderoso da TV Paulista, no início de 1952. O que a biografia oficial não diz é que ela era morena, tinha sobrancelhas que pareciam duas taturanas se beijando. Carinha comum, corpinho comum e nada sexy. Mas se dizia que ela e o Costa Lima sei não, sei não, coisa que ela, sempre desbocada, jamais admitiu, dizendo até que era amiga da mulher do chefe. Então tá. Digo eu que foi aí que nos conhecemos. Foi assim: a emissora de televisão onde ela atuava apresentava um programa tipo "A felicidade bate á sua porta". A felicidade, na verdade, era um caminhão que ia até uma casa de bairro e se a moradora tivesse ali algum produto fabricado pelo patrocinador do programa, ganhava um pacote disto e mais uma caixa daquilo. Para consolar as vizinhas despeitadas, baixavam-se as "guardas" do caminhão, que se transformava num palco tosco, onde dois ou três músicos acompanhavam a cantora que era ninguém menos do que a Hebe. O público, evidentemente, eram as donas de casa, matronas que, naqueles idos, jamais pensariam em queimar sutiãs, tomar anticoncepcionais ou trabalhar fora de casa. Além delas, as crianças que já haviam voltado da escola por ali se acotovelavam. Dentre elas, um garoto espichado, um "pirolão", como então se dizia. Ninguém menos do que este que vos fala, uns 8 anos mais novo do que a precoce cantora. Naquele dia o repertório terminava com "Beijinho doce", que ela encerrava com um beijo na palma da mão e um sopro na direção do galã escolhido, que era ninguém menos do que o tal pirolão, que procurou um buraco no chão para enfiar a cabeça. O tempo foi passando, mais depressa para mim do que para ela, eu fui envelhecendo e ela cada vez mais moça, agora distribuindo beijos a granel, os tais "selinhos". Em certo programa ela tentou dar uma selada no Jamelão e quase levou um safanão. "O que que a patroa vai dizer quando eu chegar lá em casa?" protestou ele, com aquele vozeirão que nos encantava. Tivemos algo em comum: um primeiro câncer. Alguns médicos, atrevidamente, depois de um tratamento bem sucedido, dizem que o câncer está curado. Outros advertem que, naquele tipo de câncer (pois câncer é como rosa: há de muitas cores) o risco de recidiva (nome que eles dão à reincidência) é de 30, 40 ou 50%. Outros, mais drásticos, dizem que o câncer é uma moléstia crônica, que, como tal, deve ser fiscalizada por todo o resto de vida. O fato é que, superado o primeiro, tivemos um segundo, do qual ambos nos safamos. Veio um terceiro e cada um de nós procurou driblá-lo como nos permitia o bom humor e os avanços da medicina, nome, aliás, bem escolhido do Instituto da Dra. Nise Yamaguchi, que é quem tem cuidado dos meus com tal dedicação que merece o registro. Adeus, colega.
sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Ainda a literatura de cordel

Falei outro dia dos repentistas e suas rimas (clique aqui). A vantagem desse tipo de poesia é que não tem mais fim, especialmente em tempos de internet. Tenho provocado alguns cantadores com esse tipo de poesia, dentre os quais o Zé Preá, o Ontõe Gago e o Mano Meira, aqui homenageados. DESAFIO Ontõe Gago e Zé Preá,gente boa num repente,se encontraro em Cabrobrópra alegria dos presente.Fizero um forrobodóde botá inveja na gente.Desafia um daquiarremete outro de láe ameaça arrebentáa cara desse sagüi. Eis que chega um forasteropara entrá na brincadera.Quem é ele? Mano Mero,vindo do sul brasilero.No Nordeste é no repente,lá no sul é Califórnia.Veja o senhor a esbórniaque ele tem na sua frente. Zé Preá puxa o punháMano Meira sua espada.Bota ela ali deitadano terreno do quintar.E o gaúcho vem bailandosaltita sobre a danada.Zé Preá nun intende nada,Ontõe Gago só mirando. Toda lida ali terminacom gritinho e alegria,com abraço e cantoria.Coisa munta feminina. Devo agora termináeste modesto repente.Me desculpe, Zé Preá,se lhe fui tão renitente.Mano Meira vem pra cácomer churrasco co'a gente.Ontõe Gago vai dançáxaxado, todo contente. Publicados os versos, os três se encheram de brios e se puseram a engrossar o cordel. A literatura do cordel (clique aqui): é tipicamente nordestina. Um dos maiores cantadores do Nordeste, se não for o maior deles todos, era o cego Aderaldo (clique aqui). Ficaram famosas as cantorias encabeçadas por ele, pois sempre aparecia alguém querendo superá-lo. E quase sempre acabava entregando os pontos. "Apanhando", como dizem eles. Um desses desafios, por sinal longuíssimo, terminou, porém, empatado, como ele mesmo relatou depois: "Havia quatro cervejas que um coronel apostou dizendo que todas quatro pertencem ao vencedor.Nós bebemos as cervejas. Nem um nem outro apanhou". Menos não fez Antônio Gonçalves da Silva, mais conhecido por seu sintomático apelido (clique aqui). Até Luiz Gonzaga musicou-lhe longuíssimo poema, uma espécie de Lusíadas nordestino (clique aqui). Talvez você prefira o Patativa do Assaré a descrever a morte da própria filha, com direito a rabeca e viola. Curiosamente, quem me enviou esse longo lamento, há muito tempo, foi o Francimar Torres Maia, advogado no Rio Grande do Sul, homem de biografia extraordinária (clique aqui), pois, nascido no Ceará, ali fez seus primeiros estudos. Foi beneficiado com uma bolsa de estudos oferecida por uma entidade do Rio Grande do Sul. Graças à compreensão de seus pais, cruzou o país e tornou-se o popular Cearucho, exemplo de vida para todos nós. Coisas desses brasis.
sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

The king can do no wrong

  "O Enem foi uma grande ideia má executada até agora." Daniel Cara, coordenador da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, segundo o jornal O Estado de São Paulo, edição de 24/1/12 "Se Mercadante for humilde e se propor a aprender os dilemas da educação, ouvir as diferentes vertentes e somar isso à sua capacidade intelectual, acho que poderá estruturar a área." idem, ibidem Estou descobrindo um homem extraordinário, fosse como literato, fosse como homem público, que meus afazeres vários impediram que me fosse apresentado há mais tempo. É claro que isso é uma rematada mentira, dessas de que nos valemos frequentemente para disfarçar nossa ignorância e a capenguice de nossa proclamada cultura. Falo como representante dos autoproclamados "grandes leitores" e críticos acerbos da nossa juventude, que prefere perder tempo jogando games no celular a debruçar-se sobre os clássicos de nossa literatura. Ou interessar-se pela política. Onde isso vai parar? O fato real é que ao longo da vida aprendemos a manha de falar sobre livros que nunca tínhamos lido, como registrou Pierre Bayard (clique aqui). Daí que, uma informação aqui, uma resenha ali, um filme lá adiante sobre a obra mais conhecida do homem e eis realizada a minha fama de leitor de Graciliano Ramos, a quem só agora estou sendo apresentado pelos netos Rogério e Ricardo Filho, revisores da obra do pai Ricardo Ramos, também escritor, que traça um belo retrato do pai Graciliano, ora reeditada pela Globo sob os cuidados de minha amiga Andressa Veronesi, que me presenteou com um exemplar do livro no dia do aniversário dela. Pode? A introdução, por sinal, pouco tem a ver com o texto e só está aí como uma espécie de mea culpa por aquilo que virá em seguida. Já registrei anteriormente a minha convicção de que, ao longo da vida, eu e tantos outros de formação cultural ocidental temos tentado pegar o porco pela perna errada. O nosso planeta, como todo ser vivo, vai seguindo em direção ao fim, coisa aí de daqui a um bilhão de anos, os fatos sociais vão-se sucedendo em todos os cantos, as coisas não saem como nós desejávamos que saíssem e nós pomos a culpa de tudo nos fatos e não em nossa vesguice. É mais ou menos como quebrar o espelho por causa de nossa feiúra (clique aqui). Aí vão alguns exemplos: Um capitão de navio tenta impressionar uma bela jovem, com vistas a algum proveito futuro, e utiliza sua autoridade para mandar afastarem-se os escolhos porque quem escolhe os caminhos do seu navio é ele. Ocorre que os abrolhos são surdos e, portanto, por mais que abram os olhos e os ouvidos, não conseguem dar obediência à ordem. Resultado: um Titanic liliputiano. Aí queremos que o tal capitão haja como herói de história em quadrinhos ou de filme de aventuras. Último a sair do barco? Eu, hein? Isso é coisa para o Tom Cruise. Todos os juízes de determinado Estado da Federação têm direito a uma vida tranquila, para poderem decidir as causas que lhe são submetidas de modo equilibrado, sem estar pressionados por problemas mundanos, como as contas que se vencem no início do mês e o trombetear da respectiva esposa, que vê os preços do supermercado subindo semana após semana. São, aliás, credores de valores correspondentes à necessária atualização dos salários em face da inflação, qualificados legalmente de "irredutíveis". O devedor, com sólidos argumentos, dispõe-se a pagar essa dívida em prestações, cujo número se perde de vista. Todos os juízes são submetidos a tal parcelamento. Todos menos um: o presidente do tribunal, que tem na mão a caneta e no cofre o dinheiro para pagar o credor mais necessitado e que, por mera coincidência, é ele mesmo. Se, dentre os necessitados, ninguém o é mais do que ele, segundo seu superior critério pessoal de julgar, qual o problema em ele requerer a si próprio que mande ele próprio pagar a si próprio o valor total do crédito, atualizado de acordo com sua visão pessoal do assunto? E os sonhadores protestam: "E o princípio legal da impessoalidade?". O presidente responde citando Getúlio Vargas, que sabia do que falava, pois tinha sido membro do Ministério Público gaúcho: "A lei? Ora a lei". O cidadão comum tem à sua disposição o Estado como garantia de uma vida social saudável. Adoentou-se? Vá a um posto de saúde e ali será prontamente atendido em seu justo reclamo. Receberá, ao final da consulta, uma requisição e, com ela na mão, se dirigirá a uma "farmácia do povo", onde adquirirá o remédio receitado, pagando por ele valor muitíssimo inferior àquele que os laboratórios internacionais costumam cobrar, explorando a brava gente do Terceiro Mundo. Eis o olho do Big Brother defendendo os teus interesses, companheiro. O chato de plantão indaga: "Como é possível vender tal ou qual remédio a esse preço exíguo se só o reagente empregado nele custa mais do que isso?". Responde o pragmático: "Placebo também cura". Que o digam as benzedeiras. Repetindo: o cidadão comum tem à sua disposição o Estado como garantia de uma vida social saudável. Sendo assim, sempre que alguém usa seu espaço para avançar além da fronteira ideal dele, invadindo o espaço alheio, lá está o Estado pronto para ser chamado e resolver prontamente a questão jurídica surgida. Cada cidadão tem o poder de invocar a força do Estado, poder esse conhecido nos meios mais nobres da sociedade como jus actionis ou qualquer coisa assim, pergunte aí ao Dinamarco. Como jus et obligatio sunt correlata, como também lá se diz, o exercício desse direito subjetivo traz consigo tripla obrigação: em primeiro lugar, a obrigação do Estado de dar resposta, a tempo e hora, à reclamação feita; em segundo lugar, a responsabilidade daquele que avançou além de seu particular espaço, exigindo que o prejudicado saísse de seu estado de sossego e fosse despertar o gigante adormecido; em terceiro lugar, a obrigação do reclamante de demonstrar a seriedade de seu reclamo, pois o Estado não existe para ser alvo de leviandades, onde já se viu semelhante despautério? Segue-se, pois, que, ao fim de um processo, há que apurar-se não só quem tem razão como quem paga a conta. Vencedor o autor, insta que o réu lhe indenize aquilo que despendeu não só com o custeio do processo como com o advogado que foi obrigado a contratar. Vencedor o réu, que o autor assuma tais despesas correlatamente, como punição de sua leviandade. Se o Estado não atende a tempo e hora o reclamo que lhe foi feito ou dá causa, por culpa de seu agente togado, a nulidade do processo, como uma das causas mais comuns desse retardo, que indenize as partes, descontado ao depois do salário do tal agente o valor da indenização paga. Agora pare de rir e continue a leitura, que ainda não terminei. Tenha educação, homem. Se você reparar bem, tanto o capitão de um navio quanto o piloto de um avião tem com o juiz isso em comum: o poder de decidir sobre a vida de umas tantas pessoas. Quem os responsabiliza quando erram? Na falsa suposição de que vivemos em uma democracia, algumas pessoas (poucas, é verdade) exigem que tanto esses "vice-reis" como outros tantos imperadorzinhos encastelados nos órgãos executivos, legislativos e judiciários sejam responsabilizados por seus erros. Santa ingenuidade, Batman. Veja-se o caso do falecido imperador da Bahia. Alguém alguma vez se atreveu a investigar a origem do seu patrimônio? E o imperador Newtão, de quem nem se fala mais nem em Brasília nem em Minas? E o primus inter pares do Maranhão e seu clã? E o grã vizir de São Paulo? Isso para não falarmos no vice-rei do grão Pará, cujo filho expressa bem o que ele pensa. (clique aqui) O erro está justamente em fecharmos os olhos para essa realidade: "O rei nunca erra", como diziam Luiz XVI e Henrique VIII, para citarmos só dois. Alguém imagina Napoleão Bonaparte sendo convocado para explicar os saques que fazia por onde passava? Alguém imagina D. Pedro I sendo chamado para explicar o que fazia ontem à noite no leito de D. Domitila de Castro Canto e Melo? Costa-Gravas já nos mostrou, faz um bocado de tempo, o que acontece com quem leva a sério a palavra "democracia" (clique aqui). Você está disposto a correr o risco? Ou prefere continuar a ser apenas mais um dos anônimos "eleitores", que placitamos aquilo que eles decidem nos acertos de corredores sombrios com os "financiadores de campanha"? Se este é um país em que alguém que desconhece a língua portuguesa, confundindo o advérbio "mal" com o adjetivo "mau" e demonstrando não saber conjugar o verbo "propor" chega a ser escolhido (por quem?) para coordenar uma entidade que luta (?) pelo direito à educação, que esperar dele? Abra os olhos, homem.
sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Porque não me ufano

  "Um homem que julga outro homem é um espetáculo que me faria rebentar de riso, se não me causasse piedade." Dino Segre, vulgo Pitigrilli "A Primeira Turma do STJ, em julgamento realizado na última terça-feira, manteve a condenação do Estado de Pernambuco por ter deixado preso ilegalmente, por 19 anos, o cidadão Marcos Mariano da Silva. Em 2006, o Tribunal já havia declarado o caso como o mais grave atentado à dignidade humana já visto no Brasil, e condenado o estado a pagar indenização de R$ 2 milhões de reais. O recurso atual buscava discutir o prazo inicial de incidência de correção monetária, em sede de embargos à execução. Conforme noticiário nacional, Silva faleceu na noite de terça-feira, horas após tomar conhecimento da decisão favorável a sua causa. Em 2006, os ministros reconheceram a extrema crueldade a que Silva foi submetido pelo poder público. Preso em razão de simples ofício, sem inquérito ou condenação, foi 'simplesmente esquecido no cárcere'. Em decorrência de maus tratos e violência, ficou cego dos dois olhos, perdeu a capacidade de locomoção e contraiu tuberculose. A família, à época da prisão composta de mulher e 11 filhos, desagregou-se." (clique aqui) "O artigo 101 da Constituição Federal determina que os 11 ministros do STF tenham notável saber jurídico e reputação ilibada. 'Com todo respeito à ministra, penso que um dos requisitos não se encontra presente. Fizemos mais de dez perguntas à ministra que não foram respondidas', disse o senador Pedro Taques." (clique aqui) O que eu queria mesmo era falar de um juiz de despreparo ímpar, desses que acham que Pontes de Miranda são aquelas pontes sobre a Via Dutra, lotadas de pessoas admirando o trânsito de carros que voltam de feriadão. Pois, fosse por apadrinhamento, fosse pela necessidade dos serviços muitos, acabou sendo convocado para auxiliar no tribunal, coisa que no Estado de São Paulo merece a alcunha de pinguim, talvez devido a que a roupa negra não lhe recobre o todo peito branco, que outrora era a cor exclusiva das camisas de Suas Excelências, nada de camisa colorida aqui, doutor, nada disso, volte para casa e troque isso! ficando até hoje o divertido epíteto, que tanta curiosidade desperta alhures. Deu-se então que logo no primeiro julgamento ele exibiu solerte as qualidades inúmeras de que não era possuidor. Não é que se tratava de uma revisão criminal? coisa a ser julgada pelo chamado Tribunal Pleno, composto de ene juízes, sendo que regimentalmente os juízes mais antigos na casa votam ao depois dos mais recentes, que é isso para que os mais novos não se sintam acuados pelo saber maior dos demais, coisa que se presume, ou pelo temor reverencial, que a toga não afasta, ao reverso do que pensam os muito ingênuos, muito pelo contrário. "Eu por mim absolveria mas, se o senhor insiste, eu condeno" como teria ressalvado um desses pinguins. Maledicência minha, é claro, direis. E o relator da revisão criminal dá seu longo voto dizendo que assiste inteira razão ao peticionário Senhor Presidente eminentes colegas porque de fato sua condenação baseou-se exclusivamente na palavra escoteira da vítima, sendo que o assalto ocorreu em local ermo a desoras e sendo os negros mais pardos do que os gatos quando o sol se põe temerário se me afigura Senhor Presidente eminentes colegas manter a condenação feitas as devidas ressalvas aos ilustres membros da Egrégia Câmara de onde originário o processo com expedição de alvará de soltura clausulado. Já o ínclito juiz revisor, muito ao reverso, tinha por incogitável o deferimento do pleito, pesasse embora o lúcido voto do eminente relator, visto que na esteira do que tem decidido esta Augusta Casa possível não é em sede de revisional reapreciar as provas dos autos visto como embora mínima fosse a prova acogulada no bojo destes autos levada na devida conta pelos ilustres integrantes da Colenda Câmara, não significa isso tenha havido contrariedade à evidência dos autos, motivo pelo qual Senhor Presidente eméritos desembargadores, sem embargo do respeito e admiração que tenho pelo ínclito juiz relator, indefiro a revisão, que, como sabido e ressabido, não se confunde com uma descabida segunda apelação. O Presidente do Tribunal proclama então o resultado provisório: o senhor relator acolhe a revisão para absolver o réu, com expedição de alvará de soltura, enquanto o senhor revisor nega-lhe provimento para manter a condenação. Como vota o ilustre terceiro juiz? sendo ele ninguém menos do que o tal juiz cujos méritos ocultos jamais nunca haviam sido conhecidos por seus colegas o qual toma da palavra e sentencia: "Acompanho a maioria!". O Plenário é só olhos voltados para o juiz vogal, que assim se chama o que vota depois do revisor, bugalhos a supor haverem os ouvidos ouvido coisa diversa do que dissera o ilustre colega ali presente. Como, Excelência? indaga-lhe solícito o Presidente, fingindo não haver ouvido o que todos os ouvidos ali ouviram, até porque a voz do novato era estridente. "Acompanho a maioria!" repete o juiz convicto e ignaro da silva. Mas ainda faltam votar ene juízes! exclama o Presidente em obviedade que lhe daria vergonha se necessário não fosse a explicitação e a procurar calma que normalmente não lhe era o forte. E o tal juiz vogal, do alto de sua prosopopéia: "Eu espero!". Tanto quanto o caso do juiz que me segredou, a estes ouvidos que a terra há de cobrir, olhando para um lado e depois para o outro, não fosse alguém ouvir sua confissão, que hoje, veja o desembargador, assim solene, por que drama de consciência passei hoje, repetiu nervoso, não é que o réu denunciado pela prática de crime contra o patrimônio não tinha contra ele prova alguma digna do nome nem vítima reconhecendo nem nada mas ocorre que o advogado dele é o mal afamado doutor fulano de tal, já envolvido até em inquérito policial sob a acusação de receptação dolosa não é que descobriram no sítio de Sua Senhoria, falo do tal advogado, nada menos do que uma oficina de desmanche de automóveis? pois é, o tal mal afamado era o defensor do tal réu e como eu sei, como todos nós sabemos, que esse advogado só defende bandido não tive outra escolha a não ser condenar o réu mesmo com a precariedade das provas existentes nos autos, o tribunal que o absolva, não eu. Covardemente, limitei-me a contar até dez.
sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Ano novo, vida velha

