Sempre soube que o café foi ouro para o Brasil, escoltado e amparado que fui pelos livros escolares e as antes indefectíveis enciclopédias (dirão os mais jovens, do que se trata ? Hoje a curiosidade é digital, nas procuras, nos urgentes “cadês?”, espera-se a mais alta vista).
Mas depois de voar tanto, nobres migalheiros, chego àquela conclusão socrática, pois na verdade era mais que imaginava.
Estou neste momento em Cravinhos. Mais uma cidade em que sua gênese está entrelaçada com o amargo fruto vermelho que vira doce e sufoca o sono.
Interessante é que há uma incerteza quanto à origem do nome desta cidade conforme me contam os adoradores da terra.
Seria Cravinhos uma corruptela de “escravinhos”, em razão da incidência do trabalho escravo nessas paragens ? Quando questionados, os fundadores da cidade, os Barreto, negaram, talvez num antecedente do que chamamos hoje de “politicamente correto”. A família alegou tratar-se de uma plantinha que adornava as entradas das casas, as craveiras.
Pelo sim ou pelo não, houvera trabalho (rogo para que não tenha sido escravo por muito tempo) de qualquer forma, e que transmutou um pequeno povoado na cidade que hoje se apresenta aos meus pequenos olhos adornados pelos aros.
E na controversa questão da presença de trabalho escravo negro ou não, pouco importa.
Quando descubro que um filho ilustre de Cravinhos, Euclides de Araújo Senna, exímio saxofonista e flautista, que percorreu o mundo, até casar-se com uma bela portenha, era conhecido como “O Príncipe Negro”, canto de novo loas para meu país de povo em aquarela.
Ainda, numa dessas coisas saborosas que a vida nos oferece e que não entendemos, que chamam coincidência, descubro que um dos grandes nomes da história de Cravinhos é ascendente do grande poeta paulista Paulo Bomfim. Trata-se de Francisco Rodrigues dos Santos Bonfim, que ajudou a erguer a primeira igreja da cidade, a São Benedito, que hoje é patrimônio histórico, e o Cemitério Municipal.
Mas não é pela ilustre genealogia que penso no famoso bardo. É que no instante em que adentrava ao Fórum, fui pego de sobressalto e minhas asas abaixaram de súbito.
Não, migalheiros ! Não foi o motivo de minha paralisia mais um magistrado a barrar minha cruzada. Nem mesmo outro policial ansioso para me escoltar para fora do prédio.
O motivo? Cora-me dizer, mas meu suave torpor adveio da beleza morena, serena, de uma moça que por ali passava, e que, por um instante, me tomou. Mesmo, que tivesse menos que esse átimo, ainda assim ela teria conseguido minha atenção e meus olhos abobalhados, pois a beleza não é robusta, não precisa de esforço nem tampouco de luta. Vence com singeleza, com o mindinho : um sorriso e tomba-se o mundo. Minhas asas estremeceram perante os olhos e cabelos negros. Quando ela volveu-se e pela janela a vi, suspirei.
Daí que pensei no Poeta Paulo Bomfim e em de seus causos. Neste momento eu me vi fielmente fazendo seu papel. Explico.
Levado a casa de Oswald de Andrade por José Cretella em 1946, o poeta iria ser apresentado ao escritor e outros intelectuais da época. Recém chegado de uma chopada, recebeu advertência de Cretella :
— Paulo, porte-se bem. Vai ser uma reunião importante onde estarão presentes vários professores da Universidade de São Paulo e alguns intelectuais estrangeiros que nos visitam.
O bardo animou-se ainda mais com o vinho servido. Lá, havia uma bela copeira, que olhava de soslaio para ele, sorrindo discretamente. Quando percebeu que ela caminhara para a cozinha a seguiu, e lhe abraçou. A formosa moça soltou um grito e a bandeja foi ao chão.
O amigo Cretella, imerso em vergonha, o retirou da festa. No dia seguinte, chamou-o para desculpar-se com Oswald. E o poeta foi prontamente. Ao oferecer suas desculpas, ouviu do escritor:
—A moça é realmente muito boa. Eu, na sua idade, teria feito a mesma coisa! — e solta uma daquelas gargalhadas oswaldianas.
Depois do rubor que também me tomou conta, volto à realidade, pois o divino foi-se embora pela janela.
Inspirado pela singeleza, segui meu destino tão humilde, meu ofício, sabedor que sou que a vida é ferro e fogo ; mas também são os lírios e a lavanda. É o trabalho bruto, inteligente, matemático que ergue cidades. E também a beleza que nos chama para qualquer lugar.
“Ó pousos, ó cansaços, ó jornadas,
Parnaíbas de amor que não regressam;
Candeias inflando o breu da noite,
Cerrações, retentivas de partidas.
Tietês correndo fundo na saudade,
Rostos submersos, águas sertanistas,
Canção de remos no arraial de espumas,
Proas alimentadas de paisagem
Ó pousos não pousados duas vezes,
Ó serras, ó martírios não falados,
Ó melros decepados em vitórias...
Longo é o sono da terra adormecida
Imersos em nós mesmos contemplamos
Leões brasonados perseguindo.”
Paulo Bomfim