Estou planando suave...
A brisa desse nosso outono tropical é gostosa e um alívio, se pensarmos no chumbo que respiramos nas grandes cidades. Mais por saudosismo, que por ego inflado, um dia farei um compêndio dessas minhas andanças : "memórias de um doutoral Pintassilgo". Um bom nome ? "Memórias Aladas?". Não, não. Muito óbvio. Bah, depois penso nisso. Hora de trabalhar, exercer este belo ofício que me foi proposto (salve, salve amado Diretor !).
Chego a Garça e de pronto me encanto com o nome. Lindo ! É uma referência, penso eu, à bela ave esguia, de alvas penas. O batismo da cidade veio por causa do rio das Garças (ora, certamente por motivo de ali ficarem as muitas das minhas amigas emplumadas, ora num refrescante banho, ora banqueteando-se).
No meu tradicional e sempre aprazível diálogo com os adoradores da terra, vejo que a agricultura é a força motriz econômica da cidade, que assim se equilibra nas safras ; quando é farta, "a cidade anda", nos dizeres de uma amigo aqui deste chão.
As ruas, nem estreitas nem largas, evocam a imagem de várias cidades de nosso país. Vendo nossos irmãos brasileiros, indo e vindo, confesso - sem que eu saiba o porquê - ter sentido um aperto no coração. Não é comiseração, nem demagogia (em nada concorro para fazer tal teatro). É um sentimento humano, proveniente de um coração de pássaro, pequeno e simplório, mas que sente as coisas da vida.
Dialogando com o MM. juiz de Direito, tomo ciência de que execuções fiscais se avolumam, na tentativa desmedida da municipalidade em arrecadar do povo valores devidos por lei, cuja cobrança também é legalmente fiscalizada pela já conhecida lei de Responsabilidade Fiscal. Tentativa vã, dadas as condições da população.
No que pergunto : talvez seja mesmo necessário que se arrume financeiramente a casa ? A matemática não aceita concessões : ou é ou não é. Os governos têm de se ajustar para que os gastos sejam racionais e coerentes com suas funções de provedor social.
Mas vejamos outro lado. Qual a contrapartida ?
Por vezes, como disse o nobre magistrado, executa-se por nada, já que as pessoas estão empobrecidas, não tendo o que o governo buscar para quitar a dívida.
Por que será migalheiros (não é ingenuidade minha, é ironia fina), que a população é, digamos, a "caloteira"?
E mais, indago-lhes : deixando à parte a pura e simples matemática, quem sofre o verdadeiro calote ?
Não sou catedrático na arte da política e até agradeço essa ignorância em certos momentos, mas digo agora em alto e bom pio, que essa velha ladainha de falta de recursos é tábua de salvação da incompetência.
Nosso povo sofre execuções (literalmente às vezes), sem nada receber em troca. Quando muito recebe, vem como se fosse favor.
Ufa ! Enfim...
Vou-me embora de Garça, mas fisicamente. Seus contornos e seu povo ainda estão na minha mente.
Tasco a mão no embornal que carrego e acho o radinho que me foi enviado pelo amado Diretor (cujo valor será descontado devidamente em minha folha de recebimentos).
O caridoso líder (será que sente minha ausência ?) enviou-me o aparelho que vem somente com estações em AM, cuja programação não é tão regida pelo "jabá", para que ouvisse notícias, meu futebolzinho e canções.
Ouço as notícias e já fico entristecido ao saber do falecimento do mestre Miguel Reale. O mundo jurídico certamente chora sua perda. Choro eu também. E choro, não só pelo seu saber jurídico que deixou muitas sementes. Choro pelos versos, pela poesia de sua pena. Lembro-me agora de um soneto feito para nós, pássaros :
Não mais que uma garganta e duas asas,
dois modos de vencer o espaço,
mais vigorosos do que o aço,
sobrevoando o bosque o mar e as casas,
os pássaros no céu são arabescos
de espiritualidade e graça
mostrando ao homem quanto o embaça
a vaidade de seus vôos grotescos.
Combinam-se espontaneidade e intento
em seu vôo ou seu gorjeio
lançados pelo firmamento.
Da feitura do ninho até a idade
do vôo ainda com receio
nasce do amor a liberdade.
Ah! Como tinha razão o mestre Reale... "do amor a liberdade". Obrigado Professor ! Obrigado...
________
Como Garça ainda rodeia meu pensamento, não dissocio o que vi, da música que agora ouço no recursinho de som e parece vir a calhar: "O bêbado e o equilibrista", de Aldir Blanc e João Bosco, interpretada pela "Pimentinha", a saudosa Elis Regina.
Caía a tarde feito um viaduto
E um bêbado trajando luto me lembrou Carlitos
A lua tal qual a dona do bordel
Pedia a cada estrela fria um brilho de aluguel
E nuvens lá no mata-borrão do céu
Chupavam manchas torturadas, que sufoco louco
O bêbado com chapéu coco fazia irreverências mil
Pra noite do Brasil, meu Brasil
Que sonha com a volta do irmão do Henfil
Com tanta gente que partiu num rabo de foguete
Chora a nossa pátria mãe gentil
Choram marias e clarisses no solo do Brasil
Mas sei que uma dor assim pungente não há de ser inutilmente
A esperança dança na corda bamba de sombrinha
E em cada passo dessa linha pode se machucar
Azar, a esperança equilibrista sabe que o show de todo artista
tem que continuar.
O equilibrista é o povo. E o bêbado ? Tirem suas conclusões, amigos migalheiros.