"American historian Robert M. Levine, director of Latin American Studies at the University of Miami, has once commented that Brazilians are a kind of people who 'pride themselves on being especially creative in their array and variety of gambit suitable for bending rules'. Actually, they pride it so much that they have even elevated the bending of legal norms to a highly prized institution: the jeito or jeitinho. . The social mechanism known as jeito can be adopted in many legal and non-legal situations. A jeito can be asked, for instance, when the queue in a bank is too long and a person argues that he cannot wait for his turn. Lawyers can also apply it in the form of a 'favour' (legal or illegal) requested to court employees. Finally, it can also be granted by a public inspector who condones the failure of a company to comply with a statutory provision for considering it somehow uneconomic, unjust or unrealistic". Augusto Zimmermann, Jeitinho, Brazil's Creative Way to Break the Law and Feel Virtuous about It (clique aqui) Que é o hábito? Diz-se que ele não faz o monge. Mas também se diz que ele cria uma segunda natureza. Não sei como as coisas estão por esse país afora, mas, para quem sempre conviveu com a elegância feminina, até porque eu era filho de costureira e sobrinho de alfaiate, sendo atualmente esposo de uma fã da Coco Chanel, a substituição do vestido pelas calças compridas, faça-me o favor. Fossem calças femininas ainda seria algo aceitável, mas a moda do unissex nivelou tudo por baixo. Isso quando as tais calças não trazem buracos no joelho, na coxa, na canela ou sei lá onde mais. E para não falar no pretendido ar surrado, provocado pelo desbotamento proposital do tecido. Para mim, trata-se de um hábito furado. Verdade que se pretendeu amenizar a coisa, reduzindo as pernas das calças a um mínimo, dando-lhes um pretenso toque mais feminino, lembrando as pin-up girls dos ano 50, com seus saltos altíssimos. Menos mal. Dia desses vi no shopping uma mulher de costas, segurando a mão de uma criança. Dado o tamanho do short, tive a curiosidade de ver a tal moça de frente. Como avó da criança até que ela estava com boa aparência, pesassem os gambitos e as varizes. A palavra "hábito", já se vê, compreende muito mais do que a vestimenta, como sabeis. Dia de aniversário ou fim de ano, lá vêm os votos de parabéns e desejos de felicidade. Amigo que é amigo não envia cartão, a não ser que tenha bolado algo muito diferente. A Patrícia, por exemplo, no ano passado mandou cartões em cujo envelope aparecia selo com o rosto dos filhos. Originalíssimo, não? Desejar a um amigo "Feliz Natal e Próspero Ano Novo" é pedir para romper a amizade. Amigo que é amigo telefona ou manda e-mail convidando para um almoço, um jantar, um brunch ou um cafezinho. Até porque amigo não precisa de data para presentear amigo. Frequentador habitual de livraria, se eu bato os olhos em determinada obra, salta uma ficha: é a cara de fulano. Ou fulana. É comprar o livro, intimar o amigo ou amiga para um encontro e comemorar o seu desaniversário. Que há de tão difícil nisso? Pior é receber tais votos de pessoas que você nunca viu na vida, como me acontece no aniversário e no final do ano. Árvores e mais árvores derrubadas para nada. Qual o sentido disso? Será que alguém acredita na sinceridade de tais mensagens? Isso para não falar nos votos fúnebres. "Meus pêsames" diz-lhe alguém na fila dos cumprimentos quando comparece à encomendação de um defunto que te é caro. Pergunte a ele: "Que quer dizer isso?". Ele fará um circunlóquio e terminará falando em "condolências", ficando tudo na mesma. Em compensação, se, quando ele adoecer, você for ao hospital apresentar os pêsames ou as condolências, ele e os familiares te botarão porta a fora. "Eu ainda não morri seu agourento!", berrará ele. De onde vem a palavra pêsames? Certamente de "pesa-me muito tua moléstia" ou "pesa-me muito a morte de teu pai". Rigorosamente, o pesar é expressão de tristeza, seja pela morte, seja pela doença de alguém. Ou por algum ato difícil de suportar, como a perda do emprego ou um divórcio. "Isso me condói", ou seja, produz dor. Ou condolência. Já que tocamos no desagradável assunto, experimente perguntar a dez de seus amigos o que significa "féretro". Certamente, onze errarão. Entretanto, o jornal, ao noticiar a morte de alguém importante, diz que o féretro sairá do necrotério tal para o cemitério qual. Como ficamos? Quer mais: entre numa casa funerária e diga ao atendente que você está interessado num féretro. Quer apostar que ele arregalará os olhos? Talvez seja melhor dizer que quer comprar um esquife. Isso para não falar nas tais exéquias, que serão realizadas, dependendo da importância do defunto (defunctu vita = "aquele que já se desobrigou dos encargos da vida") ou finado (particípio passado do verbo finar, irmão gêmeo de findar) ou cadáver (caro data vermibus, ou "carne dada aos vermes"), na igreja matriz. Curioso esse modo solene com que nos referimos às coisas relacionadas com a morte, quando o falecido merece nosso respeito: passamento, desencarne, féretro, condolências, encomendação, exéquias, defunto, cadáver, esquife. Quando não é alguém tão louvável, a terminologia é bem outra: "O presunto foi desovado no lixão". O que eu queria mesmo era desejar aos meus leitores, cujo número, como na velha piada, é chiquitito pero cumplidor, um próspero Natal e um feliz Ano novo, embora o Natal já tenha passado e, certamente, você foi aquinhoado com muito mais do que aquilo a que se achava com direito. Quanto à felicidade, entra ano e sai ano e eu continuo na mesma ignorância (clique aqui). Você, certamente, ficaria feliz se viesse a constatar que os promotores e os juízes começaram a dedicar-se com mais afinco às suas atividades e estão mandando para a cadeia safados de todos os quilates, nem que sejam colegas. Quem me garante, porém, que você não é um desses safados? O que mostra a sabedoria do Einstein, ao dizer que tudo é relativo, menos a morte. Talvez você sonhe com o dia em que advogados inescrupulosos parem de convencer delegados idem a montar aquilo que nos corredores das delegacias se chama inquérito nati-morto, no qual foram, consciente e voluntariamente, desprezadas garantias óbvias constantes da chamada "cláusula do devido processo legal", como declarará o promotor anos e anos depois dos fatos, mandando refazer tudo aquilo, com a consequente prescrição retroativa da ação penal, extravagância tão brasileira como a jabuticaba, cujo sabor, porém, é bem melhor e mais fácil de engolir, com caroço e tudo. Como quer que seja, nos momentos mais difíceis lembre-se daquele louco varrido que dava marteladas na própria mão. Cada golpe era seguido de um berro. O médico plantonista, depois de desarmá-lo, indagou: "Mas isso não dói?". E o outro: "Só quando o martelo desce. Quando ele sobe, que felicidade!".
sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Allegare et non probare

"Até os sádicos são capazes de ter bons argumentos para o que fazem." Luís Fernando Veríssimo Bill Bryson é um jornalista de 50 anos de idade. Decepcionou-se, como muitos de nós, com a leviandade com que jornais publicam notícias, mesmo que tenham conteúdo científico. Vai daí, ele imaginou o que ocorreria se a origem do cosmos fosse escrita como se se tratasse de uma série de reportagens, ensinando-nos, por exemplo, "como construir um universo". Eis a receita: "Um próton é uma parte infinitesimal de um átomo, que, por sua vez, é uma coisa insubstancial. Os prótons são tão pequenos que um tiquinho de tinta, como o pingo neste i, pode conter algo em torno de 500 bilhões deles, mais do que o número de segundos contidos em meio bilhão de anos. Portanto, os prótons são exageradamente microscópicos, para dizer o mínimo." Você já sabia que o material de que vai precisar tem tudo isso de tamanho? Há mais: "Agora imagine que você possa (claro que isto é pura imaginação) encolher um desses prótons até um bilionésimo de seu tamanho normal, num espaço tão pequeno que, em comparação, um próton pareceria enorme. Agora compacte nesse espaço minúsculo uns trinta gramas de matéria. Ótimo. Você está pronto para iniciar um universo." É claro que ele está falando do Big Bang, que acaba de voltar às páginas dos jornais (clique aqui). Aliás, ele mesmo esclarece que a questão não foi a tal "grande explosão", mas o que veio depois. "Com muitos cálculos matemáticos e observando cuidadosamente o que acontece nos aceleradores de partículas, os cientistas acreditam que possam retroceder a 10-43 de segundo após o momento da criação, quando o universo ainda era tão pequeno que seria preciso um microscópico para encontrá-lo. Não precisamos desmaiar ante cada número extraordinário com que nos deparamos, mas talvez valha a pena citar um deles de tempo em tempo apenas para lembrar sua extensão inapreensível e espantosa. Desse modo, 10-43 é 0,0000000000000000000000000000000000000000001, ou seja, um décimo de milionésimo de trilionésimo de trilionésimo de trilionésimo de segundo". Acho que foi por isso que preferi estudar latim. Como diz o Millôr, "qualquer tolice pode salvar ou arruinar uma vida quando dita em latim". Aliás, "Qual a importância em aprender latim?" perguntam-me, a troco de nada, numa daquelas rodas de uísque que se formam no saguão do bufê, antes da chegada dos noivos. Para não fazer feio, tenho nas mãos um copo de guaraná com duas pedras de gelo, que balanço, como fazem meus colegas da rodinha. E, apenas para provocar, respondo a pergunta com outra: "De que lhe serviu o que você aprendeu nas aulas de geografia? Antes de viajar para o Exterior você vai procurar os livros do colégio ou vai a uma agência de viagem?". Pego um canapé, que mantenho na boca por mais tempo do que o necessário, para não ter de falar tão já. Em verdade, a pergunta dele não era tão gratuita assim. O celebrante, um padre velhinho, que deve ter feito o casamento dos avós da noiva, resolveu citar Santo Agostinho, possivelmente seu colega de seminário, no original, se é que ele originalmente escreveu em latim. Ninguém naquela roda havia entendido o que o padre dissera. "E você?" indaga-me, provocativamente, um deles. Cinicamente, eu digo que o som não estava muito bom e aquele sotaque do padre, positivamente. Confesso que tenho horror a sermões ("homilias", como se diz hoje) feitos por padres muito moços. Faz-me lembrar do tempo em que eu, recém-nomeado juiz, fui trabalhar em Araraquara, onde o Loffredo e o Geraldo Arruda eram mais conhecidos do que a estátua do Ruy Barbosa na Praça XV. Certo dia, um caboclo foi ao fórum para "falar com o juiz". Na ausência daqueles dois, atendi o queixoso e dei-lhe a orientação que me pareceu a mais adequada. Ele certamente não concordou com ela. Ao passar pela porta da sala, para sair, chamou o porteiro lá fora e indagou: "Aquele rapaz é juiz mesmo ou está gozando da minha cara?". E tenho birra da linguagem empolada e o tom teatral que alguns sermonistas empregam em suas homilias, como se ainda não tivesse sido inventado o microfone. Aqui ao lado há uma igreja que tem telas de plasma espalhadas pelos quatro cantos, com uma espécie de home theater eclesiástico. Algo muito diferente dos velhos tempos do púlpito (que era um "supedâneo" um pouco maior, palavra de que os advogados se apropriaram para designar os fundamentos do seu arrazoado). Meu amigo Ilário, que só não é bispo por um cochilo do Espírito Santo, algo que não é privilégio só do bom Homero ("Quandoque bonus dormitat Homerus", dizem elegantemente os advogados quando desejam censurar alguma besteira processual feita pelo juiz), como ex-diretor de seminário, sabe do que estou falando. Saber usar as palavras adequadas diante de um público heterogêneo como aquele que assiste a uma missa é privilégio de poucos, reconheço. Mas, num casamento, aparentemente a diferença cultural entre os presentes não é tanta, o que supõe que fazer aquela sintonia fina não é tão difícil assim. E falo com conhecimento de causa, pois já tive meus tempos de pregador religioso, quando imperava o bonachão do João XXIII. Eu e o Jô Soares, que, de camisolão branco, lotava a igreja de São Gabriel, ali no Itaim Bibi, depois de ter saído de um fim de semana de retiro espiritual numa casa da rua Marcondésia, lá pelos lados do Aeroporto. Ele distribuía comunhão, ao lado do pároco. A fila dele avançava pela calçada, enquanto o padre ficava ali esperando que alguma velhinha se lembrasse de que o corpo de Cristo era o mesmo nas duas filas. Ou não via televisão. Eu, de mim, acostumado ao juridiquês, esforçava-me para moderar na terminologia técnica. Na primeira vez em que falei do casamento, não pude escapar do "remedium concupiscentiae". Fiz um comentário bem humorado sobre o casamento, encarado pela Igreja como remédio, comparando-o ao óleo de rícino, cada qual destinado a um tipo de doença. Houve muita risada, eu me entusiasmei (enthousiasmos = Deus está comigo) e o controlador do tempo fazendo-me sinal para encerrar aquela arenga. Como professor, encerrada a palestra, indaguei dos presentes se havia alguma dúvida no ar. Uma senhora, pessoa simples, indagou-me se eu poderia explicar o que é "prole", pois eu havia dito que uma das finalidades do sacramento do matrimônio era auxiliar o casal a cuidar da prole e ninguém ali sabia o que era aquilo. Obtida a licença devida, passei a conhecer e prover os embargos declaratórios. O tempo passou, os cientistas passaram a procurar uma tal "partícula de Deus" (clique aqui) e eu me recolhi à minha ignorância, até porque, em relação à tal partícula, deveremos utilizar do mesmo ceticismo de alguns teólogos: quando você se convencer de que encontrou Deus, desconfie. Aliás, um dos cientistas jogou um balde de água gelada nos agnósticos mais esperançosos. Segundo ele, o tal "bóson de Higgs", o que quer que isso seja, permitirá conhecer 4% (quatro por cento) daquilo tudo que os cientistas ainda precisam conhecer sobre o Universo. Fico aqui me perguntando quanto será 4% de algo infinito.
sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Lupus lupi homo

