Ainda perambulo pelo nordeste paulista, planando neste inverno seco do clima tropical...
Daqui de cima, vejo uma cidade sem arranha-céus, num desenho quase apolíneo, sem grandes desconcertos arquitetônicos (nada contra os prédios, mas eles bloqueiam o céu para quem está em terra, e bloqueiam a terra para quem está no céu).
Daqui de cima as ruas se cruzam feito um jogo da velha, já demonstrando uma ordem e uma limpeza de traços.
O vento, querendo tornar-se morno, acaricia minha face enquanto desço em um jardim maravilhoso.
O verde vivo me toma de pronto. As formas das árvores e arbustos, esculpidas como contornos de animais, são lindos! São a prova de que a arte é... sublime.
É fantástica essa capacidade do homem de representar o mundo, e também de criar mundos, de amalgamar-se à natureza sem desonrá-la. Vendo isso, nosso peito se enche de um não sei quê, surrupiando Camões.
Estamos vivos !
“Pintassilgo, ao trabalho!”, penso imaginando o austero amado Diretor.
Mas, como sempre faço, vou logo realizar minha costumeira visita à Igreja Matriz. E como que para ainda fomentar meus ditos filosóficos; ditos há pouco, deparo-me aqui na capela com a arte... pinturas de Cândido Portinari. A via-sacra pintada por Portinari. Aqui está o maior acervo de obras do pintor.
O meu silêncio é a maior maneira de expressar a graça que meus olhos viram. Seria muita petulância de minha parte descrever ou comentar a obra de Portinari. Pobre de mim!
Nascido na vizinha cidade de Brodowski, este descendente de italianos, que chegou a morar em corredor no Rio de Janeiro para estudar no Colégio Belas-Artes, correu o mundo com sua arte, levando em todas as cores de sua obra um fundo verde-amarelo. É contemporâneo de nomes ilustres, e atravessou vários períodos da História: Estado Novo, Segunda Guerra, Guerra Fria.
Transitou nos meios políticos, e como alma de artista já nasce livre, é perseguido pelos que nada sentem ou enxergam além do horizonte estreito. Assim foi exilado. Pessoas assim, logicamente, não apreciaram as obras de Portinari.
Com certeza já repararam os amigos (que mais comedidos, não têm meu descontrolado espanto juvenil), que na maioria das vezes o Poder e a arte se estranham?
Claro que bem sei que sempre existiram artistas que, afinados com o Poder vigente, realizaram obras como se fora “propaganda”. Mas sou teimoso e ainda assim, creio que a melhor arte é aquela desgarrada das saias longas do Poder.
E vendo a biografia de Portinari, sua arte demonstrativa do povo, a “arte pela arte”, é transcender aos temas banais de nossa vida burguesa: casa, trabalho, a vidinha “sossegada”. É “olhar”, de fato, um povo e seus caminhos ali em tela (ou mural, afresco...).
Venham vocês, leitores amigos, e se o tempo permitir venham ver de perto. Não ousarei descrever.
E a Igreja, por si só, é de uma arquitetura esplêndida (réplica da Basílica de S. Pedro, no Vaticano), rodeada por jardins bem traçados, cria na gente a sensação de “ficar por aqui”. “Vou me sentar aqui e ficar olhando o povo passar”.
As estruturas e as paisagens de hoje pretendem justamente o oposto, é um conforto falso, para que fiquemos o menos tempo possível, a não ser que gere algum retorno, digamos, pecuniário.
E parece que, pelo visto, não querem que fiquemos em lugar algum, nem mesmo nas ruas.
Fico a pensar, se Portinari estivesse vivo, o que passaria para suas obras, representando a realidade de seu querido país?
Idéias simplórias saem de minha cabeça, conjecturas mil eu realizo.
Mas tenho certeza de que nenhuma das minhas pobres hipóteses ele faria.
Certamente, de forma sublime como toda a arte, ele evocaria o coração do povo e sua História, o sangue, a pele, dor e alegria paralelas... tudo seria suave.
Assim como são suaves os traçados de Batatais, onde uma ordem serena começa de seu desenho, passa por seus belos jardins, na limpeza de suas ruas... e chega seu povo acolhedor.
É... dá vontade de ficar...