  "Estou firme como uma rocha". Ministro Wagner Rossi "Sinto-me indestrutível". Ministro Orlando Silva "Para me tirar daqui só a bala". Ministro Carlos Lupi "Vou-me embora deste país de merda". Primeiro Ministro Silvio Berlusconi "Caro Adauto, permita-me a ousadia: o texto é contraditório em seus termos, para usar uma expressão nitzscheneana; afinal, se os tempos são de efemeridades e pouco esforço (líquidos, segundo Bauman), a proposta de leitura mais longa, mais contemplativa, está em descompasso (Circus 252 - 28/10/11). E Pavese já alertava: trabalhar cansa. Pensar, então... Tempos tristes, sem cor, sem brilho, sem magia. Não sei se a maioria de nós preocupa-se ou quer ao menos preocupar-se com essa indagação, mas é reconfortante pensar que ainda há quem insista, a seu modo. Por favor, não desça do caixote! Um abraço. Cleon Bassani". Migalhas dos Leitores, 3/11/2011 Faça esta experiência: leve seu filhinho, seu sobrinho ou seu netinho, se ele já souber andar, ao playground ou à sala de brinquedos do prédio onde ele mora, quando ali haja outras crianças de mesma idade ou quase isso. Deixe-o junto das outras crianças e fique observando-os de longe. Certamente ali haverá brinquedos como cavalinho-de-pau ou balanço, que, entretanto, não poderão ser desfrutados por todas as crianças ao mesmo tempo. Que acontecerá, por exemplo, quando mais de uma criança pretender utilizar o mesmo cavalinho ou o mesmo balanço ao mesmo tempo? Enquanto você observa os pequerruchos, permita-me dirigir-me aos demais leitores. Segundo alguns estudiosos, foi um mineiro, sentado na soleira da porta de seu casebre, picando fumo, enquanto observava o galo a correr atrás de uma galinha, quem pela primeira vez fez as três indagações célebres: "Oncotô? Donqueuvim? Prondeuvô?", fato que até está documentado (clique aqui) . Passava por ali um alemão, anotou aquilo, traduziu, deu-lhe uma garibada e o "Wer bin ich? Woher komme ich? Wohim gehe ich?" correu o mundo. Aliás, ainda corre, pois as respostas têm sido tantas que foi necessário destruir algumas florestas para imprimir tantos livros que se escreveram sobre o tema, seja no campo da Religião, seja no campo da Filosofia, de onde, aliás, se desgarrou a Ética. E tome mais árvores derrubadas. As religiões, aliás, possuem "normas éticas reveladas", o que faz supor que, sem o patrocínio da divindade, que as teria revelado a alguém especial, tudo o que teríamos seriam as reflexões filosóficas sobre o Bem e o Mal. Por outro lado, com a laicização da sociedade (para não falarmos na "morte de Deus") (clique aqui), tornou-se necessária a edição de "normas éticas positivas' (a expressão "jus positus", como sabemos, refere-se às regras que são postas e impostas pelo governante do grupo social), ou normas jurídicas. É claro que a efetiva positivação dessas normas, no sentido de serem punidos aqueles que a desobedecem, dependerá da qualidade do Poder Judiciário que a sociedade tiver. Se a Filosofia é coisa de desocupado, como já escrevi por aqui (clique aqui), a Ética tem um lado mais simpático: sua praticidade. Por exemplo, se o morador do apartamento de cima resolve, às 3 horas da manhã, empunhar o revólver e refletir se aperta ou não aperta o gatilho, isso não me diz respeito, pois sua angústia existencial está no subjetivo campo da Filosofia. Mas se ele, efetivamente, apertar o gatilho, o barulho do tiro interferirá na minha vida, pois eu não gostaria de ter o meu sono interrompido, especialmente daquela forma. Passamos agora para o campo da Ética. Quando a violação da regra ética não se limita ao desrespeito do sono alheio, mas vai além disso (antes de tentar matar-se, sem êxito, meu vizinho matou a esposa), o administrador do grupo social deve tomar providências para fazer cessar o abuso e, ao mesmo tempo, desestimular sua repetição, seja por parte daquele infrator, seja por parte de todos os infratores possíveis. Estamos, já se vê, no campo do Direito. E do Poder Judiciário, é claro, pois lei sem juiz é revólver sem munição. Estamos aqui conversando e eu fiquei preocupado com aquelas crianças que ficaram no playground ou na sala de jogos do prédio. Melhor voltar lá. Uma das três criancinhas tentou sentar no cavalinho-de-pau, logo quando uma outra teve a mesma ideia, veja que coincidência lamentável. Puxa daqui, puxa de lá e tudo o que conseguiram foi um berreiro danado. A mãe de uma quarta criança interferiu, conversou com esta criança, conversou com aquela outra, e nada conseguiu, a não ser aumentar o berreiro. Em razão disso, a moça responsável pela área de lazer, perdendo a paciência, decretou "tempo esgotado!", pôs todo mundo pra fora e fechou a porta da sala de jogos. Quais seriam os desdobramentos disso se você fosse a mãe de uma daquelas criancinhas? Eu poderia encerrar o texto aqui, esperando que os leitores me enviassem sua resposta, mas minha experiência me diz que eu poderia ficar esperando sentado por tanto tempo que a crônica jamais seria concluída, pois os leitores do Migalhas são ocupadíssimos. Pensemos, então, em algumas reações possíveis. Talvez você, depois do jantar, dissesse a seu marido. "Sabe, benhê, hoje aconteceu um troço na sala de jogos que nem te conto. Aquela sirigaita que toma conta da sala expulsou o nosso filho, só porque ele queria brincar num cavalinho-de-pau? Pode?". Ou então: "Acho que devemos cuidar melhor da educação do Júnior, pois ele precisa aprender que as outras crianças também têm direito de brincar". Ou: "Hoje nossa capetinha aprontou mais uma. Ela quando quer uma coisa quer mesmo! Tem tudo para ser uma diretora de RH numa multinacional que nem a mãe. Você não acha, amore?". Essa brincadeira pretende mostrar que são vários os possíveis enfoques de uma questão ética, que, no caso, pode ser assim sintetizada: "Devemos por limites na conduta das pessoas?". A questão poderia também ser assim formulada: "Como devemos educar nossos filhos para que sejam adultos responsáveis e bem realizados?". Também já falei disso aqui, mas você nem notou (clique aqui), motivo pelo qual estou dando um bis. Tradicionalmente, como lembra o Gikovate num livro recente, as pessoas eram rotuladas de "egoístas" ou de "altruístas". A tendência para o egoísmo era tanta que havia até um aforismo que sintetizava isso: "Quando o pirão é pouco, meu prato primeiro". Além da discussão sobre a prioridade no servir-se do tal pirão havia também a discussão a respeito do número de colheradas de pirão que seria razoável eu botar no meu prato. Há, na verdade, fortes argumentos éticos à disposição dos sofistas que tanto embasariam o cabimento do "meu prato primeiro" como o rejeitariam. Em primeiro lugar, contra ele se dirá que, como vivemos numa cultura cristã, é digno de lembrar que o mandamento cristão nos diz que devemos "amar o próximo". Logo, o pirão deve ser dele. Sofisma evidente, pois o que o mandamento diz é exatamente o contrário: "amar ao próximo como a si mesmo". Ou seja, para que eu tenha um padrão de amor que devo observar ao amar o próximo, devo, antes disso, conhecer esse padrão, o que vem indicado na palavra como. Assim, num primeiro momento eu me amo, para conhecer o padrão; num segundo momento, conhecendo o padrão de conduta, aplico-o na relação com meu próximo. Até porque cuidar da própria saúde e da própria vida também é dever ético de todos nós em nossa cultura. Reparando bem, estamos diante de um novo sofisma: quem nos assegura que, para conservar minha saúde e minha vida eu devo comer todo o pirão? Certamente, se eu repartir o pirão entre nós dois tanto a minha vida como a vida do meu próximo estarão sendo preservadas. Ou então morreremos os dois. Quando o esfomeado, figurativamente, não só esvazia a panela como até avança sobre o pirão que está no prato alheio, aí o rótulo já não será "egoísta", mas "criminoso". Até porque as regras jurídicas contemplam aquilo que alguns autores chamam de "mínimo ético exigível". Suponhamos que alguém foi educado a contrabalançar o egoísmo natural com o altruísmo necessário ao convívio social e desenvolveu aquilo que se chama generosidade. Nada muito difícil. Basta observar duas regras: "não fazer a outrem aquilo que não gostaria que lhe fizessem" e "tratar o próximo como gostaria de ser tratado". Por força disso, já adulto, quando entra no elevador e ali há outras pessoas, ele exclama (desejo-lhes que tenham um) "bom dia!". Quantas agradecem? Quantas retribuem? Pouco importa. Ele sabe que a generosidade não exige retorno. Ele acredita que ser generoso é algo que lhe faz bem e isso lhe basta. Certo dia, porém, ao fazer o cumprimento de sempre, alguém lá no fundo exclama "Xi! Chegou aquele caretão chato". Imaginemos que você esteja no elevador. Qual será sua reação? Para simplificar, fiquemos com três hipóteses: a) você ri do comentário; b) você censura o comentarista por sua grosseria; c) você fica calado. No primeiro caso, você revela seu lado egoístico, pois se diverte com o prazer obtido por alguém à custa de ridicularizar a conduta de outrem. No segundo caso, você revela seu lado altruístico, pondo-se ao lado de quem foi ridicularizado por haver-se mostrado generoso. No terceiro caso, embora não pareça, você também se postou ao lado do ridicularizador, pois, com seu silêncio, preocupou-se apenas consigo, como é próprio dos egoístas, "não se metendo em problema alheio". É que os problemas éticos nunca são apenas individuais. Eles ultrapassam a esfera individual, pois dizem com o bem-estar de toda a comunidade. É evidente que ninguém é apenas egoísta ou apenas altruísta. Ao longo do dia todos nós temos momentos em que prevalece uma ou outra dessas características de nosso caráter. Há quem sustente que mesmo nos atos de generosidade está presente o egoísmo. Millôr Fernandes sintetizou isso em uma de suas conhecidas e irreverentes boutades: "Madre Tereza de Calcutá é tão egoísta que quer o céu só para ela". Quando dizemos ser alguém uma pessoa generosa, é porque os seus gestos de altruísmo superam os de egoísmo; quando chamamos alguém de egoísta é porque o reverso é que em geral ocorre. Considerando, no entanto, que a pessoa egocentrada típica considera que o mundo existe para servi-la, a convivência entre alguém exageradamente egoísta e outra exageradamente altruísta acarretará um relacionamento caracterizado pela neurose complementar: a generosidade de um alimenta o egoísmo do outro; o egoísmo de um sugere ao outro que ele não é tão generoso quanto ele supunha ser, exigindo dele doar-se cada vez mais. Quanto tempo durará esse jogo? O altruísta conseguirá deixar de sê-lo ao descobrir que está sendo explorado pelo egoísta? Quanto custará a seu amor próprio esse rompimento com seus princípios? Como ele reagirá ao descobrir que não era tão desinteressado pelo aplauso como procurava convencer-se de que era? É difícil imaginar que em uma sociedade competitiva como a nossa ainda haja alguém generoso por convicção íntima. Estou, por exemplo, chegando à conclusão de que aquilo que distingue os homens públicos de nós, que não pertencemos a esse seleto clã, não é o egoísmo deles e o altruísmo nosso. É, pesa dizê-lo, o egoísmo desmedido da maioria deles (que, no limite, conduz à confusão entre os interesses públicos relacionados ao cargo que ocupam e os interesses particulares dos seus ocupantes) e o egoísmo comedido da maioria de nós (que nos esforçamos para manter-nos na ala dos honestos, talvez menos por convicção e mais por temor de eventuais represálias, coisa que a maioria dos homens públicos não mais tem, por motivos de todos conhecidos). Para o Tito Plauto, que nasceu muito antes de Cristo, quando ainda não haviam inventado o Brasil, o homem é o lobo do homem. Não ofendam o bichinho, que não funda partido político nem cria ONGs. A experiência nos mostra que o lobo, graças a nosso mau exemplo, é que se tornou o homem do lobo.
sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

E eu com isso?

  "Para qualquer lado que se olhe neste país, em qualquer direção que se procure, lá se encontram marginais travestidos de homens públicos que não hesitam em meter a mão no dinheiro que é de todos, locupletando-se à custa dos brasileiros que, vergados sob o peso de uma das mais onerosas cargas tributárias do mundo, assistem impotentes ao espetáculo da corrupção e da ineficiência no trato da coisa pública." O Estado de S. Paulo, 16/10/2011 "A organização não governamental Contas Abertas mostrou que em 2011 o órgão responsável pelo controle externo do Poder Judiciário exibiu os mesmos excessos que deveria coibir, gastando quantias vultosas com coquetéis, almoços e eventos corporativos." Idem "O Estado revelou, em uma série de reportagens publicadas em fevereiro, que o programa Segundo Tempo (do Ministério dos Esportes) se transformou em instrumento financeiro do PC do B. Sem licitação, o ministro entregou o programa a entidades ligadas à sigla, cujos contratos com ONGs somaram R$ 30 milhões somente em 2010." Idem Atribui-se a um sem número de autores uma frase que eu gostaria de ter escrito: "O que me incomoda não é aquilo que fazem os maus, mas a indiferença dos bons diante daquilo que fazem os maus." Em minha juventude falava-se em Rudyard Kipling, o escritor inglês que, dentre outras coisas, inventou o Mogli, ao escrever The Jungle Book, em 1894. O Disney ganhou muito dinheiro à custa dele (clique aqui). Ficou famoso por causa de um soneto pretensamente edificante, If, traduzido por ninguém menos do que o Guilherme de Almeida: "Se és capaz de manter tua calma,quando todo mundo ao redor já a perdeu e te culpa.De crer em ti quando estão todos duvidando,e para esses, no entanto, achar uma desculpa. Se és capaz de esperar sem te desesperares,ou, enganado, não mentir ao mentiroso.Ou, sendo odiado, sempre ao ódio te esquivares,e não parecer bom demais, nem pretensioso. Se és capaz de pensar - sem que a isso só te atires -,de sonhar - sem fazer dos sonhos teus senhores -.Se, encontrando a Desgraça e o Triunfo,conseguires tratar da mesma forma a esses dois impostores. Se és capaz de sofrer a dor de ver mudadas,em armadilhas as verdades que dissestee as coisas, por que deste a vida, estraçalhadas,e refazê-las com o bem pouco que te reste. Se és capaz de arriscar numa única parada,tudo quanto ganhaste em toda a tua vida,e perder e, ao perder, sem nunca dizer nada,resignado, tornar ao ponto de partida. De forçar coração, nervos, músculos, tudo,a dar seja o que for que neles ainda existe.E a persistir assim quando, exausto, contudo,resta a vontade em ti, que ainda te ordena: Persiste! Se és capaz de, entre a plebe, não te corromperes,e, entre Reis, não perder a naturalidade.E de amigos, quer bons, quer maus, te defenderes,se a todos podes ser de alguma utilidade. Se és capaz de dar, segundo por segundo,ao minuto fatal todo valor e brilho.Tua é a Terra com tudo o que existe no mundo,e - o que ainda é muito mais -és um Homem, meu filho!" Não sei se alguém se dispõe a ler poesias hoje. Menos ainda se procura refletir sobre o que lê. Vamos fingir que sim e continuar a aborrecer o leitor. Não me consta que a escritora Ayn Rand tenha escrito algum livro de poesia. Filósofa russa e judia, nasceu em São Petersburgo, em 1905, recebendo o nome de Alissa Zinovievna Rosenbaum. Migrou ainda jovem da Rússia para os Estados Unidos, talvez pressentindo o que viria a ocorrer na Europa. Ali morreu em 1982, após haver-se dedicado incansavelmente à causa da paz. Foi certamente inspirada em Kipling que ela escreveu: "Se, para produzir, você precisa obter autorização de quem não produz nada;se o dinheiro flui para quem negocia não com bens, mas com favores;se muitos ficam ricos pelo suborno e por influência, mais do que pelo trabalho;se as leis não nos protegem dos maus elementos, mas, pelo contrário, são eles que estão protegidos de você por elas;se a corrupção é recompensada e a honestidade se converte em auto-sacrifício;então saiba que a sociedade em que você vive está fatalmente condenada." Repare no pormenor: ela morreu em 1982. Num confronto intelectual com o cardeal Carlo Maria Martini, Umberto Eco, que se diz agnóstico, analisa os tempos presentes: "Estamos vivendo (nem que seja da maneira desatenta a que fomos habituados pelos meios de comunicação de massa) os nossos terrores do fim; e poderíamos até mesmo dizer que o fazemos no espírito do bibamus, edamus, cras moriemus, celebrando o fim das ideologias e da solidariedade, na voragem de um consumismo irresponsável." E indaga: "Há uma noção de esperança (e de responsabilidade em relação ao amanhã) que pode ser comum a crentes e não crentes? Em que poderia ela basear-se? Que função crítica pode assumir um pensamento do fim que não implique desinteresse pelo futuro, mas sim um julgamento constante dos erros do passado? Do contrário, seria justo que, mesmo sem pensar no fim, aceitássemos que ele se aproxima, nos instalássemos diante da televisão (sob a proteção de nossas fortalezas eletrônicas) e esperássemos que alguém nos divertisse, enquanto as coisas seguiriam como estão. E ao diabo os que virão." Algumas pessoas, em cujo rol me incluo, têm o atrevimento de achar que podem contribuir para melhorar o mundo que o rodeia, seja no âmbito familiar, profissional social, mundial ou até mesmo universal, lutando para que a mentalidade reinante não seja a do "comamos e bebamos porque amanhã morreremos". Até mesmo um Pablo Neruda, aquele poeta que muita gente só leu no cinema (clique aqui), sem saber que o filme se baseia num livro do também chileno Esteban Antonio Skármeta Branicic (clique aqui), por exemplo, não deixa por menos e nos adverte: "Quando o tempo nos vai comendo com seu cotidiano decisivo relâmpago, e as atitudes firmadas, as confianças, a fé cega se precipitam e a elevação do poeta tende a cair como o mais triste nácar cuspido, perguntamo-nos se já chegou a hora de nos envilecermos. A dolorida hora de olhar como se sustenta o homem à força de dentes, à força de unhas, à força de interesses." Observe que num mesmo dia um respeitabilíssimo jornal descreve, com riqueza de pormenores, patifarias cometidas por membros do Poder Legislativo, do Poder Executivo e do Poder Judiciário nacionais. Como esperar, então, que o primeiro aprove leis moralizadoras do Serviço Público? Ou que os atuais ocupantes do segundo concretizem aquilo que um humorista chamou, trocadilhescamente, de "espanada nos Ministérios"? Ou que o Judiciário empregue o chamado "ativismo judicial" (clique aqui) para que a punição de seus membros, quando se torne necessária, não seja algo meramente formal como até aqui tem sido? Teria chegado a hora de mudarmos os nossos conceitos, tornando-nos vis, com o sugere o poeta chileno? Em minhas leituras da juventude, aprendi alguma coisa, que repassei aos filhos, menos por palavras e mais pelo comportamento. Ser íntegro, aprendi, é, antes de tudo, ter uma tábua de valores pendurada na parede da consciência; é elaborar pensamentos e raciocínios partindo dessa tábua, assim como um jurista analisa uma lei, um decreto ou uma portaria tendo em mente os princípios constitucionais; é falar sendo fiel ao raciocínio assim desenvolvido; e é agir sendo fiel ao que diz. Pois outro dia, entre sério e brincalhão, o Alexandre desabafou: minha vida seria bem mais fácil se eu não tivesse levado a sério o que o meu pai me ensinou. Como diz meu amigo Dalmo Dallari, "um dos problemas fundamentais da humanidade tem sido o desafio ético em face da liberdade. O reconhecimento do que é ético deveria implicar a responsabilidade de agir segundo a ética, mas para muitas pessoas é difícil manter essa coerência. Eis a nossa fraqueza, a nossa fragilidade humana." Certa vez, numa dessas conversas de botequim, comentei algo com o filho do Procurador de Justiça Carlos Alberto Gouvêa Kfouri e ele revelou meu segredo, ao apresentar o "Menas verdades": "Passaria horas aqui esmiuçando coisas e loisas e mariposas até correr o risco de estragar o prazer da descoberta. Razão pela qual fico por aqui, com uma frase que diz tudo e que aprendi com o Dr. Suannes: Se não consigo mudar o mundo, que o mundo não me mude." O que o Juca Kfouri não disse no tal prefácio é que, quando eu me chamar saudade, como disse o poeta (clique aqui), gostaria de que houvesse na lápide de mi casita (clique aqui) esta inscrição singela: Este passou a vida tentando. Acho que a Ayn Rand não reclamaria do plágio.  
sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Revisões

  Tenho inúmeras qualidades e pouquíssimos defeitos. Não é o que a maioria das pessoas pensa, mas o que importa é que estou convencido disso. Uma de minhas qualidades é imaginar que eu teria contribuído para que o trabalho de outrem fosse melhor. Bastaria que me tivessem consultado antes de concluir o que estavam fazendo. Como geralmente eles não sabem o que é a modéstia, está aí o mundo que eles vão deixar aos nossos herdeiros. Cito um exemplo: o criador do mundo, quando resolveu fazer o tal bonequinho de barro, não tinha experiência nenhuma, basta ver que nascemos com dedos nos pés e jamais, ao longo da vida, os utilizamos para pegar algo. Sei que há controvérsias (clique aqui), mas a regra é essa. Fosse mais modesto e faria como o escultor grego que se pôs a consultar o sapateiro para saber exatamente como deveria fazer a sandália do Alexandre. Verdade que o tal sapateiro resolveu dar palpites no que diz com o saiote e o penteado do Alex e tomou um chega prá lá: "ne sutor ultra crepidam!". E tamos conversados. O criador do mundo, no entanto, não me consultou e fez o Adão com um par de tetas, que, como sabemos, no homem não serve para absolutamente nada. Ou serve e eu ainda não descobri. Já quando cogitou de construir a Eva ele, de fato, deu ao tal ornamento não uma, mas várias finalidades, uma das quais a estética. E olhe que ainda não haviam, ao que se diz na Bíblia, inventado o silicone. "Senhor, para que esses dois pontinhos no peito do animal homem se ele não vai aleitar?" eis o que eu teria perguntado. Onisciente, ele teria inventado uma desculpa qualquer, como se diz num dos Evangelhos, certamente apócrifo, tal como teria ocorrido em Minas Gerais. Lá, Jesus teria chamado Pedro para uma viagem pelos grandes sertões do Guimarães Rosa. Que ele fizesse um matulão, onde poria um frango assado, para comerem quando sentassem para descansar. Isso feito, lá vão os dois vencendo aqueles caminhos tortuosos. Pedro vai ficando para trás e, guloso como um bom pescador, enfia a mão no embornal e retira uma coxa da ave, que come sofregamente. Chegando ao local da pousada, o mestre determina ao discípulo que lhes sirva da ave, quando toma conhecimento da molecagem do Pedro. "Esse é um tipo de ave que tem uma só perna" diz o malandro. O companheiro limita-se a olhar as nuvens, como quem diz "onde me meteste, pai!". Seguem a viagem e, em vista do calor sufocante, lá estão alguns jaburus descansando sobre um pé só, como soem fazer amiúde. Pedro, como bom advogado, não perde a ensancha: "Veja, mestre, foi uma dessas aves que eu assei para nossa merenda". O mestre agita os braços e as aves põem-se a correr, lá com as suas duas pernas de cada. Pedro não se dá por derrotado: "Eita hómi pra fazê milagre, sô!". O fato é que o Criador já havia cometido o mesmo erro quando fizera, sei lá como, os demais primatas. Gorilas enormes com aquele par de tetas que os gorilinhas sabem que não servem para absolutamente nada. Já as tetas da mãe, diz a eles o manual de uso, é só procurar no meio daquele pelame todo que ele lhe matará a fome. Contos, romances e filmes são meu alvo predileto para a revisão que fatalmente melhoraria a obra de meu colega, mesmo sabendo que ele certamente não a acatará. Um dos trabalhos que eu poderia ter aprimorado é o quase irretocável filme do Martin Scorsese "Os Infiltrados" (em inglês, The Departed). Sabemos todos que o Martin, oriundo, da vero?, sentia-se vocacionado para o sacerdócio. Por um desses caprichos do destino, tornou-se famoso com filmes que mostram a típica famiglia italiana. Isto é, a Máfia, cujos componentes, como sabemos, não dispensam a missa dominical, com direito até mesmo à santa comunhão. Diz-se que, diante de um desses capo di tutti capi, o Cristo da cruz teria dito "És um homem de sorte, D. Valério". O mafioso teve um frisson. "Por que dizes isso, Senhor?". E o crucificado: "Se os meus pés não estivessem pregados te dava um pontapé na bunda e te punha pra correr, suo mascalzone". Duvida? Pergunte ao Coppola, que, por sinal, fabrica um vinho tinto que custa o triplo de um vinho chileno. Consta que, diante de brigas entre as casas reais, pois os nobres de Nápoles não aceitavam a intromissão ali da Casa de Bourbon, veio o grito de M.orte A. la F.rancia I.tália A.nela. "A Itália deseja a morte da França". Nenhum filme do Scorsese nem do Coppola cuidou disso, mas lá estão os "bons companheiros", abrindo caminho a tiros e cacetadas. Sin non è vero è bene trovato. Por falar em revisão (na linguagem cinematográfica se diz edição), a fantástica cena da morte de Don Corleone no primeiro filme da trilogia célebre, antecedida da brincadeira dele com o neto, não estava prevista no roteiro. O cinegrafista, fã de carteirinha, como nós todos, do Marlon Brando, impressionou-se com o modo descontraído com que o grande astro brincava com a criança, fazendo uma dentadura com casca de laranja, durante uma pausa das filmagens, e continuou filmando. Quando o diretor viu a cena, não deixou por menos. Incluiu no filme. Si non è vero et cætera e tal. Pois num filme mais recente sobre a cosa nostra, dirigido pelo Scorcese, não é o Robert de Niro que chefia a famiglia, até porque ela não é italiana, mas irlandesa, tanto quanto aquela que o Paul Newman chefiava no também excelente "Estrada para Perdição" (clique aqui), no qual o nome da cidade aparece como um personagem do filme, com uma interpretação soberba do Tom Hanks. Aqui (clique aqui) o chefão é o Jack Nicholson e tudo se passa num jogo de aparências: este finge que é policial mas é bandido, enquanto aquele finge que é bandido mas é policial. Ou talvez não haja diferença nenhuma, sei lá. O fato é que tudo se encaminha para o grand finale. Claro que não vou contar o final, para não tirar a surpresa de quem ainda não viu o filme, mesmo porque não sou tão cretino como meus críticos supõem. Imagino o que eu ouviria de meu amigo Alfredo Sternheim, crítico de cinema da velha guarda, se violasse esse código de honra. Mas se você viu o filme, recorde a cena derradeira, apresentada como se fosse o final de uma ópera italiana. O morador abre a porta de seu apartamento e dá de cara com alguém, que lhe causa espanto. A câmera mostra os sapatos da desagradável visita, que estão cobertos para não deixar marcas no assoalho. Mau presságio. A câmera vai subindo lentamente e mostra as mãos da visita, enluvadas, sendo que a mão direita empunha um revólver. Dois tiros e pronto. Fim do filme. Responda: Precisava mostrar mais do que isso? Que diferença nos faria se o rosto da visita não aparecesse? Cartas para a redação.
sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Puns

  Como diz o David Letterman (clique aqui), "ten years ago we had Johnny Cash (clique aqui), Bob Hope (clique aqui) and Steve Jobs (clique aqui). Nowadays, we have no cash, no jobs and no hope". Minha inglesinha, você fica com esse ai, ai, em lugar de abrir o olho. Caia em si e vá ao mar. Aliás, é melhor rir aqui do que lá. Que achou desse intróito? Diz o Houaiss (repare a intimidade) que trocadilho é um jogo de palavras que apresentam sons semelhantes ou iguais, de que resultam equívocos por vezes engraçados. Surpreendentemente para mim, ele indica um sinônimo: calembur. O mesmo diz o Aurélio, que nos apoda, meu caro Cearucho, de calemburistas. Positivamente nós não merecíamos isso. O curioso é que a palavra francesa calembour (jeu de mots fondé sur la différence de sens entre des mots qui se prononcent de la même façon) corresponde ao nosso quiproquó, que, antes de ser nosso, era dos romanos, para indicar um equívoco: usar a forma qui onde o certo seria usar a forma quo. Pois a palavra inglesa quibble teria vindo do latim quibus. Que é um quibble? A play on words, diz o Webster's. Ou seja, un jeu de mots. Pode? Ocorre que, da mesma forma como no Brasil o tal calembur só existe nos dicionários, o mesmo acontece nos países de língua inglesa no que diz com o tal quibble. Trocadilho, lá, ou seja, a play on words, tem o pitoresco nome de pun. O nome em si já é um jeu de mots. Acho até que já falei nisso aqui (clique aqui). Mesmo quem não é muito afiado em inglês como eu sabe que o risco de usarmos uma palavra por outra é muito grande. Certa ocasião, empreendi uma conversação com o motorista de táxi nos EUA. Não porque eu falasse tão bem que seria facilmente compreendido, mas porque, sendo ele também estrangeiro, tinha um vocabulário tão limitado quanto o meu e dizia as frases escandindo as palavras, como se fosse um Frank Sinatra cantando (clique aqui), para ser compreendido. Lá pelas tantas ele perguntou qual era minha profissão. Sem pensar muito, banquei involuntariamente o Cearucho: "liar" disse eu, ou seja, mentiroso. Ele caiu numa gargalhada, dando-me tempo de corrigir: "sorry, I'm a lawyer", disse eu. E ele: "same thing". Agora quem gargalhou fui eu. É conhecida a dificuldade que muitos estrangeiros, como os alemães, têm em pronunciar diferentemente "avô" e "avó" tal como fazemos nós, brasileiros e portugueses. Em compensação, muitos estudantes brasileiros confundem a pronúncia de "song of a beach" com a de "son of a bitch", fazendo puns involuntários. O hábito de incluir trocadilhos nas frases é um vício como tantos outros e que, como tantos outros, irrita quem não tem aptidão para fazê-los. Diz-se que a arte do trocadilho é tão velha como a literatura. No Brasil, quando se toca no assunto, vêm-nos à mente os nomes de Emílio de Menezes e de Bastos Tigre. Tantos trocadilhos fizeram que é difícil dizer se este notável jogo de palavras é da autoria de um ou de outro: tendo hérnia, ele usava uma funda, que comprimia aquela protuberância. Certo dia, ele teria esquecido a funda num outro compartimento da casa e a empregada veio à sala trazer-lha. "Aqui está o seu cinto", disse ela. E ele: "Não consinto que você confunda cinto com funda". Há quem jure que o autor da troça não foi nenhum dos dois (clique aqui), veja como são as coisas. Atribui-se a ninguém menos do que Luís Vaz de Camões a autoria destes versos, onde a palavra pena é empregada em mais de um sentido: "Aviva os espíritos,pois em teu favor sou,esta pena que te doufará voar teus escritos.E dando-lhe a padecertudo o que quis que pusesse,pude, enfim, dele dizerque me deu com que escrevero que quis que escrevesse." Também eu cometi dos meus: "Sou rio de água serena,ao mar caminho no trilho.Por teu sorriso, morena,até faço trocadilho." Pensei na elaboração de um livro que permitisse aos professores de inglês brincar com os alunos, a partir de homofonias e homografias. Trata-se de um diário escrito por uma menina, que tem um irmão menor, André, cuja esperteza irrita sobremaneira a irmã. A redação, portanto, deve buscar corresponder ao modo como uma criança elaboraria as frases. Algo como isto: "Jeux de mots means 'games of words'. For instance, as my father told me, when I say J'ai deux mots I'm saying 'I have two words' in French, but the sound is the same of jeux de mots. The same or almost the same, because two things absolutely the same that I know are only two Japanese or two Chinese boys. Isn't? That's what I learned in the school. One day, in an unexpected way, Andre asked our father (he's my lit brother, you see?): 'Dad, how can you be dad if you're alive?' Mommy got astonished. 'Bill', she said her husband, who is my dear father, 'you must correct that boy. He's getting impossible with that kind of joke!' Bill is the nickname mum put over her husband, because his name is William, a very nice name in my opinion and I don't know why people like mum must to transform it in a little sound that looks like the noun my father William uses to pronounce to the waiter, at the restaurant, when dinner is over, putting his left arm up all the time. The boy laughed, looking at his mother, that is my mother as well, because he his my brother, as you know, but I dislike him because he is all the time transforming words and you need to pay attention to them to get what that boring boy is trying to tell you. 'Whalter is that, my-me?' Walter is the name of our uncle, our mother's brother, and Andre loves to use it for his puns. 'Whalter hour u doing?' he actually asks to me when I am in my room reading some book or at the phone or hearing Diana Kroll or other singer I love. 'It's note your bizz, and chat-up your mouse cause I'm needling to be along' I answer using that stupid kind of phrases he loves to use and I hate when it's not me who is using them. That earwig!." Tomo a liberdade de pô-lo aqui porque sei que meus leitores são modernos (clique aqui). A esta altura você talvez esteja indagando o que faz aqui aquele esquisito parágrafo inicial. Trata-se de puns bilíngues: "Minha inglesinha, você fica com esse ai, ai, em lugar de abrir o olho (eye). Caia em si e vá ao mar (sea). Aliás, é melhor rir lá do que aqui (here)." Como me disse o Cearucho, com conhecimento de causa, uma gripe faz um inglês cego ver (to see). Sorry, deer.
sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Extrapolamentos

  "Ridendo castigat mores." Gil Vicente ou Jean-Baptiste Poquelin, o popular Molière? "As pessoas que tendem para o excesso, na ânsia de gracejar, são considerados bufões vulgares, esforçando-se por provocar o riso a qualquer preço. Seu interesse maior é provocar uma gargalhada, e não dizer o que é conveniente e evitar o desgosto naquelas pessoas que são objeto de seus gracejos." Aristóteles, citado por Manuel Alceu Affonso Ferreira, em petição onde reclama indenização por danos moraisem razão de ofensas cometidas contra a mãe grávida e o nascituro "Acho o politically correct muito chato, mas, por outro lado, a falta de educação é inadmissível." Washington Olivetto O psiquiatra Flávio Gikovate, depois de haver atendido a mais de 7 mil pacientes e escrito mais de uma dezena de livros relativos ao chamado "relacionamento amoroso", resolveu agora indagar de si mesmo se hoje, com a experiência adquirida ao longo desses 40 anos, faria certas afirmações que fizera quando essa experiência era menor. Ele, como nós todos, dividia os seres humanos em dois grupos: eles, os egoístas, e nós, os generosos. "Pensava na generosidade como virtude e no egoísmo como vício", diz ele. Isso ainda vale hoje em dia? Não vou buscar resumir suas reflexões, mas tentar o leitor com uma afirmação dele bastante sintomática: "A verdade é que a generosidade se estabelece em decorrência de uma fragilidade e se reforça por meio da intromissão da vaidade e do fato de ser ela uma conduta valorizada como virtude pelas crenças sociais em que temos vivido". Seria, porém, a generosidade efetivamente uma virtude? Se fôssemos falar das virtudes não haveria espaço. Pense nisto: nestes tempos pragmáticos, para não dizer cínicos, ainda há lugar para a Ética, especialmente quando consideramos suas duas leis básicas: "faça para alguém aquilo que você espera que ele lhe faça" e "não faça para os outros algo que não gostaria que lhe fizessem"? Certo humorista, bem humoradamente, dizia outro dia estar em risco de perder o emprego porque não pode mais fazer piada de português, nem de bêbado, nem de judeu, nem de árabe, nem de loira, nem de morena, nem de negro e, se bobear e fizer piada de papagaio, vai ser processado pelo Ibama. Ele falava, já se vê, do "politicamente correto", esse exagero fantasiado de correção moral. É próprio do humorista ser generoso? Há uma ética na atividade humorística? A verdade é que hoje em dia não há mais distinção entre a fala das ruas e as conversas que se desenvolviam nos saraus e nas tertúlias, até porque não há mais tertúlias nem saraus. Não me lembro de ter dito, em minha mocidade, alguma inconveniência, alguma obscenidade que, naquele tempo, era chamada de palavrão. Entendia, como tantas outras pessoas, que esse linguajar era incompatível com a convivência social. Acompanhando o aperfeiçoamento das traduções dos filmes norte-americanos, verificaremos que a palavra shit, por exemplo, que antes era traduzida por droga, passou a corresponder, entre nós, à vulgar merda, e não se fala mais nisso. O fuck God, o son of a bitch e alguns outros menos votados passaram também por essa evolução. Certa aluna, já lá se vão décadas, procurou-me depois que saíram as notas das provas mais recentes, acompanhada de alguns colegas, que ali estavam para dar-lhe aquela força, como dizem eles. Em sua reclamação ela não deixou por menos: "mestre, você me fudeu!". Evolução? Se a linguagem atual dos jovens é assim tão "descontraída", faz sentido patrulhar a fala dos humoristas? Veja a diferença. Vamos que um humorista, desses que fazem a tal stand comedy, assim narrasse um fato a seu público: uma pessoa entrou no bar e pediu uma garrafinha de água mineral. Entregue a garrafa, aquela pessoa tentou abri-la puxando a tampinha. O garção interveio: "Não é assim que se abre a garrafa. É preciso torcer". E enfatizou: "Torcer!". A tal pessoa colocou a garrafa sobre o balcão e se pôs a gritar, levantando ritmadamente os braços: "Ga-rra-fi-nha! Ga-rra-fi-nha!" Contasse ele a mesma piada substituindo "pessoa" por "baiano", "português", "loira" ou "palmeirense", garanto que seus ouvintes iriam rir muito mais. Cariocas e paulistas sempre se bicaram, a partir de "verdades" discutíveis, como o pendor para o samba deles e o pendor para o trabalho dos de cá, mesmo porque São Paulo é "o túmulo do samba", no dizer de um carioca célebre (clique aqui). Com ou sem futebol, argentinos e brasileiros trocam botinadas por tudo e por nada. Franceses e belgas então, nem se fale. Longe de mim defender um humorista que falte ao respeito devido às pessoas, a pretexto de estar realizando o seu trabalho. Ganhar dinheiro à custa da dignidade alheia, expondo pessoas perfeitamente identificáveis ao ridículo, parece-me coisa realmente inadmissível. Estamos diante de manifestação de egoísmo em elevadíssimo grau, donde sua reprovabilidade. Pretendo, porém, ressaltar que todos nós temos nossos preconceitos, por mais generosos que nos consideremos. A Ordem dos Advogados do Brasil, seção de São Paulo, tinha, naquela ocasião, além da Comissão de Direitos Humanos, de que o Ranulfo e eu fazíamos parte, subcomissões que cuidavam dos direitos das chamadas "minorias", a saber, a Subcomissão dos Direitos das Crianças, a Subcomissão dos Direitos da Mulher e a Subcomissão dos Direitos dos Negros, até porque ali não havia essa besteira de "afrodescendente", expressão erradíssima, pois faz supor que na África não nascem pessoas brancas. Se, por exemplo, o excelente escritor moçambicano Mia Couto (clique aqui) vier a casar-se com uma norte-americana loira, seu filho, embora afrodescendente, não será negro. Eis uma demonstração da estupidez daquela preconceituosa denominação, tão cretina como o segregacionista sistema de cotas universitárias, que, pretendendo solucionar um problema, cria outro, muito mais grave, pois, em nome da integração, oficializa a segregação racial, que jamais houve no Brasil, ao reverso do que sucedeu lá em cima (clique aqui). Voltando à OAB, os colegas de outras comissões costumavam, naquela época, referir-se aos que tratávamos dos Direitos Humanos fundamentais como "aqueles sonhadores". Numa das sessões da comissão de que eu fazia parte, indaguei se os homossexuais já constituíam maioria, pois eu tinha em mãos dois casos envolvendo queixa de discriminação apresentada por gays. "Se há subcomissão relativa aos membros do sexo feminino e há subcomissão relativa aos negros, por que não há uma Subcomissão dos Direitos dos Homossexuais?" indaguei. "Será porque eles já formam maioria em nossa sociedade?" brinquei. Um dos membros da comissão, que era uma advogada nascida em Pernambuco, negra como a asa da graúna, indignou-se. Negra e mulher, além de inflamada, como era de seu perfil, levantou dramaticamente os dois braços e lançou seu surpreendente protesto, carregando no sotaque: "Meu caro Suannexx, você agora exxtrapolou!". Quem sabe quando uma mulher negra e lésbica vier para a Comissão de Direitos Humanos a coisa mude, pensei dizer, mas evitei extrapolar mais ainda.
sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Nos tempos do peculato

  "A rigor, Lei e Direito não são a mesma coisa. Ele geralmente aparece em virtude do que diz a lei. O Direito é a base, é o padrão de medida, é o critério graças ao qual a decisão justa aparece". Franz Neumann, citando Santo Tomás de Aquino "A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência". Constituição Federal do Brasil, artigo 37 No tempo em que os Promotores Públicos lecionavam Direito Penal, aprendia-se que o crime de peculato caracteriza-se pelo fato de o dinheiro público ir parar indevidamente no bolso do seu administrador ou de alguém a ele ligado. Nos primórdios da civilização, diziam eles, o comércio era realizado à base do escambo. Uso essa palavra, em lugar de seu sinônimo troca, para mostrar como isso é velho. Quem produzia grãos trocava o seu excesso com quem criava gado. Com o tempo, o gado (pecus) passou a ser considerado moeda de troca, tanto no que diz com o fornecimento de bens quanto de serviços. Quer uma saca de arroz? Então passe para cá esse cabritinho. Quer uma dentadura? Que tal me dar um leitãozinho? Até que se inventasse a moeda, as carteiras eram, na verdade, esses carrinhos de mão em que hoje transportamos tijolos. Daí que a palavra pecúnia foi inventada para referir-se a algo que representa um valor na hora da troca. Para saber a quantos quilos de feijão corresponde uma galinha era preciso usar um padrão, sob pena de não chegar-se a um acordo. Assim, o tal escambo foi substituído trocando-se a coisa a comprar por algo que representava o preço pedido: a pecúnia. Dificilmente nos dias de hoje relacionamos a atividade agropecuária com a atividade bancária, muito embora os banqueiros gostem de falar em atividade pecuniária. Assim é a vida. Diziam então os Promotores em suas aulas que daí surgiu o crime de peculato, como sendo o furtum pecuniae publicae vel fiscalis. Muito antes de os nossos lulistas assumirem o poder, com a sofreguidão que vemos todos os dias nas páginas policiais dos jornais, já se falava em "Peculato por apropriação" ("apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse"), em "Peculato por desvio" ("desviar o funcionário público dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse"), em "Peculato-furto" ("se o funcionário público, embora não tendo a posse do dinheiro, valor ou bem, o subtrai, ou concorre para que seja subtraído, em proveito próprio ou alheio, valendo-se da facilidade que lhe proporciona sua condição de funcionário"), em "Peculato-estelionato" ("apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, que recebeu por erro de outrem"). O avanço tecnológico trouxe consigo o "Peculato eletrônico" ("alterar dados eletrônicos existentes em repartição pública para a obtenção de vantagem indevida para si ou para outrem"). É claro que tal conduta somente será punível se o agente público agir de má-fé. Entretanto, mesmo que ele seja apenas um funcionário descuidado, estaremos diante de modalidade mais branda, o "Estelionato culposo", pois ele agiu com imprudência, com negligência ou com imperícia. Esse não é o caso de nossos políticos, positivamente. Quem já não viu na casa de um funcionário público papéis com o timbre da repartição pública onde ele trabalha sendo utilizado pelo filho dele para fazer seus rascunhos? Veja se isso não se enquadra na definição de peculato. Quem já não viu funcionário público ou seu parente a utilizar automóvel oficial para locomover-se no exercício de atividade particular, como fazer uma prosaica compra num supermercado? A utilização do carro em si tem o apelido de "Peculato de uso", que algumas legislações acham bobagem punir como crime. Mas, e o combustível gasto na viagem? Entretanto, a julgar pelo que tem ocorrido em nosso país nos anos mais recentes, parece que os nossos Promotores Públicos atuais formam seus conceitos jurídicos pelo que escrevem os jornalistas, que só sabem falar em "corrupção" e "formação de quadrilha". Quando foi a última vez que você viu a palavra peculato escrita em página de jornal? E exemplos não faltam: certa ministra foi surpreendida comprando chiclete ou camisinha com a utilização de dinheiro público (o tal "cartão funcional") ao passar pelo free shop do aeroporto. Certo ministro pagou a conta do motel com cartão equivalente. E por aí vai. Isso para não falar na praga das ONGs, que, muito embora digam no nome serem "não governamentais", esbanjam dinheiro público a mais não poder. Considerando-se que para a lei é coautor desse tipo de crime mesmo quem não seja funcionário público, bastando que se associe a um servidor público, bem como contempla a possibilidade de "despersonalização da pessoa jurídica", quando demonstrado que ela é mera empresa de fachada (como aquela de certo ex-ministro que é composta de dois únicos sócios: ele e a mulher, sendo que ela, além de só conhecer as atividades domésticas, detém simbólico 1% do capital social), é justo indagar: que aconteceu a todos esses? Que diz a isso tudo o Ministério Público? A revista Veja calcula que o montante da pecúnia desviada no Brasil pelos peculatários, nos últimos dez anos, é algo digno de um Guinness Book: R$ 720.000.000.000,00. Só ano passado teriam ido para o bolso dos peculatários cerca de R$ 85.000.000.000,00, o que mostraria que a tal "espanada nos ministérios", expressão inventada pelos correligionários da presidenta, é tão somente um trocadilho. A bola da vez tem o nome respeitável de um cantor da minha juventude (e da juventude do Caetano Veloso, cuja irmã, por insistência dele, tem o nome de uma canção cantada pelo Orlando Silva, o da nossa juventude), tendo contra si a palavra de um policial cujo nome corresponde a outro cantor de tempos passados, sucessor do "rei da voz". Uma das inúmeras trampolinagens atribuídas a Sua Excelência foi destinar verba oficial para ninguém menos do que sua esposa, disfarçada, como é a regra, em ONG. Segundo relatam os jornais, fundada pela tal atriz há pouco mais de seis meses, a empresa Hermana Filmes foi contratada pela ONG Via BR, que havia recebido vultosa verba do Ministério cujo titular é o marido da moça, para um trabalho de "assessoria". Ao que saibamos, a única experiência que tem Anna Cristina Lemos Petta, uma obscura atriz de quem certamente você jamais ouviu falar, decorre, ao que tudo indica, do fato de ser casada com o Orlando Silva ministro. Caso você se interesse pelo "pensamento crítico" daquela "ativista política" e seu irmão, não se acanhe (clique aqui). Descoberta a má aplicação do dinheiro público, até porque a maioria dessas ONGs limitam-se a prestar assessorias para coisa nenhuma e fazer projetos de obras que não saem do papel, a mulher do ministro correu para devolver o dinheiro. Só faltou dizer que míseros trocados não justificam tanta celeuma. É possível que mais este caso de peculato seja posto de lado, sob o argumento de que, depois de descoberta a maracutaia, o dinheiro foi devolvido. Informo a quem se interessar pelo assunto que os Promotores Públicos daquele tempo falavam, de fato, numa tal "ponte de ouro", que a lei penal colocava, e ainda coloca, à disposição dos criminosos, para que retomem o rumo perdido. Por exemplo: alguém saca da arma de fogo e faz dois disparos contra seu desafeto, errando, porém, o alvo. Tentativa de morte, já se vê. Podendo efetuar novos disparos, o agente acha melhor por o revólver no bolso e voltar para casa. Dirá então a lei que, como ele desistiu voluntariamente de consumar o crime de homicídio, essa desistência deve ser levada em conta, para desconsiderar a tentativa feita por ele. Outro caso: um professor de faculdade vai à biblioteca da faculdade e, como não é raro, leva um dos livros para casa, sem proceder ao devido registro de saída. Crime contra o patrimônio. Antes, porém, que a direção da faculdade tome conhecimento do fato, ele, espontaneamente, recoloca o livro na estante de onde o havia surrupiado. Assunto encerrado. No caso do peculato, há uma regra especial: "O condenado por crime contra a administração pública terá a progressão de regime do cumprimento da pena condicionada à reparação do dano que causou, ou à devolução do produto do ilícito praticado, com os acréscimos legais". Nem o direito à moleza da anedótica "prisão domiciliar", que tanto nos envergonha perante os penalistas do Exterior, os peculatários, em princípio, têm. Há mais: também o chamado "princípio da bagatela" não lhes assiste, pois, como afirmou o STJ no Recurso Especial 1.060.082-PR, "inaplicável o princípio da bagatela ao peculato eis que tal crime atinge não só a esfera patrimonial, mas também a probidade administrativa". Além disso, "a reparação do dano antes do recebimento da denúncia não torna atípica a prática descrita na peça acusatória, constituindo tal circunstância apenas causa de diminuição da pena". Não sei em que vão dar todos esses escândalos que estamos cansados de ver no noticiário. Sei que, segundo me contou um líbio muito bem informado, os rapazes que executaram sumariamente o Kadafi teriam sido levados a isso, segundo seu advogado, porque descobriram no bolso da roupa do ditador uma passagem aérea para o Brasil. "Vamos que ele chegasse a tempo ao aeroporto" dirá, segundo meu bem informado amigo, o advogado da tribuna do tribunal, brandindo certo exemplar do Corriere Della Sera (clique aqui). Será absolvição na certa.
sexta-feira, 28 de outubro de 2011

arte de pensar, A

À memória de Steve Jobs, um homem que pensava e fazia Estatisticamente falando, quantas pessoas receberão este texto? Dessas pessoas, quantas iniciarão sua leitura? Dessas, quantas o lerão até o fim? Dessas poucas, quantas refletirão sobre o seu conteúdo? Dessas, quantas expressarão por escrito seu pensamento a respeito daquilo que leram? Acompanhe o que acontece na seção destinada aos leitores deste noticioso e tire suas conclusões. Estivéssemos na Idade Média, quais seriam as respostas a essas mesmas perguntas? E, no entanto, pessoas, desde a invenção da escrita, procuram comunicar-se. Hoje em dia, até mesmo durante uma sessão de cinema noto algum ansioso manipulando seu telefone celular, a transmitir a alguém algo que lhe veio à mente. Não dá para esperar o término da exibição do filme? Ele, efetivamente, está "vendo" aquele filme? Saberá resumi-lo a alguém depois da sessão? Quando isso tudo começou? Os primeiros seres humanos, seja lá o nome técnico que se lhes dê, tinham um problema: a sobrevivência. Isso significava terem de obter alimento e não se deixarem transformar em alimento alheio. Essa necessidade dúplice levou-os a inventarem um instrumento que os auxiliasse a comer carne fornecida por animais de outra espécie e, ao mesmo tempo, não serem comidos por animais mais fortes (clique aqui). Mais tarde o porrete foi substituído pela lança, esta pelo arco e flecha, aperfeiçoando-se a arte de matar, com riscos cada vez menores para o candidato a matador. De geração em geração o cérebro do ser humano foi-se aperfeiçoando, até que aquele porrete inicial chegasse à bomba atômica, a coroação na arte de atacar e defender. O cérebro humano chegou à tecnologia, que, por exemplo, levou Santos Dumont a tornar real o sonho de Ícaro e de Leonardo da Vinci. Isso foi bom ou foi mau? Santos Dumont, pelo menos, expressou dramaticamente seu desencanto por sua invenção (clique aqui). Certamente o Coronel Paul Tibbets, que deu a seu avião o nome da própria mãe (Freud explica?) e despejou as bombas atômicas, que, por sinal, tinham os freudianos nomes de "Little Boy" e "Fat man", sobre o Japão, a primeira sobre Hiroshima e a outra sobre Nagasaki, não tinha motivos para orgulhar-se de seu feito (clique aqui). Erich Fromm, já na década de 70, intuíra haver um sério perigo na associação entre o culto da tecnologia e as naturais tendências necrófilas do ser humano. "A fusão da técnica com a destrutividade não se mostrava ainda visível por ocasião da Primeira Guerra Mundial. Havia pouca destruição por parte dos aviões, e o tanque era apenas uma evolução das armas tradicionais. A Segunda Guerra Mundial trouxe uma mudança decisiva: a utilização do avião para a mortandade em massa. Os homens que jogavam as bombas mal tinham consciência de que estavam liquidando ou matando pelo fogo milhares de seres humanos, em poucos minutos. As tripulações aéreas eram uma equipe: um homem pilotava o avião, outro incumbia-se de sua navegação, outro jogava as bombas. Não estavam preocupados com o ato de matar e mal tomavam consciência de um inimigo. Estavam preocupados era com o manuseio de seu próprio avião, uma complicada máquina, construída segundo as linhas mestras referidas em planos meticulosamente organizados. O fato de que, como resultado de seus atos, muitos milhares e, algumas vezes, mais de cem mil pessoas seriam mortas, queimadas e mutiladas era, sem dúvida, do conhecimento deles cerebralmente, mas dificilmente compreendido sob o ponto de vista afetivo. Era um fato, por mais paradoxal que isso possa soar, que não lhes competia. Foi provavelmente por isso que eles - ou, pelo menos, a maior parte deles - não se sentiram culpados por atos que pertencem à lista dos mais horripilantes que um ser humano pode realizar". O nome do livro diz tudo: Anatomia da Destrutividade Humana. Do Erich Fromm para cá supúnhamos que a utilização do cérebro o aperfeiçoaria cada vez mais, até que ele descobrisse que, vivendo o ser humano em interação com os demais seres vivos, tudo aquilo que ele faz tem efeito boomerang: volta-se a favor ou contra ele. Logo, no limite, diminuir a destrutividade natural seria contribuir decisivamente para preservar o ambiente e, por tabela, a espécie humana. Em suma, o cérebro humano se imporia à tecnologia (clique aqui). Não preciso de muito esforço para demonstrar que isso tudo é só aparência. Na verdade, é o contrário o que vem acontecendo (clique aqui). Ou seja, o cérebro humano perde terreno a cada dia. Veja se não é. Teus avós sabiam o nome e data de nascimento de todos os seus parentes. O dia de aniversário de cada um era lembrado e festejado. Teus pais liam frequentemente livros e mais livros, e, com isso, armazenavam conceitos, que eram elaborados pelo cérebro, que, assim, produzia ideias. Além disso, sabiam o número dos telefones dos amigos e dos parentes todos. É claro que continuamos a festejar os aniversários dos amigos e parentes, mas quem nos lembra das datas respectivas não é mais o cérebro da vovó, mas o Facebook. O cérebro ficou dispensado desse trabalho. Não guardamos mais os números dos telefones no cérebro, mas no telefone celular. O cérebro ficou dispensado também desse trabalho. Não mais precisamos pensar para escrever um trabalho técnico ou científico. Vamos ao Google e baixamos tudo o que desejamos. "Cortar e arrastar" é o nome que se dá a uma operação que consiste em manter no computador dados e informações, que passam daqui para lá sem ser armazenados no cérebro. O cérebro ficou dispensado de mais esse trabalho. Se o cérebro evoluiu à medida que o homem foi precisando dele, agora que adotamos "cérebros externos" para armazenarmos dados passivamente (eles não interagem entre si como faziam quando eram armazenados no cérebro humano), é óbvio que ele, a cada geração, irá ficando cada vez menor, à medida que o abdome do ser humano ficará cada vez maior, principalmente pela pouca movimentação das pernas. E, obviamente também, ficaremos, cada vez mais, menos humanos, pois a tecnologia nos coisifica. A ideia de que o controle remoto da televisão está a nosso serviço é só em parte verdadeira. Dependo tanto dele que não sei o que fazer quando não o encontro. Levantar-me da poltrona, caminhar até o aparelho de televisão e mudar de estação acessando o botão do monitor? Nem pensar. É claro que mais tarde, para compensar as caminhadas naturais que eu não faço, eu vou "andar" na esteira rolante da academia de ginástica. Há coisa mais artificial do que isso? Tua avó fazia tricô e crochê que, além da economia, ativava o cérebro. Eu fazia tapetes de arraiolo. Você, porém, prefere ir (de carro) ao shopping comprar a blusa pronta. Ou até Miami, onde tudo isso é baratíssimo. Ela fazia bolo, docinhos, temperos caseiros e tanta coisa mais na cozinha. Você, hoje, prefere ver televisão e pedir pizza pelo telefone. Se eu disser que certamente seus filhos não sabem fazer nem empinar papagaio, também chamado pandorga ou pipa (clique aqui), nem jogar bolinha de gude, nem o jogo da amarelinha, nem pular corda, nem atirar pião de madeira, você me dirá que, em compensação, eles são craques no vídeo game. Aí eu lhe cito um mestre, que é do tempo em que pensar não doía tanto, Millôr Fernandes: "O jogo de xadrez é excelente para desenvolver a capacidade de jogar xadrez". Substitua "xadrez" por "vídeo game" e verá que estamos na mesma: qual foi o grande campeão de xadrez que contribuiu para o aperfeiçoamento da Humanidade? Alguns tecnófilos ficam abismados diante de certas proezas técnicas (clique aqui), que, realmente, nos impressionam. Acho importante deixar claro que, a meu ver, sem a tecnologia não teríamos o progresso que os tempos modernos, como diria Carlitos (clique aqui) nos proporcionam. Assim, antes que você diga que a homenagem ao recém-falecido gênio contradiz o que está no texto, eu já retruco: uma coisa é inventar o avião; outra coisa é o uso que alguém resolva fazer dele.
sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Nossos inesquecíveis mestres

  A partir de uma sugestão da Patrícia Coincidentemente, no último sábado, dia 15, exatamente no dia 15, revi, depois de tantos anos, o nosso professor Faraco. Não é mais aquele boa pinta dos tempos do colégio, mas está enxuto nos seus sessenta e tantos anos. Ainda justifica a brincadeira que o Coelho (ou seria o Castor?), lembra-se dele?, emérito trocadilhista, fez certo dia: "Ele se diz Faraco por modéstia. Temos professores bem mais faracos do que ele". O fato é que eu seguia apressada pela rua que me levaria ao largo da Matriz e encontrei meu antigo professor de latim, que eu não via há muitos anos. Ele exibiu um sorriso franco e me perguntou: "Maria, comes cara, quo is?" Achei estranho aquilo porque jamais havíamos conversado sobre minhas preferências gastronômicas. Tantos anos sem nos vermos e ele vem com uma pergunta dessas? Positivamente! Aliás, tenho alergia por frutos do mar. Comer caracóis, eu, nem pensar. Se é que caracol é fruto do mar. Foi o que eu lhe disse. Eu tinha pressa porque estava a caminho de um cinema, onde, segundo eu soube, estavam exibindo filmes bíblicos, um dos quais era mencionado frequentemente por meu falecido pai. "Maria, aonde vais?" indagou-me ele. "Soube que está sendo exibido um filme no cineclube da pracinha ali adiante e vou ver o filme de hoje, de que meu pai falava muito, pois se refere a uma passagem bíblica" respondi. Ele, curioso a mais não poder, quis saber o nome do tal filme. É uma expressão latina. O filme se chama Quo vadis?, disse-lhe eu. Eu quase sem tempo e ele queria porque queria continuar a conversa. "Por acaso você sabe o que quer dizer essa expressão latina?", indagou-me. Eu nunca fui boa aluna de latim, aliás, um aprendizado inútil. "Não tenho a menor ideia", disse-lhe eu, procurando safar-me daquela conversa que já estava me aborrecendo. "Aonde vais?" disse-me ele. Positivamente meu professor foi pego pelo alemão. Já não chega minha avó lá em casa que repete a mesma pergunta vezes e vezes? Agora vem esse camarada, que esteve escondido até hoje, a cruzar o meu caminho com perguntas impertinentes. Soube que está sendo exibido um filme no cineclube da pracinha ali adiante e vou ver o filme de hoje, de que meu pai falava muito, pois se refere a uma passagem bíblica. O nome do tal filme é uma expressão latina. O filme se chama Quo vadis? repeti, com ar de enfado. "Por acaso você sabe o que quer dizer essa expressão latina?" repetiu ele. "Não tenho a menor ideia", disse-lhe eu, procurando safar-me daquela conversa que efetivamente estava me aborrecendo. "Aonde vais?" disse-me ele. Agora não tenho mais dúvida: meu ex-professor foi efetivamente pego pelo alemão. Já não chega minha velhíssima avó que repete a mesma pergunta vezes e vezes e agora vem esse camarada, a cruzar o meu caminho com perguntas impertinentes. Soube que está sendo exibido um filme no cineclube da pracinha ali adiante e vou ver o filme de hoje, de que meu pai falava muito, pois se refere a uma passagem bíblica. O nome do tal filme é uma expressão latina. O filme se chama Quo vadis? repeti, com ar de enorme enfado, até porque eu já me via como uma velhinha alzheimática. "Por acaso você sabe o que quer dizer essa expressão latina?" repetiu ele. "Não tenho a menor ideia", disse-lhe eu, apressando o passo e procurando safar-me daquela conversa idiota. Fomos andando os dois na mesma direção e ele não desistia. "Aonde vais?" perguntou-me ele. Agora tenho certeza absoluta: meu ex-professor de latim efetivamente padece do Mal de Alzheimer. Está parecendo minha insuportável avó que repete e repete a mesma pergunta vezes e vezes e agora vem esse velhinho gagá cruzar o meu caminho com a mesma pergunta? Soube que está sendo exibido um filme no cineclube da pracinha ali adiante e vou ver o filme de hoje, de que meu pai falava muito, pois se refere a uma passagem bíblica. O nome do tal filme é uma expressão latina. O filme se chama Quo vadis?, repeti pausadamente, com ar de enfado ainda maior e apressando ainda mais o passo. "Por acaso você sabe o que quer dizer essa expressão latina?" repetiu ele. "Não tenho a menor ideia", disse-lhe eu, procurando safar-me daquela conversa que já estava desafiando o limite da minha paciência. Fomos andando os dois na mesma direção, quase correndo, até chegarmos ao cinema. Ele deu uma gargalhada e fuzilou: "Maria, comes cara, quo is? quer dizer Maria, companheira querida, aonde vais? E o nome do filme também quer dizer Aonde vais?". Deu-me um tchauzinho e me fez nova indagação, agora ainda mais descabida: "Mater tua mala burra est?". "Alto lá", disse-lhe eu, já nem ligando mais para o filme. "Xingando minha mãe por que?". Malum era o nome latino da maçã. Mala é o plural = maçãs. O vermelho era indicado tanto por rubrus como por burrus. Mala burra, portanto, quer dizer maçãs vermelhas. E est tanto pode ser a terceira pessoa do singular do presente do indicativo do verbo esse (ser) com a terceira pessoa do singular do presente do indicativo do verbo edere (comer). Foi o que ele me explicou, sempre rindo. Em seguida, certamente para melhorar o clima que se havia estabelecido, convidou-me para um chá da tarde, que aceitei, mesmo porque o filme certamente já havia começado, eu estava gostando do rumo da conversa e pretendia dar-lhe o troco. Entre goles de chá e mordiscadas nos brioches, a conversa prosseguiu e ele me disse o que faz quando está no mar e as águas começam a ficar revoltas: No vi oras. Estranhei a afirmação, pois já passava do meio-dia. "Teu relógio engasgou, mestre". Nado (no) com toda força (vi) na direção das praias (oras), explicou-me ele, sempre rindo. Conversa vai, conversa vem, indaguei se ele sabia onde ficava A TORRE DA DERROTA. Mandaram-me procurar ali o ZÉ DE LIMA RUA LAURA MIL E DEZ. Lá fui. "Chove muito ali", segundo me disseram, "e A MALA NADA NA LAMA". Sorte dos galináceos, disse eu, pois O GALO AMA O LAGO. "Em compensação", retrucou-me o informante, "O LOBO AMA O BOLO". Achei a casa e vi que dali SAÍRAM O TIO E OITO MARIAS. Agora era o meu mestre quem fazia cara de espanto, que fingi não perceber. "Conversei com eles e, pondo um ponto final em nossa entrevista, indaguei: ANOTARAM A DATA DA MARATONA?". O chá estava muito bom, mas eu tinha de ir. Fiz a última provocação. "Se o dono do bar se chamasse Adão, certamente ele se apresentaria: MADAM, I'M ADAM. E diria à esposa EVA, ASSE ESSA AVE". Ele riu que engasgou. E retrucou com a frase bastante conhecida: "SOCORRAM-ME! SUBI NO ÔNIBUS EM MARROCOS". "Caro mestre, foi um prazer enorme reencontrá-lo. Lembro-me que na classe todos diziam que você era um mestre na arte de construir palíndromos. Era um cobra no assunto, como dizíamos. Um amigo que não te conhecia certa vez até brincou indagando-me como era A CARA RAJADA DA JARARACA". O rosto dele se desanuviou de vez, pois já se havia dado conta dos palíndromos que eu havia incluído em minhas frases. Rimos muito os dois com a brincadeira, despedimo-nos, e ele, muito solene, arrematou: "RIR, O BREVE VERBO RIR". Sempre é tempo, meu caro mestre. Sempre é tempo.
sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Sobre mulheres e beleza

  "As muito feias que me perdoem, mas beleza é fundamental. Não há meio-termo possível. É preciso que tudo isso seja belo. É preciso que súbito tenha-se a impressão de ver uma garça apenas pousada e que um rosto adquira de vez em quando essa cor só encontrável no terceiro minuto da aurora. É preciso que a mulher que ali está, como a corola ante o pássaro, seja bela ou tenha pelo menos um rosto que lembre um templo e seja leve como um resto de nuvem. Mas que seja uma nuvem com olhos e nádegas. Nádegas é importantíssimo. Olhos, então, nem se fala. Que olhem com certa maldade inocente. Uma boca fresca (nunca úmida!) e também de extrema pertinência. É preciso que as extremidades sejam magras, que uns ossos despontem, sobretudo a rótula no cruzar das pernas, e as pontas pélvicas no enlaçar de uma cintura semovente. Gravíssimo é, porém, o problema das saboneteiras. Uma mulher sem saboneteiras é como um rio sem pontes. Indispensável é que haja uma hipótese de barriguinha e, em seguida, a mulher se alteie em cálice. E que seus seios sejam uma expressão greco-romana, mais que gótica ou barroca, e possam iluminar o escuro com uma capacidade mínima de 5 velas. Sobremodo pertinaz é estarem a caveira e a coluna vertebral levemente à mostra. E que exista um grande latifúndio dorsal! Os membros que terminem como hastes, mas bem haja um certo volume de coxas e que elas sejam lisas, lisas como a pétala e cobertas de suavíssima penugem, no entanto, sensível à carícia em sentido contrário. É aconselhável na axila uma doce relva com aroma próprio apenas sensível (um mínimo de produtos farmacêuticos). Preferíveis, sem dúvida, os pescoços longos, de forma que a cabeça dê por vezes a impressão de nada ter a ver com o corpo, e a mulher não lembre flores sem mistério. Pés e mãos devem conter elementos góticos discretos. A pele deve ser fresca nas mãos, nos braços, no dorso e na face mas que as concavidades e reentrâncias tenham uma temperatura nunca inferior a 37° centígrados podendo eventualmente provocar queimaduras do 1° grau. Os olhos, que sejam de preferência grandes e de rotação pelo menos tão lenta quanto a da Terra. E que se coloquem sempre para lá de um invisível muro da paixão que é preciso ultrapassar. Que a mulher seja em princípio alta ou, caso baixa, que tenha a atitude mental dos altos píncaros. Ah, que a mulher dê sempre a impressão de que, se se fechar os olhos, ao abri-los, ela não mais estará presente com seu sorriso e suas tramas. Que ela surja, não venha; parta, não vá. E que possua uma certa capacidade de emudecer subitamente e nos fazer beber o fel da dúvida. Oh, sobretudo que ela não perca nunca, não importa em que mundo, não importa em que circunstâncias, a sua infinita volubilidade de pássaro. E que, acariciada no fundo de si mesma, transforme-se em fera sem perder sua graça de ave. E que exale sempre o impossível perfume, e destile sempre o embriagante mel, e cante sempre o inaudível canto da sua combustão e não deixe de ser nunca a eterna dançarina do efêmero". Vinicius de Moraes, Receita de Mulher Bette Davis estava muito longe de poder ser considerada uma mulher bonita. Isso, no entanto, não impediu que ela conquistasse, por mais de uma vez, o prêmio máximo da Academia de Hollywood (clique aqui). Um dos pontos altos de sua carreira foi o filme All about Eve, cujo título no Brasil ("A malvada") tem uma pegadinha: a malvada não é a feia Bette Davis mas a bela Anne Baxter (clique aqui). Assim, o filme acaba denunciando uma cínica confusão cultural entre beleza e bondade. Aliás, ninguém imagina uma "bela adormecida" corcunda, com nariz grande e uma verruga na ponta. Ser bruxa, antes de significar alguém com tendência para o mal, significa alguém horrivelmente feia. Até a ciência enveredou por esse preconceito. Cesare Lombroso (clique aqui), por exemplo, tentou relacionar determinadas características físicas à psicopatologia criminal: forma ou dimensão anormal da calota craniana e da face, sobrancelhas fartas, dentes molares proeminentes, orelhas de abano grandes e deformadas, tamanho e forma anormais de mãos e pés, dentre outras características chamadas por ele de "estigmas físicos". A conhecida história "A bela e a fera", cuja autoria é desconhecida, assenta-se no mesmo preconceito. Das filhas de um rico comerciante, a mais nova era bonita, humilde, gentil e generosa. Quando o pai perdeu a fortuna, ela foi a única filha a dar-lhe apoio, aceitando a nova situação com dignidade. Certo dia, quando o pai voltava para casa, foi surpreendido por uma tempestade, vindo a abrigar-se num castelo que havia na região onde morava. Pela manhã, antes de partir, colheu do jardim uma rosa para levar à sua filha predileta. Sendo surpreendido pelo dono do castelo, um homem horroroso, este lhe impôs uma condição para ser solto: deveria o mercador trazer uma de suas filhas e entregá-la ao monstro. A filha mais nova, para salvar o pai, oferece-se para ficar em seu lugar e servir ao senhor do castelo. O monstruoso castelão foi-se revelando um homem sensível e amável, tratando a moça como uma princesa. Ela, aos poucos, também se apegou ao monstro que, insistentemente, a pedia em casamento, sem, porém, obter resposta. Autorizada pelo castelão, ela foi visitar a família. As irmãs, ao vê-la feliz, rica e bem vestida, sentiram inveja, passando a retardar o retorno dela ao castelo. Quando finalmente a moça conseguiu retornar, encontrou o castelão horroroso à morte, pois, sentindo-se desamado, por sua feiúra, não se alimentava mais, convencido de que sua amada não mais retornaria. A moça confessou ao monstro sua resolução de aceitar o pedido de casamento, pois também o amava. Mal pronunciou essas palavras, o homem se transformou num lindo príncipe, pois o amor da moça colocara fim ao encanto que o condenara a viver sob a forma de uma fera, o que só cessaria quando uma donzela aceitasse casar-se com ele. Casaram-se e foram felizes para sempre, como é próprio de todos os contos de fada. Como todo fato cultural, os contos de fadas expressam valores vigentes na comunidade onde aparecem. Aqui, no caso, filha é bela e boa, compreensiva, disposta ao sacrifício, enquanto a feiúra do homem é apenas o fruto de um encantamento, que desaparece em face do amor. Não pretendo aprofundar-me nisso, mas apenas fazer o registro e relatar uma fábula mais moderna. Você considera Gisele Bündchen uma mulher bonita? Tem o chamado "corpo escultural"? Tem a "cinturinha de vespa" das atrizes de meados do século passado? Os seios siliconados ameaçando explodir os botões da blusa, como uma Jane Russell daqueles pudicos tempos em que ainda não haviam inventado o silicone (clique aqui)? Qualquer que seja tua resposta, o fato é que a moça abafa no Brasil e circunvizinhanças, mercê daquele algo mais que só impropriamente alguém chamaria de sex-appeal, como no tempo da Norma Jeane Mortensen. Conheceu? (clique aqui). Os irmãos Kennedy subiram e desceram aquelas montanhas vezes sem conta. E você já ouviu falar em alguém chamada Iriny Lopes? Não? (clique aqui). Favor não confundir com o cartunista Laerte Coutinho, autor dos "Piratas do Tietê", além de tantos outros divertidos personagens (clique aqui) e que, surrealisticamente, resolveu transformar-se em personagem de si próprio (clique aqui). Pois a tal ministra, num acesso daquilo que a Melanie Klein chamaria de "síndrome esquizoparanóide" (segundo a Melanie, as crianças, quando nascem, apresentam dois sentimentos básicos: o amor e o ódio. Ela ama o "seio bom" e odeia o "seio mau", fantasiando no sentido de que, enquanto o primeiro é construtivo, o segundo representa a vingança, o ódio e a destrutividade direcionados a ela própria. Esse medo de vingança é chamado por ela de "ansiedade persecutória". Sempre que nos defrontamos com uma situação de perigo, real ou imaginado, como, por exemplo, ao avistarmos um cachorro latindo, temos a natural e instintiva tendência de fugir, como forma defensiva passiva, em lugar de enfrentar o causador do perigo, numa forma defensiva ativa e mais arriscada), resolveu, sabe-se lá movida por quais recônditos temores, investir contra o savoir faire de nossa Bündchen que, dentre outras proezas, deixou-se filmar, milionária embora (clique aqui), lavando o chão de casa, de joelhos e cantando Roberto Carlos. Exatamente por ser um "pau de virar tripa", como no meu tempo apelidávamos as moças magrelas, mas com muita autoestima, a Gisele aceitou fazer uma divertida propaganda de roupas íntimas (Clique aqui). Pra que? A sósia do Laerte subiu nas tamancas (clique aqui) e virou fera. Fosse deputada e certamente apresentaria um projeto de lei instituindo o dia nacional das feias. Ou, como é moda, um sistema de cotas que permitisse às menos dotadas fisicamente e às mal amadas participarem de comerciais e poderem mandar fazer casas milionárias, mesmo sem serem membros do governo Federal. O ridículo daquele descabido protesto ministerial é tal que, a essa altura, nem sabemos mais o que é realidade e o que é fantasia (clique aqui). E daí? E viva o bom humor!
sexta-feira, 7 de outubro de 2011

O fim

  "O homem provém da natureza do universo, e seu centro é o centro do universo. Essa experiência interior dos gnósticos, alquimistas e dos místicos está relacionada com a natureza do inconsciente, e poderíamos mesmo dizer que é a própria experiência do inconsciente." Carl Gustav JungO símbolo da transformação na missa Hoje completo 74 anos de idade e confesso-lhes que jamais pensei chegar tão longe em minha caminhada. É claro que diante de um Oscar Niemeyer eu sou uma criança, mas ele é um revolucionário, que se recusa a obedecer às leis da natureza. Em sua inteligência natural, os chimpanzés, as gazelas e os elefantes sabem que os doentes, os velhos e os aleijados devem ser deixados no caminho, pois estão destinados à alimentação de seus predadores naturais. Que diabo, os leões e as hienas também são filhos de Deus. Nós, humanos, é que temos essa mania de driblar a morte. "Já encarei a morte seis vezes. E seis vezes a morte desviou seu olhar e me deixou passar. É claro que ela vai acabar me levando, como faz com todos. É só uma questão de quando e como. Aprendi muito com essas confrontações, especialmente sobre a beleza e a doce pungência da vida, sobre a preciosidade dos amigos e da família, e sobre o poder transformador do amor. Na verdade, quase morrer é uma experiência tão positiva e construtora do caráter que eu a recomendaria a todos, não fosse, é claro, o elemento irredutível e essencial do risco". Quem disse isso? Foi o astrofísico Carl Sagan, no livro Bilhões e bilhões, falando da doença que acabaria por levá-lo, aos 62 anos de idade. Já o David Servan-Schreiber, mesmo com câncer no cérebro, diagnosticado quando tinha 31 anos de idade, chegou aos 50 (clique aqui). Dizem que os chineses choram quando nasce alguém e se alegram quando alguém morre. Sempre me perguntei por que motivo os cristãos, que dizem acreditar na vida eterna, a qual, é lícito esperar, será muito melhor do que esta, não têm esse mesmo procedimento. Até onde vai a fé do cristão numa vida eterna? Como é possível que nos alegremos sabendo tudo o que passará na vida aquela criança inocente e indefesa que acabou de ser posta no mundo? Tirando a nossa alegria de termos ali um brinquedinho de carne e osso para nos entreter, tudo o que espera essa criança são as dificuldades naturais da vida. Sorte dela que ainda não lê jornal nem vê noticiário de televisão. Encontrei, há muitíssimos anos, um amigo que eu não via há muito tempo. À pergunta "como vai você?" tentei brincar: "cada dia mais longe do berço e mais perto da sepultura". Nunca mais nos falamos, pois ele ofendeu-se terrivelmente com o meu "pessimismo". E o que eu disse era algo absolutamente verdadeiro, válido para mim, para ele e para todos nós. Em compensação, certa ocasião fui à missa de corpo presente de uma senhora, nossa vizinha, que tinha vários filhos, um deles sendo um frei franciscano, o frei Lauro, que rezou aquela missa. Muitos dos presentes ficaram chocados quando ele disse que estava tendo sua segunda alegria em menos de seis meses. A primeira alegria fora pela celebração, por ele, da missa em ação de graças pelas bodas de ouro de seus pais. A segunda era agora, quando se comemorava a passagem da alma de sua mãe para o local que, certamente, Deus lhe havia reservado. Quantas vezes você já ouviu isso ser dito em uma missa de corpo presente? O medo da morte é algo absolutamente irracional. Não confundir isso com a quebra do dever de cuidar da própria saúde, que está em qualquer código de ética, coisa que até as plantas não desconhecem. Mais absurdo ainda é quando a pessoa que tem esse medo pânico da morte fuma, bebe e expõe constantemente sua vida a riscos de toda natureza. Qual a lógica? Veja a coisa por este ângulo: pense num pedaço de corda. Essa corda começa à sua esquerda e termina à sua direita, alguns metros mais adiante. Como se chama o começo da corda? Chama-se começo. E como se chama o fim da corda? Chama-se fim. Tanto o início como o final da corda são corda. Há um nada antes do início da corda que não se confunde com o início da corda. E há um nada depois do fim da corda, pois o fim da corda não pertence ao nada, mas à corda. Ora, a vida tem um início, pouco importando aqui as discussões científicas a respeito de quando ocorre esse momento. O que importa é que há um momento em que a vida tem início. E a vida tem um fim, pouco importando também qual o método que vamos utilizar para atestar que ela terminou. O início da vida se chama nascimento e o fim da vida se chama morte. Logo, tanto o nascimento como a morte pertencem à vida. São o primeiro e o último momento de uma coisa contínua chamada vida individual. Ao menos sob o ponto de vista físico. O que veio antes e o que virá depois, o que é a alma ou o sopro da vida chamado espírito são outros trezentos e cinquenta mil réis. Dou-lhe outro exemplo: você está dentro da sala, olhando a paisagem lá fora através da janela. Nisso aparece um avião, vindo da esquerda, cruza a frente do seu rosto e desaparece à sua direita. De onde ele veio? Você não sabe. Para onde ele foi? Você também não sabe. Tudo o que existe de visível é o caminho que ele fez desde o batente esquerdo da janela até o batente direito da janela. O mais é o desconhecido. Você sabe que ele levantou voo em algum lugar, em algum horário, mas não tem conhecimento exato sobre isso. E sabe que ele voltará ao solo, mais cedo ou mais tarde. Onde? Quando? Como? Você também não sabe. Será difícil imaginar a vida como esse voo? Tive ao longo de minha já longa vida inúmeros encontros com a morte. E sempre saí desses encontros mais fortalecido, mais preparado para seguir adiante. A primeira vez se deu quando eu ainda não tinha dez anos de idade. Havia ido ao sítio de meu padrinho e dois primos, pouco mais velhos do que eu, o Zé Carlos e o Zezinho, brincavam em um barco a remo, dentro de um açude, palavra que eu, que jamais saíra da capital, nem conhecia. A certa altura o barco virou e um dos remos veio boiando até a borda do açude, impulsionado pelas ondas que a agitação que eles faziam na água havia produzido. Abaixei-me para pegar o remo, senti tontura e caí n'água. Meus primos, entretidos com suas brincadeiras aquáticas, nem repararam nisso. Quando fui retirado da água, já estava inconsciente. Fui reanimado por um empregado do sítio. Que faltou para que eu morresse? Apenas que eu parasse de respirar e meu coração parasse de bater. Eu posso dizer que vi a morte. Eu e o Jung temos muita coisa em comum, sendo uma delas essa perigosa atração pela água. Mais tarde, já adulto, encontrava-me no Rio de Janeiro, com suas praias tremendamente traiçoeiras, pois são do tipo "praia de tombo", diferentemente do que ocorre nas praias paulistas. Você está caminhando em direção ao mar e, de repente, falta chão sob seus pés. Entrei num redemoinho desses, contra o qual era inútil tentar lutar. Moço ainda, nadei acompanhando o movimento da água, abrindo cada vez mais o círculo, até que consegui sair de sua influência e chegar à areia, com as pernas tão bambas que não conseguia ficar de pé. Nova sobrevida, a sugerir que eu ainda não havia feito tudo o que fui chamado a fazer por aqui. Mais recentemente, já avô, novamente vou a uma tranquila praia do Rio de Janeiro. Novo redemoinho e eu já sem a juventude e o fôlego que me salvariam daquele próximo afogamento. Eu não tinha condições físicas mas tinha cérebro. "Help! Help!" foi o que se ouviu por ali, grito a que os salva-vidas cariocas estão acostumadíssimos. Em fração de segundos, um deles se aproximou de mim e, mantendo uma distância de segurança, atirou-me uma boia amarrada numa corda. Agarrei a boia, fui arrastado até a praia, onde lhe agradeci encarecidamente o auxílio. Em inglês, é claro. Para não me alongar muito, pois matéria é que não falta, falo de umas cólicas intestinais esquisitas que me vinham aborrecendo há alguns meses. Um exame de colonoscopia revela que há um pólipo bastante alterado ali. Em português claro: câncer. Cinco horas de cirurgia e trinta pontos no abdômen e mais dois dias de repouso, lá estou eu caminhando pelos corredores do Sírio-libanês, fazendo piadinhas com colegas de "cooper". Vali-me desta vez, confesso, de uma lição (mais uma!) que me fora dada pelo Ranulfo: "Diarréia se chama diarréia, estrabismo se chama estrabismo. Só no câncer os cretinos insistem em pôr apelido". Valeu-me também a lição de minha mestra, filha e psicóloga Cláudia: "Geralmente, a sombra é maior do que o bicho!". É enfrentar seis meses de quimioterapia e seus efeitos colaterais quase insuportáveis e estarei novinho em folha, concluí. Mais três anos e o câncer agora é no fígado. Como o órgão fora pouco castigado pela quase nenhuma bebida alcoólica tomada ao longo da vida, extraído apenas um terço dele, em exatas dez horas de cirurgia, já está fora o inoportuno tumor. Agora era aguardar que, tal como o rabo da lagartixa, o órgão se refaça. "Estatisticamente, o risco de nova recidiva é de 50%", me diz a dra. Nise Yamaguchi, ao ser indagada por mim. Então aguardemos. Quando o Gianecchini foi diagnosticado com aquilo que nossos pais chamavam de "tumor maligno" (o inverso disso não é "tumor benigno", como se diz por aí, pois, sendo tumor, não pode ser benigno, mas tão somente um "tumor neutro") (clique aqui), ele, como o mais novo integrante dos CCs (Cancerosos Conhecidos, em contraposição aos Alcoólicos Anônimos), preferiu a medicina clássica. Eu também, o que não significa que eu só acredite nos terapeutas do aquém. Se nem o Jung, com a cultura vastíssima que acumulou, desprezava o deus absconditus, o que muito cristão critica sem conhecer, quem sou eu para questioná-lo? Que me ficou dessas experiências? A certeza de que nossa vida é aquilo que nós fazemos dela. Se você lê meus escritos há muito tempo, dirá que esta crônica já havia sido publicada há alguns anos. Engano seu, pois, como dizia o Heráclito, 500 anos antes de Cristo, ninguém passa duas vezes pelo mesmo rio (clique aqui). Tanto que só se faz 74 anos uma vez na vida. Tchin tchin pra vocês! ___________________ A coluna Circus, integrante do site Migalhas (www.migalhas.com.br), é assinada pelo ilustre migalheiro Adauto Suannes. Para ler os Circus anteriores, clique aqui. Se você deseja compartilhar gratuitamente esta coluna com algum amigo, alterar seu e-mail, ou cancelar o envio, clique aqui. ___________________ Ninguém sofre porque quer Esta segunda edição e corridos alguns anos desde o lançamento do livro, muita coisa aconteceu, até porque a vida é eminentemente dinâmica. O Vítor superou todas as dificuldades referidas no prefácio e hoje é um garoto saudável, bem-humorado, inteligente e, para orgulho do avô, amante dos livros. O André já se considera um rapaz e é mais chegado aos esportes do que o irmão.Quanto a mim, ingressei no seleto grupo dos "CCs". Foram necessários muitíssimos anos para que as pessoas, principalmente graças aos "AAs", descobrissem que o alcoolismo é uma doença, por sinal insidiosa. Mesmo assim, ao contrário do que preconizava o prospectivo Emilio Mira y Lopes, já na primeira metade do século passado, os meios de comunicação continuam autorizados a incentivar o seu consumo. Até atividades esportivas são patrocinadas por tais bebidas, tal como se fazia com o tabaco até recentemente. Penso que já era tempo de os alcoólicos anônimos deixarem esse anonimato e saírem à rua para darem testemunho do sofrimento que a bebida lhes causou a eles e a seus familiares. Pois o "CC", ainda não oficializado, pretende reunir o cancerosos conhecidos, cujos testemunhos certamente levariam muita gente a tomar medidas preventivas diante do risco de contração de tal moléstia, que chega sem prévio aviso. O médico David Servan-Schreiber, no oportuno livro Anticâncer, traz seu testemunho pessoal: "Saber que se está com câncer é um choque. Sentimo-nos traídos pela vida e pelo próprio corpo. Mas ficar sabendo de uma recaída é terrível. É como se descobríssemos de repente que o monstro, que acreditávamos ter abatido, não está morto, e não havia parado de nos seguir na sombra, e terminou nos pegando".Tal recaída, em lugar de desanimá-lo, mais o animou a estudar tal moléstia, com propostas preventivas que estão ao alcance de qualquer de nós.Pois foi o câncer que me levou a reeditar o presente livro, ao descobrir o número elevado de pessoas que se recusam até mesmo a pronunciar o nome de tal moléstia, esquecidos de que tremermos diante do nome de nosso inimigo já é entrar na luta em posição de desvantagem. Orgulho-me de ter ao meu lado, nessa batalha, esse homem extraordinário chamado José Alencar Gomes da Silva, atualmente no exercício da Vice-Presidência da República, exemplo de fibra, fé e, acima de tudo, vontade de viver. Ao sair do hospital depois de uma das inúmeras cirurgias a que se submeteu em razão do invencível câncer, expressou tudo isso em uma frase lapidar: "Deus não precisará do câncer para me levar quando resolva fazê-lo".
sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Bagatelas

"O CNJ puniu com a pena máxima de aposentadoria compulsória a bem do serviço público 10 magistrados do TJ/MT envolvidos em esquema de desvio de recursos superiores a R$ 1,4 milhão, que ficou conhecido como 'operação de socorro à loja Grande Oriente' da Maçonaria de Mato Grosso". Migalhas, 24/2/2011 "TJ/SC entende que bagatela não se aplica a casos de réus reincidentes". Migalhas, 20/4/2011 É de primeiras linhas que societas mater rixarum. O Velho Testamento não exclui dessa regra nem a sociedade familiar, como se vê da relação conflituosa entre Abel e Caim (cf. Gênesis, 4,8) ou Isaú e Jacó (cf. Gênesis 25, 31-33). Não foi por outro motivo que Moisés (1250-1180 a.C.) invocou a autoridade divina para impor a seus comandados regras nas quais se buscava a paz social (cf. Êxodo 34, 28), repetindo, aliás, o que fizera Hamurabi (1792-1750 a.C.) alguns séculos antes. Invocam-se aqui esses precedentes religiosos, como faz um arqueólogo que, com delicada vassourinha na mão, tenta desenterrar vestígios de um tempo longínquo, para falar de algo tão paleolítico quanto o que se costuma estudar sob o rótulo de Criminologia ou, mais pragmaticamente, Direito Penal. É também de primeiras linhas que as tais sociedades humanas, onde o quod plerumque accidit, como dito acima, é a existência de desavenças, estabelecem regras de conduta, a cuja desobediência corresponde, em lugar do desacreditado fogo do inferno, algum sucedâneo que lhe faça as vezes. Lá e cá a finalidade é a mesma: contribuir para que a convivência das pessoas seja tão pacífica quanto possível no grupamento a que, pelos mais diversos motivos, voluntários ou não, elas pertençam. Como regra geral, parte-se do princípio segundo o qual o bem supremo do ser humano, depois da vida, é a liberdade. Ameaçar o candidato a infrator (ou seja, qualquer um de nós) com o encerramento precoce de sua vida ou com a privação da liberdade parece algo suficiente para dissuadir-nos dessa pulsão, quando ela se revele. Até chegamos a pedir ao Deus Pai que "não nos deixe cair em tentação", tão forte é nossa vocação para o pecado. E essa identidade entre as categorias religiosas e as criminológicas pode ser confirmada não apenas pela vestimenta sacerdotal dos julgadores como pela escolha de uma deusa para simbolizar essa atividade estatal. Isso para não falarmos do nome escolhido para designar o local onde o pecador permanecerá quando for "excomungado" (isto é, afastado dos seus companheiros de comunidade): penitenciária. Se a penitência é a pena imposta pelo confessor ao penitente para remissão do seu pecado, como diz Caldas Aulete, é útil recordar que ela supõe o arrependimento, segundo o mesmo dicionarista. Aliás, muitos teólogos consideram sinônimas as palavras arrependimento (do pecado cometido) e penitência, sendo o cumprimento da pena imposta pelo confessor somente a expressão externa desse arrependimento. Curiosamente, ao mesmo tempo em que se observa a laicizacão crescente da sociedade (para dizer o menos), em 1984 introduziu-se, no Código Penal brasileiro, como fator minorante da pena, mais um elemento religioso: a confissão. Valha registrar que a doutrina tem entendido que isso nada tem a ver com arrependimento, que continua restrito aos arcana Dei. Menos mal. Digno de registrar que a relação crime/pena só impropriamente pode ser equiparada à relação pecado/penitência. É que o confessor não pode agir ex officio. Para impor a pena penitencial ele necessita da iniciativa do pecador, ao passo que, no mundo civil, o criminoso procurar a autoridade para confessar a prática do crime não só é coisa rara como deve ser recebida com reservas, como se colhe do artigo 341 do Código Penal e do artigo 197 do Código de Processo. De outra parte, ao reverso do que supõem os leigos, não há qualquer proporcionalidade entre a gravidade do pecado e o tipo de penitência a ser imposta ao pecador, coisa diversa do que se dá na relação crime/pena. Se o arrependimento do criminoso, quando não seja legalmente eficaz, é irrelevante no campo da repressão penal e se é de presumir que o legislador, ao estabelecer os parâmetros da pena, levou em conta a gravidade da infração, qual o fundamento ético do chamado "regime progressivo" no cumprimento da pena? Que se esconde sob o rótulo de "bom comportamento?". O leitor certamente falará em "humanização da pena", "ressocialização do condenado" e até, se tiver pendores poéticos, numa tal "ponte de ouro", por intermédio da qual o excomungado retorna ao convívio dos seus pares, onde recomeçará nova vida, dedicada ao trabalho honesto e ao respeito ao próximo, mercê do apoio ali recebido, proveniente, principalmente, dos "homens de bem", como nos julgamos nós outros, situados no alto escalão social. Alguém mais pragmático (ou mais cínico) talvez diga que o abatimento no prazo de encarceramento, tanto quanto o modo mecânico como são aplicadas penas ditas alternativas, tem o claro escopo de impedir que as prisões se transformem (quando já não o são) em depósito de gente. Supõe-se que, se os juízes criminais, nas poucas horas de lazer de que dispõem, deixassem de lado os teóricos do Direito e lessem o livro de Dráuzio Varela, que levou à demolição do presídio famoso, ou o noticiário jornalístico diário, que nos dá conta de pecados e mais pecados injustificáveis, impuníveis e inarrependíveis atribuídos a autoridades pertencentes aos três Poderes da República, pensariam duas vezes antes de mandar para o purgatório aqueles pobres diabos que lá estão. Vã esperança! A isonomia ainda é mero princípio constitucional "carente de regulamentação". Quem é o juiz criminal? Ou, melhor: como deve ser o juiz criminal? É (rectius: deveria ser), antes e acima de tudo, um cidadão inserido em um dado momento histórico. Parafraseando Robert G. McCloskey, para muita gente, quando um juiz enverga a toga, ele deixa de ter ideias próprias e preconceitos, pautando-se exclusivamente pelo que se contém na lei. Ou, dito de outro modo: a lei seria um disco fonográfico e os juízes meros CD players, que reproduziriam fielmente o que havia sido gravado. Essa comparação está em seu The American Supreme Court, ao abordar a inafastável ideologia dos juízes. Poderíamos citar nosso Ranulfo de Mello Freire: "a lição dos doutrinadores serve para levar o juiz aonde ele já chegou por suas próprias pernas". A pergunta que se impõe então é esta: mas de que juiz estamos falando? Quando Alberto Silva Franco, nos anos 80, proferiu os votos pioneiros no sentido da atipicidade das condutas aparentemente danosas, mas sem relevante potencialidade para justificar a imposição de pena, ditos "crimes de bagatela", não faltou quem censurasse, por ignorância ou má-fé, isso que os entendidos chamam de "ativismo judicial". Que é isso? "Judicial activism is what the other guy does that you dont like" é a literal observação de Joel Grossman, citado por Lawrence Baum em seu conceituado The Supreme Court. É claro que tal boutade ironiza os críticos do ativismo e não o próprio ativismo. Já dissemos alhures, ao aludirmos ao papel político da Suprema Corte norte-americana, que "no que tange aos direitos fundamentais, a Suprema Corte nem sempre apresentou um entendimento uniforme, não sendo incomum que se reconhecesse aos Estados o direito de restringir o exercício deles, no interesse da sociedade, ainda que a Corte sempre se mostrasse dividida quanto à possibilidade disso. Surgiram assim duas correntes de entendimento, que os autores denominam interpretivism e non-interpretivism. Segundo a primeira corrente, os direitos fundamentais a que incumbe à Corte zelar são apenas e tão somente aqueles que se encontram previstos expressamente na Constituição Federal (aí incluído o Bill of Rights). Uma subdivisão dessa corrente admite, quando muito, que se lance mão da história da Carta para eventualmente trazer ao caso concreto o pensamento dos seus redatores. A outra corrente, mais liberal, aceita que "constitutional principles and norms can be found outside of the constitutional document". Como é isso no Brasil? Mandar para a prisão quem não tem condição de pagar quem lhe dê uma assistência jurídica digna de ser chamada de ampla, como exige o catálogo constitucional que diz com o due process of law, em escandaloso contraponto à situação de quem tem capacidade econômica para apresentar dezenas e dezenas de recursos, com a óbvia finalidade de impedir o trânsito em julgado da decisão condenatória, valendo-se da discutível amplitude dada ao princípio da presunção de inocência, só não sensibiliza os insensíveis, dada a óbvia quebra do também constitucional princípio da isonomia. Uma lata de ervilha aqui, uma barra de chocolate ali, um pacote de margarina acolá já não justificaram que alguns juízes, em nome certamente de alguma cinematográfica "tolerância zero" (Law & Order não é um seriado exibido pela nossa televisão?), mantivessem na prisão "negros ou quase-negros de tão pobres", para citarmos Caetano Veloso? Não há de ser por outro motivo que nossa Suprema Corte vem afirmando que "verificada a objetiva insignificância jurídica do ato tido por delituoso, é de ser extinto o processo da ação penal, por atipicidade do comportamento e consequente inexistência de justa causa", como disse o ministro Cezar Peluso, relator do habeas corpus n° 88393. A ministra Ellen Gracie traçou os contornos da bagatela criminal: "O princípio da insignificância está intimamente relacionado ao bem jurídico penalmente tutelado no contexto da concepção material do delito. Se não houver proporção entre o fato delituoso e a mínima lesão ao bem jurídico, a conduta deve ser considerada atípica, por se tratar de dano mínimo, pequeníssimo. O critério, em relação aos crimes contra o patrimônio, não pode ser apenas o valor subtraído (ou pretendido à subtração) como parâmetro para aplicação do princípio da insignificância. Consoante o critério da tipicidade material (e não apenas formal), excluem-se os fatos e comportamentos reconhecidos como de bagatela, nos quais tem perfeita aplicação o princípio da insignificância. O critério da tipicidade material deverá levar em consideração a importância do bem jurídico possivelmente atingido no caso concreto". (habeas corpus n° 92531) Nem o rigoroso ministro Joaquim Barbosa rejeita tal princípio, adotando-o até mesmo quando não foi invocado: "Não se admite Recurso Extraordinário em que a questão constitucional cuja ofensa se alega não tenha sido debatida no acórdão recorrido e nem tenha sido objeto de Embargos de Declaração no momento oportuno. Princípio da insignificância reconhecido pelo Tribunal de origem, em razão da pouca expressão econômica do valor dos tributos iludidos, mas não aplicado ao caso em exame porque o réu, ora apelante, possuía registro de antecedentes criminais. Para a incidência do princípio da insignificância só devem ser considerados aspectos objetivos da infração praticada. Reconhecer a existência de bagatela no fato praticado significa dizer que o fato não tem relevância para o Direito Penal. Circunstâncias de ordem subjetiva, como a existência de registro de antecedentes criminais, não podem obstar ao julgador a aplicação do instituto". Caso, pois, era de "concessão de habeas corpus, de ofício, para reconhecer a atipicidade do fato narrado na denúncia, cassar o decreto condenatório expedido pelo Tribunal Regional Federal e determinar o trancamento da ação penal existente contra o recorrente". (Recurso Extraordinário n° 514531) Não clama aos céus que alguém acusado da prática de fato atípico tenha de chegar à Suprema Corte para recuperar a liberdade ou sua condição de primário? Responde o ministro Cezar Peluso, no julgado já referido: "Ação penal. Suspensão condicional do processo. Inadmissibilidade. Ação penal destituída de justa causa. Conduta atípica. Aplicação do princípio da insignificância. Trancamento da ação em habeas corpus. Não se cogita de suspensão condicional do processo, quando, à vista da atipicidade da conduta, a denúncia já dev(er)ia ter sido rejeitada". Se a denúncia deveria ter sido rejeitada, é de concluir que o juiz descumpriu seu dever. Que acontece a um motorista ou a um médico que não observa a chamada obligatio ad diligentiam? Se facilitar, nem prova de culpa é necessária (clique aqui). E que acontece a um juiz que descumpre seus deveres? E ao Estado, do qual ele é agente? Recentemente, ao conceder o habeas corpus que pôs fim a um abuso inominável, depois de dizer que "parece insofismável que a promotora de Justiça, com o beneplácito da juíza de origem, transbordou, e em muito, suas atribuições", registrou o ilustre relator: "Vilipendiou-se, sem qualquer necessidade legal, atos e manifestações profissionais de advogados, como o são, ressalte-se, os levantamentos judiciais embasados em mandato externando a cláusula ad judicia, surrupiando a eles, convenha-se, a inviolabilidade preconizada na Lei Maior do País (cf. artigo 133 da CF)". Atribuindo a autoridades públicas ações abrangidas pelos verbos vilipendiar e surrupiar, quais as providências que tomou a E. Turma julgadora com vistas a eventual punição dos responsáveis por isso? Nenhuma, pois "quanto à sugestão de remessa de cópias aos Conselhos Superiores da Magistratura e do Ministério Público, é de se ter presente que os pequenos erros, os diminutos equívocos ou deslizes profissionais mínimos, como se queira chamá-los, sempre estão à volta do ser humano, em especial daquele que tem a atribuição de investigar ou de decidir" (TJ/SP HC 1.011.561-3/). Um juiz vilipendiar e surrupiar é coisa de somenos importância, migalhas, nonadas, bagatelas.
sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Sobre o amor e o desamor

  "O casamento foi a maneira que a humanidade encontrou de propagar a espécie sem causar falatório na vizinhança". Luís Fernando Veríssimo Quem for capaz de definir o que é o amor que atire a primeira rosa. Eu, pelo menos, já desisti, mesmo porque ouço com frequência alguém falar em amor e dar como exemplo uma relação viciada pela paixão. Epa! E não é a mesma coisa? Claro que não. Amor é o que une a mãe ao filho ou o médico dedicado a seu paciente moribundo. Paixão foi o que separou Tristão de Isolda e Carmen de José. Enquanto o amor une, a paixão separa. Fiquemos com a tragédia da Carmen de Bizet. Que, na verdade, era a Carmen de Prosper Mérimée. Quem era ela? Uma, digamos assim, mulher leviana, que, aos olhos do soldado José, era uma princesa. Caído de paixão, ele, José, abandona a farda e se torna contrabandista. Ela, em pouco tempo, deixa o soldado com o coração partido, para cair nos braços de um toreador. Resultado: tragédia. Otto Preminger filmou a mesma história, que já existe em DVD, porém mudando o ambiente: Carmen Jones, interpretada por Dorothy Dandridge, trabalha não numa fábrica de charutos, como no original, mas numa fábrica de paraquedas, que são fornecidos para o Exército. Conhece, em razão disso, o soldado José, interpretado por Harry Belafonte, que ela vem a trocar não por um toreador, mas por um lutador de boxe. As belíssimas músicas são, evidentemente, as mesmas, com letras adaptadas para as novas circunstâncias, mas os atores são todos negros. E o final, claro, é o mesmo: tragédia. Moral da história: a paixão enlouquece. Voltando à Espanha: pouca gente percebe que a "princesa" que encantava o apaixonado D. Quixote de la Mancha tinha o pavoroso nome de Aldonza, sendo por ele rebatizada como Dulcinéia, vendo ele nela uma doçura que o seu nome real não sugeriria a quem quer que fosse. E talvez ninguém mais além dele visse. Moral da história: a paixão cega. Verdade que quando falo que amor é flecha, que vai e esquece o arco, ao passo que paixão é bumerangue (parte, mas retorna com o alvo preso), muita gente torce o nariz, dizendo que isso de ágape é coisa de teólogos. Os cultores do Direito, em verdade, não costumam perder tempo com essas coisas. São criaturas práticas, que não dão tanto valor a essas distinções conceituais. Uma exceção talvez seja o Antonio Cezar Peluso, atualmente presidindo o Supremo Tribunal Federal. Na I Jornada Internacional de Direito de Família, nos idos de 97, ele apresentou estudo denominado "O Desamor como Causa de Separação", desdobramento de trabalho anterior, onde ele cuidava da culpa na separação e no divórcio. Em tais trabalhos ele questiona o entendimento vigente no sentido de ser fundamental que se aponte qual dos parceiros foi o responsável pela separação, para daí retirarem-se consequências jurídicas. Se for o homem o culpado, que pague pensão à ex-esposa; se for ela, nem pensão nem guarda dos filhos. Qual o fundamento ético disso?, indaga ele. A seu ver, considerando a necessidade que temos todos de respeitar a dignidade das pessoas, especialmente daquelas com as quais convivemos ou convivíamos, nada mais adequado do que instituir para o parceiro mais bem aquinhoado, economicamente falando (em geral, o de sexo masculino, nos casamentos tradicionais), o dever de prover ao sustento do outro, menos aquinhoado (normalmente a mulher, considerando as uniões tradicionais), ainda que durante prazo razoável, estabelecendo-se uma pensão destinada a assegurar ao alimentando não só os meios de subsistência como propiciar-lhe os meios de preparação para retornar ao mercado de trabalho de que, não poucas vezes, o casamento a (geralmente isso se aplica à mulher) afastou. E isso sem falar, em princípio, nem em culpado nem em inocente. Aliás, qual o fundamento de atribuir responsabilidade a alguém que chegou à conclusão de que os sentimentos que o uniam a outra pessoa não mais existem? Realmente, isso de o ex-marido pleitear a desoneração do pagamento de pensão quando a ex-mulher arruma um namorado, ou mesmo um novo companheiro, traz embutida a ideia de que a pensão é o preço da castidade dela. Ou que o marido é o dono da esposa. Mudou de dono, o novo dono que a sustente, já que se vai aproveitar sexualmente dela. É ainda a ideia da mulher como remédio. Ou, melhor, como preventivo contra os riscos de moléstias venéreas. A fidelidade remunerada, portanto, sob tal ótica, nada mais seria do que o meio com que contaria o ingênuo alimentante para ter certeza de que não corre risco de contaminação. E para isso realiza um contrato de exclusividade de uso. Contrato oneroso já se vê. A proposta do ministro Peluso deixa de lado esse enfoque, para fixar-se no relacionamento como tal, onde a satisfação sexual é apenas um dos aspectos da união matrimonial, na qual os encargos financeiros não serão nem poderão ser postos de lado, mas, como parece correto, não se ligam primordialmente à atividade sexual. Nenhum filho pode ser compelido judicialmente a amar seus pais, da mesma forma como os pais não poderão ser compelidos a amar seus filhos. Entretanto, há entre eles determinado vínculo que acarreta a responsabilidade de prover ao sustento uns dos outros, independentemente da existência ou inexistência de laços afetivos. Entre os ex-cônjuges a situação não parece ser diversa: porque houve entre eles uma vida em comum, criou-se um dever recíproco de sustento que não diz com a conduta atual de ambos. Não se cuidaria de remunerar a conduta presente, mas de prestar homenagem à conduta passada. Sendo esse o enfoque, que diferença poderá trazer a conduta sexual do alimentando? Talvez por isso, na Noruega eles criaram o instituto pelo qual duas pessoas firmam um contrato de união e se tornam meros samboer. União sem essa complicação que a moral judaico-cristã nos impôs e que o tempo vai-se encarregando de esgarçar. Ali, basta uma notificação cartorária e a união está desfeita. Pensão? Nem pensar. Ela que trabalhe.
sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Ontem, hoje e sempre

  "O secretário da Segurança Pública do Rio, Anthony Garotinho, anunciou durante entrevista coletiva no início da tarde a prisão do tenente Anderson Silva dos Santos e do sargento Celso Pacheco, do Batalhão da Polícia Militar de Bangu. Eles são acusados de fazer a segurança de bondes (comboio de homens armados) da quadrilha do traficante Luiz Fernando da Costa, o Fernandinho Beira-Mar." Folha de S. Paulo, 9/5/2003 "Justiça mantém inelegibilidade de Anthony Garotinho e cassação de Rosinha." O Estado de S. Paulo, 28/6/2010 "Depois de Roriz, Ficha Limpa derruba Jader Barbalho." Veja, 1/9/2010 "A biografia autorizada do presidente do Senado, José Sarney (PMDB/AP), lançada ontem em Brasília, contém erros de informação e omite dados sobre a crise que atingiu a Casa e o próprio senador em 2009." O Estado de S. Paulo, 24/3/2011 "Por unanimidade, o plenário do CNJ decidiu aposentar compulsoriamente, com vencimentos proporcionais ao tempo de serviço, o juiz Abrahão Lincoln Sauáia, do MA. Para quem não se lembra, o magistrado, por ora aposentado, era autor de sentenças inacreditáveis como, por exemplo, dano moral por extravio de bagagens chegava a R$ 1,7 mi, ou dano moral de título cobrado indevidamente no valor de R$ 28 mil acabava em R$ 8 mi. Ademais, havia, em geral, determinação para a busca do numerário na boca do caixa, ou algo similar." Migalhas, 30/3/2011 Talvez levado pelo diuturno noticiário dos jornais, envolvendo muitos de nossos homens públicos, fui rever a trilogia "O Poderoso Chefão", que muito me impressionara quando exibida lá se vão muitos anos. A grande vantagem dos DVDs para quem gosta de cinema é, além da comodidade, os extras que costumam ser ali trazidos, contando fatos curiosos envolvendo a realização do filme. Na caixa que tenho em mãos, além da remasterização, há uma edição do filme inteiramente comentada pelo diretor, o que nos auxilia a melhor compreender a complexa trama que envolve o relacionamento das famiglie de mafiosos, onde, como se diz em espirituoso comercial de televisão, não confie em ninguém. E nos mostra também o inferno astral do diretor, lutando entre preservar suas ideias e ter de sobreviver profissionalmente para manter a família, mesmo porque ele ainda não era nome de vinho californiano. The Godfather, como geralmente sabido, é um livro escrito pelo ítalo-americano Mario Puzo, que nos relata a chegada à América de um garoto, fugido de um capo da máfia italiana, que prometeu matá-lo, para que, quando crescesse, não viesse a vingar a morte do pai, realizada a mando do tal capo. A interpretação magistral de Marlon Brando rendeu-lhe merecidos encômios, mas sua escalação só foi possível por insistência do diretor, já que os produtores do filme não viam nele o physique du rôle para o personagem do livro. Aliás, eles não tinham grandes pretensões quanto à filmagem da história do livro, tanto que o orçamento era de modestos 2,5 milhões de dólares, o que os levou a contratar um diretor ainda jovem, que passou os dois meses de filmagem com um pé no cadafalso, pronto para ser despedido, especialmente quando os custos foram muito além disso, chegando, ao final das contas, a 6,5 milhões. A aceitação daquele ator deveu-se a um estratagema inteligente do diretor, que, ainda cedo, foi à casa dele, filmar um teste. O ator chegou à sala vestindo um roupão, com um rabo de cavalo loiro, o que foi filmado, para futuro escândalo dos produtores. Lentamente ele diminuiu o volume de cabelo, passou graxa de sapato neles, colocou dois pedaços de guardanapo de papel na boca e passou a murmurar alguma coisa, como se fosse um velho italiano resmungão. Ganhou o papel e o Oscar. Rigorosamente, a trilogia não é sobre as atividades da máfia, mas sobre uma família de imigrantes italianos que, como toda família normal, tem seus problemas de relacionamento entre seus membros. Circunstancialmente, a atividade profissional do seu chefe é a exploração do jogo e da prostituição, como poderia ser a atividade política ou mesmo a atividade religiosa, como aparece na terceira parte da história. Negociatas com verba pública ou com tráfico de drogas. Qual a diferença? A morte do chefão, por exemplo, poderia ser filmada como a morte de qualquer empresário aposentado, que se distrai brincando com os netos. A descontração da cena mostra que sua beleza se deve mais à habilidade do ator, contracenando com uma criança, do que ao roteirista ou ao diretor. A cena em que Marlon Brando faz uma dentadura com casca de laranja, por exemplo, não estava no roteiro. Foi inventada por ele na hora, para distrair a criança, que estava muito inquieta, com aquele regador na mão, cercada de pés de tomate. E a reação desta diante da "morte" do avô é tocante, em sua ingenuidade. Aliás, essa humildade do diretor no sentido de aproveitar-se de incidentes de filmagem aparece em outra cena. Tendo de contracenar com o grande astro, o ator que interpreta um dos mafiosos ficou tão nervoso que gaguejou na hora de cumprimentar o pai da noiva. A cena não foi refeita mas incluída no filme, antecedida de uma outra, filmada depois, onde aparece o tal mafioso tentando decorar o minidiscurso que fará ao chefão. Aquilo que era para ser apenas um filme, tresdobrou-se, dando ao ator Al Pacino a oportunidade de mostrar todo seu talento, interpretando um homem que, menos por convicção do que por necessidade, acaba por seguir os passos do pai, quando conhece o crime de alto coturno. "Adeus às ilusões" diria ele, nome, aliás, de filme roteirizado pelo Dalton Trumbo, que viria a ser perseguido pelo macarthismo, estrelado pela Elizabeth Taylor, cuja beleza nos deixou recentemente, que ali aparece juntamente com seu eterno marido Richard Burton, filme, aliás, dirigido por Vincent Minelli, marido da Judy Garland, também vítima de dependência química, e pais da Liza Minelli, cuja carreira não tem sido das mais calmas, o que mostra as voltas que o mundo dá. São todas elas biografias que não podem servir de modelo a quem quer que seja.
sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Livros a mancheia

  "As crianças brincam com bonecas, cavalinho de madeira ou pipa a fim de familiarizarem-se com as leis físicas do universo e com os atos que realizarão um dia. Da mesma forma, ler ficção significa jogar um jogo através do qual damos sentido à infinidade de coisas que acontecem, estão acontecendo ou vão acontecer no mundo real. Ao lermos uma narrativa, fugimos da ansiedade que nos assalta quando tentamos dizer algo de verdadeiro a respeito do mundo. Essa é a função consoladora da narrativa, a razão pela qual as pessoas contam histórias desde o início dos tempos. E sempre foi a função suprema do mito encontrar uma forma no tumulto da experiência humana." Umberto EcoSeis passeios pelos bosques da ficção "O desembargador paulista José Renato Nalini, em artigo publicado no Estadão de hoje, faz um alerta : juiz tem de estudar. Nalini ressalta que, além da resolução do CNJ que alterou, de maneira substancial, a forma de recrutamento dos juízes, os novos tempos impõem a quem queira bem cumprir o seu dever de solucionar conflitos a obrigação do estudo permanente." Migalhas, 5/9/2011 Ele era juiz e auxiliava no Tribunal de Justiça. Naquele dia o carro do tribunal foi ao colégio buscar o garoto, que o pai, no intervalo da sessão, encontrou na sala do lanche, atulhada de togas esvoaçantes. "E então, como foi nas provas?" indaga o pai em voz alta. "A de matemática deu pra encarar", diz o garoto entre uma mastigada e outra, "mas na de português eu acho que se fudi". Eu nunca soube o nome do garoto, hoje certamente um homem, talvez casado e pai de filhos. Seu pai, meu amigo, já faleceu, o que o impede de manifestar-se sobre o fato, testemunhado por um número razoável de pessoas, todas elas dignas de algum crédito. Foi juiz no foro de Santo Amaro e deixou saudades quando foi dali alçado para o tribunal de mesmo nome. "Nem dois juízes produzem agora tanto quanto o doutor Ortiz produzia" suspirou-me um dos advogados que ali mourejava, como dizia. "A sala dele era só livros!" Que livros leria o filho dele naquele tempo? Outro juiz relatou que seu filho havia perguntado à professora o que era aquele negócio de "clava forte da Justiça", quando ela tentou destrinçar para a classe aquele amontoado de hipérbatos chamado Hino Nacional Brasileiro. Ele havia feito a pergunta à professora e ela sugeriu que ele perguntasse ao pai, que deve entender do assunto. E "fúlgidos"? e "florão"? e "impávido"? e "lábaro"? "Chega, chega, chega. Procure ali no 'pai dos burros' que ele tem mais tempo do que eu", disfarçou ele, apontando a estante de livros, onde o Aulete fazia dupla com o Aurélio. "Pesquisa é isso. Aprenda". O problema é que no grupo de magistrados que ria dessas patacoadas havia um que tinha sido professor de português, talvez o Biasotti, que não perdeu a ensancha: "Se é para discretear sobre hinos, qual deles fala em 'Liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós! Das lutas, na tempestade, dá que ouçamos tua voz?'" Silêncio total. "Mas esse 'dá que ouçamos tua voz' é dose", limitou-se a dizer um deles, por sinal dos mais novos. "Duvido que alguém no Brasil, nos últimos 100 anos, se tenha utilizado do verbo dar no sentido de permitir, conceder, como diz o tal hino" arriscou alguém, bem mais idoso. "Isso para não falar em 'um pálio de luz desdobrado', 'vem remir dos mais torpes labéus', 'nosso augusto estandarte que brilha ovante', 'verdes louros colhamos louçãos'" tornou o ex-professor. "Pergunte o significado disso numa prova para juiz e veja se alguém passa" justificou-se o mais novo. "Q vc esperava da s/ gerç?" escreveu um deles num guardanapo de papel, provocando gargalhadas de todos. O mais velho não teve dúvidas: subiu na mesa e recitou, como se ainda estivesse na Faculdade. "Oh! Bendito o que semeia livros. Livros a mancheia!E manda o povo pensar.O livro, caindo n'alma,é gérmen, que faz a palma,é chuva, que faz o mar." "Mancheia era coisa de minha avó, quando enchíamos a boca de comida, para voltar logo a brincar. Nada de mancheias! Nada de mancheias! Quem conhece isso hoje?". "Quem lê os clássicos" retruca o eterno professor. "Curioso que mão-cheia é algo mais adequado do que a palavra punhado, para designar uma porção de algo que cabe na mão, mas cedeu espaço a esta. A palavra punho nos dá outra ideia. Punhal, por exemplo, é uma espada pequena, que se consegue segurar com uma só das mãos. Com o punho fechado". "Já punheta também se refere a algo que se faz com a mão fechada" diz o mais jovem, para horror dos mais velhos, que fazem ar de reprovação, olhando de soslaio para os lados. "Ele tem razão", interfere um juiz de meia-idade, certamente habituado ao Juízo de Conciliação. "Puñeta, na Argentina, é o mesmo que soco. Algo que se faz com a mão fechada. Puñetazo, então, é coisa de boxeur". "Vocês ainda perdem tempo lendo livros, quando até o Supremo e o CNJ já eliminaram o papel? Abra o site do STJ, vá ao tópico da jurisprudência e terá acórdãos saindo do forno. Qual revista concorre com isso?" diz o benjamim do grupo. "Engano seu" diz-lhe um colega. "Ocasionalmente tenho em mãos uma dessas revistas, das mais famosas, já centenária. Ela consegue publicar a íntegra de acórdãos relativos a julgamentos ocorridos há três meses. Com notas de esclarecimento, indicação de legislação e de doutrina" completa. "Se facilitar, a mais recente tem trabalho de doutrina assinado por mim". "O livro morreu, o disco morreu, o samba morreu, o jazz morreu, o tango morreu, o cinema e o teatro morreram. No entanto, acabo de ganhar um CD onde uma belíssima violinista chinesa toca Astor Piazzolla em ritmo de bossa-nova (clique aqui). Três cadáveres num presente só"! Mais risos. "E os operadores do Direito que se julgam moderninhos mas que não aceitam julgamento virtual (clique aqui)? Coitadinhos, acham que todos os juízes que participam fisicamente de um julgamento sabem o que estão julgando. 'Eu também', 'eu também', 'eu também' e depois lá vêm embargos de declaração para que o relator diga o que se havia esquecido de dizer e nenhum colega havia percebido. Já vi revisor pedir, em público, esclarecimentos do relator sobre matéria dos autos. 'Mas você não teve vista dos autos?', indaguei-lhe. Gentilmente ele me fez um gesto que, se eu fosse piloto norte-americano, teria sido autorização para levantar voo" diz um dos mais circunspectos. "O tempo ruge" sentenciou um deles, "e ainda tenho de dar uma espiada nos votos feitos pelos meus auxiliares", completou, com evidente ironia. "O Grande Irmão está de olho em nós". Levantou-se, ergueu o copo de chope e saudou: "À modernidade (clique aqui)"!